O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

 

Os Íntegros e os Maus Juízes

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Escrevo no último dia de 2021. Com o horizonte aberto para as mobilizações do ano novo: bicentenário da independência enquanto ruptura com a metrópole; centenário da Semana de Arte Moderna; centenário de Darcy Ribeiro; 90 anos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e ainda vibrando o centenário de Paulo Freire, para os augúrios das eleições que fecharão 2022. Mas o ano começa como diz o samba “com um gosto mau de cabo velho de colher de pau” (Samba de Fato, de Pixinguinha/Baiano). Como é que num país com tanto para celebrar, 2021 entra em 2022, com resíduos do esgarçamento democrático, com contas velhas a pagar.

 

 

O gosto ruim e o odor, aliás recentemente mal citado, vem principalmente da estrutura do sistema de justiça. Ali onde são muitas as expressões de juízes íntegros, mas onde se projeta com má fama, internacionalmente, maus juízes.

 

 

Por isso o título acima que devo-o, em parte, a Anatole France, prêmio Nobel de literatura de 1921, um dos fundadores da Liga dos Direitos do Homem, notável escritor que tratou frequentemente o tema da Justiça e da condição do jurista.

 

 

Num texto com o mesmo título ele traduz a impressão retida da observação de um quadro de Mabuse (Jan Gossaert), talvez a mesma que se possa perceber na pintura de van Eyck (o Políptico de Gantes), em que são figurados também os juízes íntegros, tal como são conhecidos. De sua observação, diz Anatole, pode-se concluir ter o mestre dado aos dois juízes o mesmo ar grave de doçura e de serenidade. Mas, vistos os detalhes que caracterizam um e outro, pode-se ver que eles, no entanto, são diferentes, na índole e na doutrina. Um traz na mão um papel e aponta o texto com o dedo; o outro ergue a mão com mais benevolência do que autoridade, como que a liberar um pensamento prudente e sutil. São íntegros os dois, conclui o escritor, mas é visível que o primeiro se apega à letra, o segundo ao espírito.

 

 

Em outro texto sobre esse tema (A Lei é Morta, o Juiz é Vivo), alinha parêmias do célebre magistrado Magnaud, erigido, na doutrina e na literatura (Victor Hugo, em Os Miseráveis), em expressão de aplicação equitativa do Direito, com a fórmula “decidir como o bom juiz Magnaud”, conforme ensina Carlos Maximiliano.

 

 

O chamamento que faz Anatole France ao juiz vivo, para se posicionar ativamente em face da lei morta: “A bem dizer, eu não teria muito receio das más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Dizem que a lei é inflexível. Não creio. Não há texto que não se deixe solicitar. A lei é morta. O magistrado é vivo; é uma grande vantagem que leva sobre ela. Infelizmente não faz uso disso com frequência. Via de regra, faz-se mais morto, mais frio, mais insensível do que o próprio texto que aplica. Não é humano: é implacável. O espírito de casta sufoca nele toda simpatia humana. E vejam que só estou falando dos magistrados honestos.”

 

 

Dos bons juízes se espera como adverte Jean Cruet, no livrinho paradigmático publicado em 1908 (A Vida do Direito e a Inutilidade da Lei), que ousem “sair fora dos textos, para compreender o mundo social em toda a sua extensão, em toda a sua complexidade e em todo o seu movimento”.

 

 

Não se trata de desconsiderar os textos legislativos, mas de compreender que a rigidez das fórmulas em que se expressam não dispensa uma mediação que recupere “o aspecto verdadeiro das coisas”, de modo a desvendar o direito que se revela “na sociedade organizando-se por si própria”.

 

 

Trata-se de confrontar a injustiça que gera desigualdade e indignidade, pois como indica o Papa Francisco, saudação aos juízes que participam do Primeiro Encontro virtual dos Comitês para os Direitos Sociais da África e da América: “quando a justiça é verdadeiramente justa, aquela justiça torna os países felizes e seus povos dignos. Nenhuma sentença pode ser justa, nenhuma lei é legítima se o que geram é mais desigualdade, se o que geram é mais perda de direitos, indignidade ou violência” (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-11/papa-francisco-juizes-africa-america-sentencas.html).

 

 

Em muito importante designar a estirpe de juízes que, na sua judicatura provincial – Floriano Cavalcanti de Albuquerque; ou no Supremo Tribunal Federal – Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, entre eles – souberam exercitar a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da lei”. Provedores de uma justiça poética é esta estirpe de juízes que, lembra Josaphat Marinho em discurso de homenagem a Víctor Nunes Leal na UnB, citando Aliomar Baleeiro, leva a jurisprudência do Supremo a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto” (http://estadodedireito.com.br/desembargador-floriano-cavalcanti-de-albuquerque-e-sua-brilhante-trajetoria-de-vida/).

 

 

Essa estirpe, que olha para a Justiça sem se descolar arbitrariamente dos parâmetros do Direito, é tão necessária quanto mais para acentuar os maus juízes. Aquela espécie que Lutero caracterizava como “triste e pobre coisa”. Que deixam de ser agentes da cidadania e da justiça e se tornam justiceiros. Não seguem o Direito, querem fazer justiça pelas próprias mãos. Não promovem a dignidade garantista do devido processo legal, lincham. E vão amealhando moedas com isso (cf. o meu artigo Entre Os Maus, Quando Se Juntam, Há Uma Conspiração. Não São Amigos, Mas Cúmplices, in Relações Indecentes [recurso eletrônico] / organização Camila Milek, Ana Júlia Ribeiro; coordenação Mírian Gonçalves, Wilson Ramos Filho, Maria Inês Nassif, Hugo Melo Filho; 1ª edição – São Paulo: Tirant Lo Blanch /Instituto Defesa da Classe Trabalhadora, 2020, 190 p. Links para acesso gratuito: https://editorial.tirant.com/br/libro/relacoes-indecentes-E000020005394;https://bit.ly/DownloadRelacoesIndecentes).

 

 

Agora ao final de 2021a pedido do Ministério Público junto ao TCU, o Tribunal de Contas da União investiga conflito de interesses do ex-juiz Sergio Moro, que se tornou sócio-diretor da Alvarez & Marsal, empresa que faz a administração da recuperação judicial da Odebrecht. O requerimento foi feito pelo subprocurador-Geral Lucas Rocha Furtado, meu estimado e íntegro colega de Congregação na Faculdade de Direito da UnB. Outro pedido que está sendo analisado pelo tribunal é a suspensão de pagamentos da construtora à consultoria, até que o mérito da questão seja avaliado (https://www.conjur.com.br/2021-fev-26/tcu-investiga-moro-socio-administradora-judicial-odebrecht). Também como noticia o Jornal Folha de São Paulo, ex-juiz diz que “a lava a jato combateu o PT de forma eficaz” (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/12/moro-diz-que-lava-jato-combateu-pt-de-forma-eficaz-mas-recua.shtml).

 

 

Como o mau juiz deixa ranço, aquele gosto amargo de cabo velho de colher de pau, muito antes da decepção geral que seu mister provocou, principalmente depois das revelações do Intercept Brasil, desde 2019, quando a mitificação disfarçava o mal odor, Boaventura de Sousa Santos predizia: “A credibilidade do Sistema Judiciário não se recupera enquanto Sergio Moro e Deltan Dallagnol não forem punidos exemplarmente” (Da Expansão Judicial à Decadência de um Modelo de Justiça. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al, Orgs. O Direito Achado na Rua volume 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora da UnB/Editora da OAB Nacional, 2021).

 

 

2022 está aí para purgar esse resíduo prorrogado de 2021.

 

 

(*) Por José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).




 

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