Bruno Mileo
O livro A
Justiça Popular em Cabo Verde resulta de pesquisa sociológica realizada em
1983-1984 a pedido do governo daquele país quase uma década após a sua
independência. Vivia-se o momento da reconstrução da administração pública
cabo-verdiana com dificuldades estruturais a serem superadas e, sobretudo,
novas possibilidades a partir da ruptura dos vínculos coloniais e
pós-coloniais, perseguindo o socialismo como objetivo político.
Conforme o livro aborda, o momento histórico
da independência cabo-verdiana possibilitou reflexões importantes sobre os
caminhos para a estruturação da administração da justiça naquele país. Por um
lado, o mundo ocidental já vivenciava a crise do modelo hegemônico pautado no
sistema de produção capitalista e no colonialismo – reprodutor, portanto, de
relações de poder com base na classe e em diferenças socioculturais. Embora
tenha ocorrido uma ampliação dos direitos sociais na segunda metade do século
XX, o Poder Judiciário não se expande satisfatoriamente e se abrem espaços para
o debate sobre a crise do judiciário e a necessidade de reformas.
Por outro lado, naquele momento histórico,
foi igualmente possível o contato com experiências de outros países africanos e
do leste europeu, uma oportunidade de aprender com outros processos de
organização política e administração da justiça de base popular. No continente
africano em especial, na medida em que zonas eram liberadas dos domínios
coloniais, conseguiam ensaiar formas autônomas de base popular e assente nos
costumes, obviamente respeitadas as particularidades de cada país.
Em Cabo Verde, a colônia não conheceu forte
investimento na construção de infraestrutura de apoio para a administração
colonial em razão da pouca presença de colonos portugueses. Após a
independência, a construção de uma estrutura judicial autônoma teve que levar
em conta dificuldades humanas, técnicas e financeiras – tais como falta de
instalações e falta de profissionais especializados para o exercício das
funções. Sob outro enfoque, o caminho estaria aberto para investir em
alternativas emancipadoras e mais próximas do cotidiano comunitário para a
prevenção e resolução de conflitos. Nesse contexto, os tribunais de zona
emergem como prioridade e uma inovação institucional que vigorou em Cabo Verde
entre 1979-1991, afastando-se do modelo hegemônico liberal para a administração
da justiça e, mesmo, dos modelos de justiça popular instituídos no Leste
Europeu e em Cuba.
Os Tribunais de Zona em Cabo Verde
dispensavam as necessidades técnicas, materiais e humanas da justiça formal,
mas também eram uma aposta forte para promover a pacificação social e atuar
como escola política, cultural e social do povo. Previstos na organização
judiciária de Cabo Verde, os Tribunais de Zona conjugavam as funções de
administração da justiça – com a resolução de litígios a partir da atuação de
representantes comunitários indicados como juízes não profissionais – e
política de promover a participação popular e a educação comunitária conforme
os objetivos políticos comuns.
Os casos julgados pelos Tribunais de Zona
eram definidos legalmente pela baixa medida da pena ou valor monetário. No
atendimento aos comunitários, no entanto, ocorria certa discricionariedade ao
processar uns casos e outros não, conforme fosse possível avaliar a gravidade
do conflito ou se antever a eficácia da intervenção da justiça popular. Como os
juízes eram membros da comunidade, isso podia ser antecipado com base nos
conhecimentos e relações que possuíam no bairro, sem necessariamente de
informações constantes de um processo.
O funcionamento de cada Tribunal de Zona
tendia a variar bastante, mas prevalecia informalidade e oralidade como
características preponderantes. Alguns casos chegavam a ser conciliados logo
que a parte procurava o tribunal para prestar queixa, outros podiam nem ser
registrados ou autuados devido a previsibilidade de sua fácil solução, ainda
que tenham se realizado audiências ou, mesmo, tenham sido sentenciados. Os usos
da formalidade e linguagem jurídica eram estratégicos conforme a gravidade do
caso ou a probabilidade de recurso, quando os juízes dos Tribunais de Zona
necessitavam reforçar sua legitimidade na comunidade ou se relacionar com os
tribunais oficiais para o julgamento em grau de recurso.
A proximidade entre juízes e comunidade
favoreceria também decisões com maior enfoque no caráter educativo e menos no
caráter punitivo de acordo com as características de cada caso, embora os
Tribunais de Zona estudados ainda aplicassem mais medidas punitivas do que
educativas no tempo da pesquisa. O desejável era que a formação comunitária ocorresse
com a participação das pessoas no tribunal, assistindo ou manifestando-se
durante as audiências. Apesar da participação comunitária ser um dos principais
pilares da justiça popular, a pesquisa observa poucos espaços para que os
comunitários participem durante as audiências ou algumas delas que foram
realizadas apenas com a presença das partes e juízes, indicando esse como um
aspecto a ter cuidado.
Apontar essas questões cumpria com o objetivo
da pesquisa em contribuir com a construção da experiência da justiça popular em
Cabo Verde, estudá-la sem reduzir a sua complexidade. Nesse sentido, outros
pontos merecem destaque no livro, tais como alertar para os perigos da
instrumentalização partidária da justiça popular, a relação desta com outros
órgãos oficiais e de participação popular, o papel dos juízes no cotidiano de
resolução de conflitos comunitários, o espaço das mulheres nos Tribunais de
Zona como suas principais usuárias – porém com pouca representação numérica no
quadro de juízes, o decréscimo na procura dos Tribunais de Zona em comparação
aos primeiros anos de funcionamento.
No contexto ideológico da pesquisa e
preocupado em destacar as potencialidades e riscos com base nas experiências
históricas de outros modelos de justiça popular, assumindo também o lugar de
fala de um cidadão português a fazer recomendações em tão pouco tempo da
independência cabo-verdiana; o pesquisador faz opções metodológicas cuidadosas.
Adota a metodologia quantitativa para que os dados pudessem demonstrar com
eloquência o funcionamento dos Tribunais de Zona. Realiza um trabalho pioneiro
na coleta de dados que se encontravam pouco sistematizados em razão da
informalidade ou, mesmo, não escritos em razão da oralidade que caracterizavam
o funcionamento dos Tribunais de Zona. Por esses motivos, ele demonstra cautela
em tirar conclusões com base no universo pesquisado, ao invés de assumir um tom
generalizante. Aos dados quantitativos, soma-se a consulta a um interessante
acervo de documentos, as entrevistas realizadas e as descrições de observações
feitas nos Tribunais de Zonas pesquisados. Sempre, é claro, acompanhados da
análise cuidadosa e ponderações pertinentes do pesquisador.
No início da década de 1990, os Tribunais de
Zona encerravam as atividades em Cabo Verde. Foi um período curto de
funcionamento e investimento em alternativas para a prevenção e resolução de
conflitos. O livro tem o mérito de documentar sobre o funcionamento da justiça
popular em Cabo Verde, mostrando a criatividade comunitária na solução de
litígios e seu potencial emancipatório, mas também apontando problemas e
obstáculos a serem vencidos. É importante conhecer a experiência cabo-verdiana
e, dialogando com ela, refletir sobre a relação entre estado e participação
social, direito e política, formalidade e informalidade na administração da
justiça. Sendo questões ainda tão atuais a crise de legitimidade do judiciário
e o imperativo de democratizar a justiça, voltar os olhos para os Tribunais de
Zona em Cabo Verde é essencial para não desperdiçar uma importante experiência
e se poder avançar no sentido de novas formas para a administração da justiça.
[1] Texto de apresentação do livro do professor Boaventura de Sousa Santos na livraria Almedina, Coimbra, Portugal no dia 10.04.2015 O autor é professor da Universidade Federal do
Oeste do Pará (UFOPA) e doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no Século
XXI pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC).
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