O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

sexta-feira, 6 de março de 2015

O direito dos oprimidos 40 anos depois

Patrick Mariano**

Visitou-nos o então estudante Boaventura de Sousa Santos há 40 anos atrás. Esteve lá pelas alturas da favela do Jacarezinho a fim de realizar sua pesquisa. Foi pesquisar e acabou por se transformar.
Existem muitos mundos além do nosso próprio cotidiano. O relato do processo de encontro com outra realidade que muitas vezes nos leva a pesquisa é, talvez, o que de mais notável e belo neste livro.
O depoimento do estudante, agora já um maduro e reconhecido pesquisador sobre os desígnios da vida, dos povos e das transformações as quais passou nesses últimos 40 anos é o crème de la crème da obra que hoje se lança. É interessante ler as suas memórias, as representações que ele tem do que passou e a nostalgia com que se lembra dos Zés e Antônios daquele Rio de Janeiro dos anos de 1970.
Cômico e quase trágico imaginar a ingenuidade do estudante que, ao dizer que iria fazer uma “investigação” (termo português para a pesquisa) é expulso da favela por medo de ser um agente repressivo. O deslumbramento de encontrar com um país que de certa forma lhe tocava os laços de afetividade. Ver a paixão pelo futebol, o mar e a música. Talvez seja semelhante a quando vi pela primeira o Tejo se lançar ao mar ou fui à casa de Pessoa.
Ao se deparar com aquele microcosmo de botequins e vendinhas, o Antônio português, o jogo do bicho, as dificuldades da associação de moradores e a presença dos vermelhos com suas preocupações sociais o jovem foi sendo mais brasileiro dia após dia. Daí que vem a frase síntese: “A esmagadora maioria da população do Jacarezinho ocupava cada dia com a tarefa dura de sobreviver no dia seguinte”.
Lembrou-me a música de Milton “Quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida”. O País que ele visitou era o país da tortura, da execução de Herzog, do estudante Edson, de Rubens Paiva e de Marighela. Um país que era triste porque o que de melhor havia produzido nas últimas décadas estava no cárcere, na tortura, desaparecido e morto ou exilado.
Definitivamente, não era a melhor época dos nossos quinhentos e tantos anos para sermos visitados. O estudante, no entanto, segue em caminho de descobertas. Conhece o ritual da Umbanda e os cantos africanos. E descobre que as favelas são filhas dos quilombos. Cabe aqui a música do Rapa: “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”.
O conflito interno do estudante com o financiamento da pesquisa, seus receios e preocupação quanto ao povo que foi mais que objeto de pesquisa e que, ao final se tornou seu próprio povo.
As dúvidas metodológicas, os diálogos com a teoria marxista, a revolta contra o positivismo no direito e a humildade para reconhecer (embora estivesse ali em suas mãos um grande e notável estudo ) que “No decurso das poucas discussões privadas que tive com amigos meus da favela, apercebi-me de que, para eles, as minhas descobertas ou eram óbvias ou irrelevantes”.
É o contato com a realidade concreta que nos transforma e a pesquisa pode nos proporcionar isso.
E foi ao se indignar e sensibilizar contra uma Lei em 1842 que tornava crime a extração gravetos e madeira (utilizados para proteção do frio), que tornava ladrões do dia para a noite, depois de séculos desse costume, os pobres camponeses da Renânia que surgiu, nas palavras de Gramsci “a entrada da inteligência na história da humanidade”. Foi o contanto com essa realidade que fez com que um jovem pesquisador alemão mudasse a história do mundo.
O mundo muito se transformou desde a visita do nosso então jovem estudante à favela do Jacarezinho. Veio a revolução dos cravos, a Constituição brasileira de 1988 e as democracias.
Aquele mundo que viu de um morro carioca não mais existe. Derrubaram em 1989 um muro e, com ele, ruiu a esperança de uma disputa contra o capitalismo. O capitalismo desde então passou a reinar soberano com exceção de uma pequena e honrosa ilha. A ironia é que o muro do qual fizeram nos crer ser a metáfora de um mundo perigoso e que comia criancinhas, é hoje utilizado para separar mexicanos dos americanos, palestinos dos israelenses e marroquinos dos espanhóis. Ou seja, derrubaram um muro, ergueram-se mais não sei quantos. A diferença é que os novos muros não nos causa tanto assombro. Pudera, pois erguem-se muros semelhantes nos condomínios e nós blindamos os carros com medo de um malabarista de semáforo.
Com a desculpa de combater o terrorismo, Guantánamo e Abu Graibh possibilitam ao estudante de história conhecer um campo de concentração em pleno funcionamento. Não é necessário ir mais para a Alemanha ou Polônia. E o então presidente da maior potência do mundo vem ao público dizer que a tortura deve ser utilizada.
Vivemos sobre o império do medo. Do medo do estrangeiro, do muçulmano, do pobre e daquele que está do outro lado do muro.
Com acerto Galeno:
"Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras”.
Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.
Como disse bem o escritor Mia Couto “É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram”.
Todas as democracias estão a ser governadas pelos mercados. Este é o novo deus da nossa sociedade. Um deus que não tem cara e que nunca se viu. Ao menos o deus da tradição ocidental católica possuía um rosto, assim como o Buda. O mercado é invisível, mas não ouse o desagradar.
Isso faz com que governos de centro esquerda como o do Brasil atual seja escravo dos juros das dívidas. Nosso sistema econômico faz com que 42,04% da riqueza brasileira seja destinada ao setor financeiro em juros e amortizações da dívida pública, 4,11%, em saúde, 3,49%, em educação e, pasmem, 1%, no Bolsa Família.   
Em Portugal, 80% dos aposentados recebem 365 euros e, 1,9 milhões estão no limiar da pobreza. Um país que obriga seus trabalhadores aposentados a trabalhar para completar a renda não é democrático. Na vizinha Espanha, a justiça determina o despejo de senhoras de 85 anos de suas casas.
E as favelas do Rio de Janeiro que antes eram ocupadas pelo projeto educacional revolucionário de Darcy Ribeiro, Brizola e Niemeyer hoje são ocupadas pelos tanques do exército a pretexto de combater o “traficante”. As UPPS, símbolo de uma politica de segurança fracassada e fascista estão lá a restringir o ir e vir daqueles Josés e Marias que visitou o nosso estudante.
Mas o morro, no entanto, ainda sobrevive. As manifestações culturais do passinho, do rolezinho e do funk são sinais de que ali onde nasceu o samba, muitas outras ousadias culturais haverão de florescer. Pois ali se vive e se brinda o dia que se permite viver.
Nesses 40 anos que distam entra a chegada ao Brasil desse grande pensador, então jovem e sonhador, muita coisa como se vê, aconteceu. O livro vem em muito boa hora e os relatos pessoais e autobiográficos são de uma sensibilidade tocante.
É prazeroso ler suas inquietações, suas dúvidas e o sobe desce do morro carioca. O jovem, então na altura dos seus 30 e poucos anos, como muitos de nós aqui estamos, surge pelas mãos da nostalgia do pensador maduro. É fantástico conhecer o Boaventura aos 35 anos e o livro nos proporciona isso.
As fotos são o grand finale da obra. Depois de ficarmos familiarizados com os nomes das pessoas que se tornaram seus amigos e, aos poucos de nós leitores também, não há como não sorrir com a ternura do reencontro. Como diria o samba de Vinícius, “A vida não é brincadeira, amigo/A vida é arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida”.
Para terminar, continuo com Vinícius, pois apesar de tudo é preciso ter esperança. É o que o livro nos traz, assim como a vida do pensador que aqui está a nos brindar com mais uma obra:
“Ponha um pouco de amor na sua vida/como no seu samba. Ponha um pouco de amor numa cadência e vai ver que ninguém no mundo vence a beleza que tem um samba, não”.

*O texto corresponde à intervenção do autor, na qualidade de debatedor, feita durante o lançamento em Coimbra, no CES (Centro de Estudos Sociais) em 6/3/2015, do livro “O Direito dos Oprimidos” de Boaventura de Sousa Santos.

**Patrick Mariano, é advogado popular, membro da RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares e cumpre programa de doutoramento no CES – Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Ele integra o coletivo O Direito Achado na Rua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário