Ana Luiza Almeida
e Silva *
Olá, José! Como vai você? Me senti na
obrigação de relatar, ainda que parcialmente, o que vivi até aqui. Bom, a
Suécia foi realmente muito mais do que esperava. A melhor coisa deste programa
é sermos mandados para lugares que nunca imaginaríamos antes. Como se vendassem
nossos olhos e escolhêssemos. Ok, o processo não é exatamente esse. Mas o fato
de não termos expectativas e muito menos preconceitos é fantástico. Fiquei em
Gotemburgo, segunda maior cidade da Suécia que, no entanto, para os padrões brasileiros,
seria quase uma cidade de interior com seus 500 mil habitantes. A cidade é
linda, histórica – recorrentemente me lembrava Coimbra – pelas ladeiras,
igrejas, construções históricas. Todos os paradigmas referentes à cultura
nórdica foram quebrados: “são frios”, “são fechados”, “são mecânicos”. A
integração com os suecos, numa relação mais próxima, é realmente difícil – mas
nada que eu não tenha vivenciado em Brasília. Eles são sim diferentes, mas eles têm
uma espécie de acolhimento especial. São muito atentos aos detalhes,
hospitaleiros e, claro, eficientes. A estrutura da Universidade de Gotemburgo
não cansava de me surpreender. A biblioteca é algo que nunca tinha acessado
antes (mesmo tendo estudado em Coimbra). A ideia de universidade além da sala
de aula também é fantástica. O aspecto puramente acadêmico - sala de aula – me
deixou um pouco frustrada, mas essa é uma discussão longa a respeito do sistema
de ensino europeu, Bolonha e os alunos que aqui estão sendo formados. Ah sim,
esse é um fator importante. A minha turma “Erasmus Mundus” é bem especial.
Somos 19 estudantes de todo o mundo. A proporção é mais ou menos 50% europeus e
50% resto do mundo: inglesa, francesa, italiana, holandesa, brasileira,
canadense, argentina, síria, libanesa, tailandesa, cingapuriana, kosovar,
georgiana, sueca, indiana, australiana, alemã. Essas são as nacionalidades
presentes. E pro debate de direitos humanos é mais que enriquecedor. Mas o
melhor da Suécia foi ver uma social-democracia funcionando de pertinho. Não me
contaram não. Funciona de verdade. E o primeiro aspecto que me chamou atenção
foi ver, como nunca havia visto antes, pais e mães apreciando a
paternidade/maternidade. A licença maternidade de uma mãe sueca pode durar até
um ano e meio. E o melhor: pode ser dividida igualmente com o pai. Eu que
sempre fique encantada com rapazes que dominavam as tarefas domésticas, vendo
os pais trocando frauda e dando mamadeira, fiquei estarrecida. O sistema de
saúde é eficiente, o sistema de educação é de altíssima qualidade (ainda que
tenha restrições quanto ao que vivenciei) e garantido gratuitamente até a
universidade. Os 32% de impostos que são pagos pelo trabalhador sueco são
absolutamente revertidos em
serviços. Sem falar nos impostos proporcionais ao montante de
bens – lá, ser rico não é um bom negócio. Outro fator que impressionaria
qualquer brasileiro é que toda e qualquer profissão é absolutamente respeitada.
A senhora que limpava nossa acomodação concluiu seus estudos, falava um inglês
fluente e fazia seu trabalho como outro qualquer. E, claro, o salário recebido
também garante uma vida digna. Embora não haja um piso salarial nacional – é
determinado pelos respectivos sindicatos – a renda média de uma família sueca
(pai, mãe e dois filhos) é de 30 mil coroas, o que equivale a aproximadamente
12 mil reais. Era difícil explicar aos suecos como no Brasil a relação impostos
pagos/services prestados funciona de maneira desproporcional e, especialmente,
a imensa disparidade entre as classes sociais. O movimento feminista lá também
é fortíssimo. Ele foi capaz de mudar a regra de sucessão monárquica há alguns
anos atrás. A princesa, que era a filha mais velha, perderia a sucessão do
trono para o príncipe por conta do gênero. No entanto, a regra passou a ser
apenas de que o filho/a mais velho/a tomará o trono idependente do sexo. Uma
das coisas mais fantásticas foi a criação de um pronome pessoal neutron – hen -
para evitar a distinção de gênero. Além disso, “gender equality” é a premissa
máxima de governo aqui. Em Estocolmo, nós fomos recebidos por representantes do
Ministério de Relações Exteriores e da SIDA (agência de fomento a projetos
sociais em outros países) e ambos confirmaram a diretriz. Um dos fatores que é
incômodo, especialmente para uma estudante bolsista, é o fato de bebidas
alcoólicas (acima de 3.5%) terem sobretaxação pelo governo e não podem ser
vendidas em qualquer esquina. Devido ao histórico de alcoolismo do país, o
governo tem o monopólio da venda de bebidas alcoólicas que só pode ser feita
nas suas próprias lojas (system bolaget) e em horário comercial. Mas pensando
bem, esse é um dos poucos mecanismos de controle que vi. Em geral, o que se vê
mesmo é a prática libertária reinando. Na universidade não há presença
obrigatória, o direito ao reexame no caso de reprovação autoriza três
avaliações – segundo o próprio regulamento, porque eles acreditam na capacidade
do aluno. O sistema de transporte tem livre acesso – sem roletas. E a maioria
paga sem reclamação. Os suecos são doces em sua essência. Eles têm um dia
nacional pro bolo de chocolate. Tem a fika também. É um chá da tarde com
quitutes suecos. A comida deixou um pouco a desejar, mas todo o resto
compensou. Agora estou na Inglaterra. Cheguei há um mês. Como já havia estado
em Londres, o impacto não é tão grande. Ainda assim, entender essa pretensão de
perfeição britânica é e sempre será um desafio pra mim. A prática libertária
aqui já não é uma realidade. Aliás, tudo é muito vigiado. Desde os ambientes
públicos, passando pelos transportes, até o ambiente doméstico. A inglesa que
mora comigo me aterrorizou sobre assistir programas de TV na internet sem
autorização. Aqui todo canal de TV é pago e as empresas ficam rondando as casas
com um detector de sinal para saber o que você esta assistindo. 1984 perto de Londres
é para principiantes. Outro desafio é manter-se apaixonado por uma cidade
turística quando se vive nela. Eu que sou no Rio de Janeiro sei bem da relação
de amor e ódio que esse tipo de cidade causa. É preciso vivenciar bem os
detalhes para não ser tomado pelo caos. No momento estou engatinhando na minha
dissertação da UNB e enlouquecendo com a proposta de pesquisa daqui. É, aqui o
projeto é elaborado durante o curso. A parte boa é que a gente vê coisas
diferentes, aperfeiçoa ou muda o que pensava. Ou abandona de vez. A parte ruim
é que a dúvida diante de tantas opções desgasta e consome o tempo sem que a
gente perceba. Ah, claro. Tive aulas de sueco oferecido pela universidade, mas
aprendi pouquíssimo (embora a estrutura gramatical da língua seja muito simples
– outro mito desfeito). Mas na Suécia, ou mesmo aqui, estou sendo
realfabetizada. José, eu tive trabalhos publicados no Brasil e até então achava
que escrever era a única coisa que sabia fazer na vida. Pois não. Estou
reaprendendo a escrever, a me expressar de maneira diferente. E, sobretudo,
ficar mais tempo calada e prestar atenção aos detalhes. É um processo doloroso,
mas vai valer a pena. O inglês nunca é suficiente até que você se depare com um
seminário sobre o direito sobre as manipulações genéticas, a discussão sobre um
ralo entupido, a conversa com o cabeleireiro sobre como você quer o corte de
cabelo, etc. Olha, eu não sei se terei filhos, mas se os tivesse, daria apenas
um conselho: estudem línguas. Como bate um arrependimento por ter negligenciado
tanto nesse aspecto – e acredite, meu inglês, pros padrões brasileiros, é muito
bom. Porém, na vida real é preciso muito mais. Aqui em Londres estou
trabalhando em uma organização chamada Fair Trials International. Ela lida com
presos detidos fora de seus países de origem. Damos uma assessoria indireta,
mas o trabalho mais forte é de campanha e lobby. O último projeto foi sobre a
INTERPOL e os alertas vermelhos que acabavam prendendo perseguidos políticos,
dado que a INTERPOL seguia a recomendação dos países sem checar as denúncias.
Agora estou participando de uma pesquisa sobre prisão provisória. O âmbito é
Europa, mas sou responsável pela análise comparada com a América Latina. Olha,
confesso que já estava pensando em te enviar o link do blog há algum tempo, mas
os posts estão realmente bagunçados. Nessa mensagem consegui resumir um pouco
de tudo que aconteceu. Obrigada pelo apoio, José. E também pela curiosidade. Em
breve escreverei um pouco mais sobre o Reino Unido. Beijo grande,
* Ana Luiza Almeida
e Silva é aluna do mestrado em Direito, Estado e Constituição da Universidade
de Brasília e do programa de mestrado Human Rights Policy and Practice, uma
ação do consórcio entre universidades na Suécia, Reino Unido, Noruega e Índia.
Que relato empolgante, quantas experiências e que vontade de fazer tudo isso também! Continue compartilhando, Ana Luiza, e aproveite cada segundo! A riqueza de conhecer pessoas novas e conviver com elas é inestimável!
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