Layla Jorge Teixeira Cesar *
Há uma semana tive a oportunidade
de conhecer como operava o – agora recém-extinto – Ministério de Ciência e
Pesquisa da Áustria, em seu escritório em Viena. Foi a última chance para visitar a sede da
coordenação da agenda de Ensino Superior do país, realocada depois das últimas
eleições para presidência[1]
que reelegeram o partido Social Democrata Austríaco e suas alianças.
A partir de 16 de dezembro, a
ciência e a educação terciária se tornariam pastas do Ministério da Economia e
Família.
Esta não é uma alteração sem
importância no cenário austríaco: o país é uma das poucas referências europeias
a um sistema de ensino superior universal e gratuito[2].
Todavia, foi exatamente baseado no padrão europeu que o novo ministro Reinhold
Mitterlehner, membro do conservador Partido Popular da Áustria
(ÖVP), justificou a nova política. Unindo os dois ministérios, ele afirmou,
seria possível cobrir completamente a cadeia de inovação e produção tecnológica
e atender, com maior eficiência, aos princípios do Horizon 2020, maior programa da União Europeia para financiamento de
pesquisa. Seria a condição para que a Áustria saísse da posição de consumidora
para se tornar líder em inovação tecnológica.
Outros setores da sociedade e da
comunidade acadêmica não compartilham dessa opinião, e a transição estratégica
não se deu sem resistência. A fusão é tida como subordinação do ensino superior
a uma pauta de desenvolvimentismo econômico. Por essa razão, estudantes,
docentes e gestores/as em todo o país se posicionaram firmemente contra a ação.
Apenas havia sido feito o anúncio
oficial da mudança e a União Nacional de Estudantes[3]
– forte e muito bem organizada – ocupava as ruas de Viena com um cortejo
fúnebre que se iniciou nas portas do antigo ministério. 9.500 estudantes
tomaram parte no protesto, e as instituições de ensino superior da capital
suspenderam suas aulas para estimular maior participação.
Florian Kraushofer, presidente da
União, disse em entrevista que as demonstrações visavam chamar atenção para o
fato de que o ensino superior e a pesquisa básica haviam deixado de ser
prioridade para o novo governo, sendo subordinadas à lógica de mercado. “A
ciência segue uma lógica distinta. Seja pura ou aplicada, é preciso que seja
livre da preocupação com metas. A ciência não pode ser sempre lucrativa”. Outra
preocupação central dos estudantes é que se estabeleça algum regime de
recrutamento (ou seja, que o acesso deixe de ser universal) ou, ainda, que
passem a ser cobradas taxas e anuidade, eliminando o caráter da educação
gratuita como direito.
O presidente da Associação das
Universidades Públicas da Áustria[4], Heinrich Schmidinger, tentou fazer um último
apelo para que a presidência não empossasse seu governo sem um ministério
exclusivo para ciência e gestão do ensino superior. Frustrada, a orientação da
Associação foi para que todas as universidades afiliadas cobrissem suas
fachadas com bandeiras pretas em repúdio.
Mitterlehner reagiu dizendo que as universidades
estavam exagerando. Afinal de contas, apenas uma nova estrutura estava sendo
proposta.
As prioridades da atual gestão, entretanto, são
descontínuas em relação à administração anterior e se expressam de maneira
clara: atingir "déficit estrutural zero" até 2016 para "atrair
investidores de todo o mundo", ainda que isso custe "medidas mais
duras".
Esse avanço do capitalismo global sobre o ensino
superior não pode ser ignorado. Quanto mais se aproximam da lógica de mercado,
mais as universidades deixam de servir à sua função educativa e passam a servir
à domesticação do trabalho. A liberdade do laissez-faire que a
associação direta às demandas do mercado oferece não pode ser confundida com
autonomia universitária, pelo contrário. Condicionar a produção do ensino
superior ao ritmo do consumo de tecnologia aliena as instituições da
possibilidade de produzir alternativas ao próprio modelo econômico que as
aprisiona.
Também é fator digno de análise a força da
integração da União Europeia como bloco de ensino superior que avança no
sentido da lucratividade e eficiência das universidades. Novas redes começam a
se formar entre blocos regionais, e a ligação entre a União Europeia e a
América Latina já é prevista através do projeto AL Tuning ( http://tuning.unideusto.org/tuningal/ ). Esse tipo de
associação pode trazer resultados muito positivos, mas nossa posição
marginalizada dentro da divisão internacional do trabalho intelectual nos
permite antecipar também a potencial desigualdade a ser gerada a partir daí
caso não exista proteção à autonomia e emancipação das nossas instituições de
ensino superior.
A recente experiência austríaca deve servir de
alerta para reforçar o papel histórico das universidades como elementos de
manutenção da cultura, no sentido amplo do termo. Estas não podem estar
restritas à inovação tecnológica se queremos que exerçam sua função de inovação
social.
O chamado dos estudantes vienenses nos é,
portanto, comum, e nossas ruas se únem através da sua indignação. Ocupemos!
* Layla
Jorge Teixeira Cesar é mestre em Sociologia pela UnB e participa atualmente
do programa MARIHE - Mestrado em Pesquisa, Inovação e Gestão de Ensino
Superior, uma ação do consórcio entre universidades na Àustria, Finlândia,
China e Alemanha. Faz parte da rede Diálogos
Lyrianos – O Direito Achado na Rua
[1] As eleições para presidência na Áustria
foram realizadas a 29 de setembro deste ano.
[2] O sistema de ensino superior austríaco é
gratuito para todos os cidadãos de países membro da União Europeia. Uma taxa de
anuidade – relativamente baixa para os padrões europeus – é também cobrada caso
os/as estudantes ultrapassem o tempo de formação regular de seus cursos.
[3] Österreichische Hochschülerschaft
[4] Österreichische
Universitätenkonferenz
Nenhum comentário:
Postar um comentário