Humberto Góes
Está para ser realizado nos dia 11 e 12 de setembro próximo, na Universidade de Brasília, mais especificamente, na FINATEC, com participação de especialistas da América Latina, o Seminário sobre "Acesso e Permanência dos Grupos Vulneráveis no Ensino Superior".
Também
está para acontecer a qualquer momento na mesma universidade a reintegração de
posse da sala ocupada pelo Centro de Assistência Social, já deferida
pela Justiça Federal no DF.
Antes de
seguir com o meu raciocínio, faço um parênteses.
Embora não
seja da mesma organização judiciária, essa decisão discrepante do direito em
vários aspectos emana de uma estrutura de Estado que
pouco dialoga com interesses de libertação do povo oprimido e explorado do
Brasil, e, por conseguinte, em muitos casos, se mostra omissa e
desrespeitosa. Não há posse porque não há animus domini. Não há posse porque no
direito público não existe o instituto da posse. Não há interesse público a ser
resguardado por um instrumento de direito privado utilizado como via
transversal para impedir o exercício de um direito público subjetivo, mais
ainda, de um direito humano consagrado em tratados internacionais e na
Constituição Federal de 1988, que é o direito de manifestação e de
reivindicação. Como em processo civil, não se pode opor um instrumento de
direito real, a reintegração de posse, a um direito pessoal, que é o direito de
se manifestar. Mesmo assim, é a posse e
a sua reintegração que são utilizadas para impedir que a manifestação, que a
luta por novos direitos seja vivenciada.
No bojo
dessa forma de pensar alheia aos problemas reais do povo brasileiro emana outra
decisão cujos termos indicam uma tentativa de o Judiciário se esquivar quanto a
injustiças vivenciadas pelo povo. Agora, o que se observa é a omissão quanto ao
julgamento de pedido de liberdade provisória de quatro militantes presos nas
manifestações por direitos ocorridas nesta sexta-feira 06 de setembro feito
pela Defensoria Pública do Distrito Federal, após articulação da Assessoria
Jurídica Popular Roberto Lyra Filho da UnB.
Sob
pretexto de ser incompetente por não ter recebido oficialmente os autos de
prisão em flagrante, o juiz de plantão no Fórum Fagundes Leal na noite desse
mesmo dia 06 optou por admitir como certa a ressignificação jurídico-penal do Governo
do Distrito Federal para criminalizar integrantes de movimentos sociais.
Mesmo diante
de parecer do Ministério Público favorável à liberação, a omissão do juiz permite
que o GDF dê interpretação ampliativa, inconcebível no âmbito do direito penal,
e restritiva, também de modo inconcebível, agora, no âmbito dos princípios e
direitos constitucionais, para que se desnature o direito de manifestação
eliminando do seu conteúdo os direitos de resistir e de criar meios para que tenha
êxito.
Ratificar
por omissão a prisão política, por crimes de desobediência e dano ao patrimônio
público, de quatro militantes também permite que o GDF se sinta livre para promover
a criminalização das lutas sociais, nem que isso exija todo o aparato do Executivo
(o que não faz, por exemplo, quanto ao genocídio da população negra e pobre da
periferia), incluindo a polícia técnico-científica para configurar o suposto
dano ao patrimônio público (rapidamente peritos constatam o rebaixamento do
asfalto causado pela queima de pneus em via pública).
Age igual
o magistrado que, em lugar de discutir a arbitrariedade das prisões de
integrantes de movimentos sociais, sobretudo, diante da liberação pela polícia
do GDF de 50 (cinquenta) outros manifestantes acusados também de dano ao
patrimônio público neste dia 07 de setembro, em lugar de revogar a prisão em
flagrante, apenas reduz a fiança de R$ 2.000,00 (dois mil reais) para um
salário mínimo. Esta atitude indica um claro propósito de não discutir a
violência e a ilegalidade das prisões, de reafirmar o processo de
criminalização dos movimentos sociais, bem como de aceitar o uso de duas formas
de atuação quanto ao tipo de manifestantes, sua condição de classe, as pautas
que carregam, mas, principalmente, impedir os mais pobres de se organizarem, de
lutarem por direitos, de exigirem condições dignas de vida.
Apesar das
diferenças, em certo aspecto, a atitude apresentada guarda semelhança com a decisão
de reintegração de posse da sala do Centro de Assistência Social. No
mínimo, dá indícios da tentativa de anular o direito de reivindicar daquelas
pessoas que, com as suas demandas, ensejam o debate sobre os rumos da política,
sobre os fins a serem alcançados.
É para
falar dessa reintegração de posse ou, mais propriamente de seus efeitos, que
retorno ao que dizia anteriormente e fecho o parênteses.
Na UnB,
duas grandes contradições me parecem estar acontecendo. A primeira, um
evento como esse em um espaço privado que parece andar na contramão das
necessárias preocupações da Universidade com os grupos oprimidos e explorados
da sociedade. Um lugar que se constituiu do uso da universidade pública para
fins privatizantes, conforme se pode depreender da história recente da UnB.
Não sei
exatamente o que é, quem representa e o que pretende a Rede de Direitos Humanos
e Educação Superior (DHES), mas é preciso perceber que um tema como esse
demanda coerência com a própria educação pública e com o sentido libertador que
devem carregar os direitos humanos. Não pensar sobre isso é de alguma forma
admitir uma perspectiva de universidade que anda de passo com a segunda
contradição.
Esta é
representada pela reintegração de posse de uma sala ocupada por estudantes,
cujo animus é apenas e exclusivamente
o de manter um espaço público para fins públicos. Ou seja, inexiste vontade de
apropriação privada; inexiste interesse em tomar para si e de fazer como seu o
espaço da universidade. Ao contrário, a ocupação pelo Centro de
Assistência Social, como todas as outras ocupações de salas para a fundação de
Centros Acadêmicos, como a história indica, reafirma a universidade e o seu
caráter público.
Não é o
caso da FINATEC e de várias outras fundações de apoio, por exemplo. Estas
ocupam a universidade retirando dela a sua autonomia e o seu caráter de
instituição pública. Tomam o espaço físico com animus domini, com fins privados
fincados na exclusividade, na disposição absoluta do lugar, incluindo
a cobrança pelo uso. Esta sim precisava deixar de existir na Universidade
de Brasília, se não formalmente, pelo menos, fisicamente. Se é uma fundação
privada, com interesses privados, por conseguinte, que se liga à Universidade
como algo ou alguém que se acopla a outro para manter e incrementar a sua
existência e seus fins privados; que, para ser e realizar seus interesses,
precisa sugar do outro as condições de manutenção, a única opção visível dentro
do Direito seria que se formasse fora do espaço da Universidade, que se mantivesse
em lugar semelhante aos seus fins, privado.
Embora não
seja a minha intenção chamar as fundações de apoio de parasitas, considero que
a mescla de interesses privados e públicos no mesmo lugar se mostra
historicamente bastante prejudicial ao público. É como se se constituísse ao
modo como atuam os parasitas, sobrepondo os seus interesses ao interesse do
todo. Afinal, qual a sorte de um parasita?
É de seu
ser buscar sempre e cada vez mais tirar do outro parcela de sua força vital
para fazer desta o seu próprio ser, o seu próprio existir. É do parasita viver
à custa do outro e, quanto mais próximo, seja acoplado ou, mais grave ainda,
dentro do organismo, mais pode sugar, mais pode retirar as condições do
outro para fazê-las suas.
Parece-me
ser próprio dos parasitas a insaciabilidade. Estes não cansam sua vontade
de apropriação enquanto houver vida, enquanto houver o outro, enquanto houver
alteridade. Porque um parasita anseia sempre em transformar o outro nele mesmo;
em fazer do outro ele próprio; em fazer de dois um só, anulando o interesse do
outro como quem fagocita os objetivos, as expectativas, as responsabilidades,
ainda que, diante da morte de quem lhe dá vida, este corra igualmente o risco
de desaparecer pela falta do hospedeiro.
Continuando
a comparação com elementos da biologia, promover a reintegração de posse que
estamos prestes a ver na UnB, é como anular uma estrutura que dá vida, que
defende a vida, que luta para que o organismo se mantenha protegido porque
deixa sua dinâmica igualmente resguardada; é como atacar os meios de defesa, em
vista de constituir ao parasita as condições para seguir sua sorte, quem sabe
até permitir que este transforme tudo no seu exclusivo destino. Talvez, não sei
bem ainda, esta atitude seja como no caso das doenças autoimunes em que as
células de defesa são responsáveis pelo ataque e pela destruição do corpo que
deveria defender.
Assim me
parecem as opções hoje dispostas na UnB. Com a reintegração de posse do CASSIS,
com o reforço às fundações de apoio, sem contar com a retomada do Conselho
Diretor, duas mensagens estão sendo trazidas à comunidade acadêmica (ambas
relacionadas aos princípios que dirigem as decisões universitárias): a primeira
é de que se estão refazendo os rumos que a UnB tinha anos atrás, com sobreposição
de interesses privados e com a transformação destes no interesse da própria
universidade, minando seu caráter de instituição pública com as
responsabilidades que decorrem dessa circunstância igualmente. A segunda
mensagem é que é preciso enfraquecer tudo o que possa colocar em xeque esse
propósito. Anular ações que representem demandas que a universidade, dominada
pelos interesses privados, não pode ter.
Ter uma
ocupação de uma sala de um modo que foge aos planos traçados pela administração
centralizada, ainda mais, suportar uma ocupação que é realizada por uma
organização que lembra a universidade de suas responsabilidades públicas, de
seu compromisso social, seria admitir o risco ao empreendimento que se espera
muito rapidamente se ver completado. Seria admitir a convivência com dois
projetos de universidade que são intimamente incompatíveis. Por isso, é preciso
exterminar, de imediato um deles, nesse caso, o Centro de Assistência
Social, para seguir com a transformação de todo o interesse público da universidade
numa expressão do propósito privado que, agora, se traveste ao se normalizar e
se regulamentar utilizando instrumentos públicos internos de produção normativa
e condições de realização de poder que são emprestadas às instituições
públicas.
De forma
clara, estamos diante de opções políticas que, decerto, não estão a favor da
Universidade de Brasília, de sua comunidade acadêmica e, mais ainda, lembrando
que a universidade deve ser parte do mundo e não um mundo à parte, do povo que
a sustenta e financia esperando ver a assunção de um projeto universitário de
libertação.
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