José Geraldo de Sousa Junior
Reitor da UnB (2008-2012), membro da Comissão Justiça e Paz da
Arquidiocese de Brasília
Na conclusão de
seu estudo preliminar apresentado à Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de
Brasília, com o objetivo de abrir perspectivas de compreensão para orientar o
agir da entidade, o professor Melillo Dinis do Nascimento, depois de elaborar
uma consistente cartografia do processo de formação e de desenvolvimento da
cidade, expõe os desafios que precisam ser confrontados em face de sua funcionalidade.
Trata-se, diz
ele, de dar-se conta da “crise da cidade, de seus serviços, de um modelo de
sociedade, de sua economia, de suas instituições, de sua política, de uma
cultura, de seu meio ambiente, de sua juventude, de uma gente...” e descortinar
pressões “por mudanças, por esperanças, por diálogos...e por justiça e paz!”.
A referência a
esperança e diálogo é uma resposta imediata à convocação feita pelo Papa
Francisco em sua recente visita ao Brasil. De fato, Sua Santidade, propondo um
“diálogo construtivo”, apto a reabilitar a própria Política, acentuou o seu
valor metodológico para enfrentar dificuldades de nosso presente social, que
nos deixam atônitos, sobre as tarefas solidárias que nos interpelam: “Entre a
indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o
diálogo. O diálogo entre as gerações, o diálogo com o povo, a capacidade de dar
e receber, permanecendo abertos à verdade”.
Ainda não podemos
dizer totalmente superada entre nós a tentação de tratar a questão social como
questão de polícia. A resposta à ocupação da cidade pela população pobre
continua, hoje, a considerar esses espaços interditados à livre circulação dos
subalternos, destituídos dos direitos modernos e da cidadania republicana.
Quando prefeito
de São Paulo o ex-Presidente da República Washington Luís, justificava a
criação de parques na cidade (Várzea do Carmo, 1916), pela necessidade de
higienização moral da cidade, livrando-a da “vasta superfície chagosa,
escalavrada, feia e suja”, formada pelos “restos inomináveis de vencidos de
todas as nacionalidades em todas as idades, todos perigosos”.
Desde então, as
políticas de restauração ou de revitalização dos centros urbanos são, em boa
medida, prisioneiras da tentação administrativa de livrar a cidade das
populações de rua, segundo essa lógica, dificultando o seu acesso aos espaços
de uso – viadutos, praças, marquises – com edificação de obstáculos
arquitetônicos e com repressão direta.
A recusa de
reconhecimento aos direitos de uso da cidade faz-se também na forma de um
fascismo societal desumano, com a violência do extermínio na forma de chacinas
frequentemente divulgadas e de atos de barbárie, como a queima de mendigos.
Essas práticas tornam as classes sociais iguais apenas na intolerância e no
desprezo aos excluídos não percebidos em sua alteridade e vistos, assim, na
lógica econômica do egoísmo como excedentes e, portanto, descartáveis.
É certo que o
protagonismo social age por preservar o direito republicano, mesmo na pobreza,
do uso da cidade, como expressão de cidadania. Não só as populações de rua se
organizam para defender seu modo de vida e suas formas de apropriação e de uso
da cidade, como se constituem alianças, entre elas e as organizações da
sociedade civil, para garantir esses direitos.
Dessas alianças surgem proposições para novas abordagens do problema,
firmes na convicção da necessidade de diálogo confiante entre os moradores e
trabalhadores de rua, convencidos de que seu modo de vida tem que ser
considerado no processo de inclusão social.
Insere-se nessa
perspectiva de aliança a ação pastoral à qual é solidária a Comissão de Justiça
e Paz, firme no objetivo de fazer avançar a motivação da Pastoral do Povo da
Rua e dos Grupos Eclesiais que atuam junto à população de rua na Arquidiocese
de Brasília, sobretudo em função do aumento constante dos casos de violação dos
direitos das Pessoas em Situação de Rua (PSR) e Catadores de Material
Reciclável (CMR), especialmente quando se descortina um cenário de incremento
nocivo de ações decorrentes da gestão de megaeventos esportivos que estão se
realizando e ainda se realizarão em nossa cidade.
É preciso não
perder de vista a reserva de dignidade que humaniza o sujeito que se encontra
na condição de povo de rua, circunstancialmente, recentemente ou até
permanentemente, e as dificuldades que acabam por afetar a sua realidade, como
nos recorda um morador de rua, licenciado em pedagogia na UnB ao final de 2012,
em seu trabalho de conclusão de curso (As Dificuldades dos Moradores de Rua no
Distrito Federal de se Inserirem por Meio da Educação Formal). Em seu texto,
Sérgio Reis Ferreira revela essa dramática realidade de exclusão social
vivenciada por esse segmento da população, “na perspectiva da violação de
direitos e das estratégias de sobrevivência desenvolvidas”.
Daí o relevante
trabalho que no Distrito Federal vem sendo implementado pela Secretaria de
Desenvolvimento Social e Transferência de Renda – SEDEST, atenta ao núcleo
altamente promissor de possibilidade alavancadora do engajamento produtivo
desse segmento. Com efeito, como demonstra a pesquisa “Renovando a Cidadania”
(HTTP://noticias.r7.com/distrito-federal/noticias/71-dos-adultos-moradores-de-rua-do-df-trabalham-para-o-proprio-sustento-20121119.html),
das 2.512 pessoas que vivem em situação de rua no Distrito Federal, 71% dos
adultos trabalham para o próprio sustento, sendo que os casos de drogadição são
minoria e, o maior percentual (23,3%), diz respeito a pessoas que romperam vínculos
familiares.
Importante é que
as abordagens rejeitem estratégias de recolhimento forçado, ou seja, de
retirada compulsória dos moradores de rua, não só pela violência que elas
carregam, como pela falta de complemento social em termos de programas públicos
(saúde, atendimento a usuários de drogas, abrigos, atenção à família, educação,
alternativas de produção financiadas), mas pela absoluta ausência de
perspectiva emancipatória que abra tais abordagens a uma cultura de cidadania e
de direitos.
* Uma versão reduzida deste texto foi publicada com o titulo Grito de
Esperança por Justiça e Paz na edição de 05/09/2013, pág. 21, Seção Opinião, do
Correio Braziliense
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