O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Diários de Viagem - Impressões sobre o Japão

O texto abaixo é um e-mail que enviei ao Prof. José Geraldo relatando minhas primeiras impressões sobre a nova realidade acadêmica na qual estou inserido. Meu nome é Diego Nepomuceno Nardi, recém graduado em Direito pela Universidade de Brasília.

Em 2012, fui selecionado pelo governo japonês para receber uma bolsa de pós-graduação e realizar meus etudos na Universidade de Nagoya, Escola de Desenvolvimento Internacional dentro do programada de Desenvolvimento Social e Cultura. Meu projeto de pesquisa está relacionado às políticas de enfrentamento a situações de desastre e iniciativas endógenas das comunidades para tornarem-se resilentes e reconstruirem-se enquanto assumem o protagonismo do seu próprio desenvolvimento, elencando valores, objetivos e indicadores a partir de suas próprias concepções e de seus próprios projetos de vida. 

No entanto, não tenho certeza se será esse o projeto que levarei adiante. Porém, tenho certeza que as experiências vividas ao longo dos meus anos na UnB tiveram um papel fundamental para minha decisão em focar meus estudos na temática do desenvolvimento, sobretudo desenvolvimento comunitário. Essas mesmas experiências serão fundamentais para me ajudarem a decidir meus próximos passo.

Vejo em O Direito Achado na Rua uma valiosa ferramenta para uma revolução na relação entre Universidade e Sociedade, possibilitando a construção de relações que promovam a democratização do conhecimento e o empoderamento das comunidades que cada vez mais se veem privadas de seus espaços de sociabilidade e construção de significados comuns, indispensáveis para uma atuação políticas transformadora. A reflexão proposta pelo O  Direito Achado na Rua acerca dos espaços políticos nos quais sujeitos coletivos inauguram novas práticas que enunciam direitos é fundamental para uma análise crítica dos discursos relacionados ao Desenvolvimento, evidenciando e combatendo práticas que nada mais são que o velho colonialismo vestido em novas roupas. 

Uma mudança tão radical de paradigma tem ocasionado em mim diversas reflexões. Espero poder compartilhá-las, apresentando um relato sobre o Japão, sempre traçando um paralelo com minhas experiências no Brasil, com especial enfoque em questões sensíveis ao Direito Achado na Rua, sobretudo aquelas que mais me interessam: universidade, movimentos sociais e gênero.  

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Professor,

Como vai? Espero que tudo bem!

Hoje faz 21 dias que estou aqui, ainda estou me adaptando. Nos primeiros seis meses, terei aulas de japonês e cultura japonesa, enquanto me adapto a realidade daqui e à universidade. Mas já tive reuniões com minha orientadora e já programei visitar a região de Tohoku, afetada pelo terremoto de 2011. Lá, irei acompanhar algumas iniciativas locais de reconstrução geridas pela própria comunidade .

Sobre o Japão, devo dizer que as coisas aqui são muito diferentes.

Apesar de já conhecer o campus com certa desenvoltura e ter conhecido boa parte dos meus colegas, há em mim um sentimento que eu posso resumir como "falta algo nessa Universidade". A infra-estrutura é invejável, um campus extremamente organizado, no coração de Nagoya, com amplo acesso aos meios de transporte públicos, com intensa atividade de pesquisa e que lembra em sua arquitetura a UnB (A Biblioteca Central é um misto da nossa biblioteca com a FD). Porém, por mais que seja possível ver dia e noite pessoas estudando nos laboratórios, a Universidade parece estar sempre vazia. Os estudantes, pelo que tenho notado, não ocupam os espaços, não há movimentação política e parece inexistir um ambiente de crítica tão proeminente como na UnB. O pouco tempo pelo qual estou aqui e a falta de habilidade com a língua não me permitem fazer uma análise que tenha qualquer validade, porém, no contato inicial tenho sentido falta do ambiente academicamente estimulante e vibrante que sempre encontrei na UnB, com discussões inflamadas e sempre tão cheias de aprendizados que sempre existiu no contato diário com meus colegas. Sobre a extensão, acredito que inexista algo similar. Talvez, a incapacidade de me comunicar em japonês ainda seja uma barreira para alcançar essas iniciativas, mas, pelo que tenho visto, não há nada parecido com essa experiência autêntica que as universidades latino americanas vêm construindo. Mas, apenas o tempo irá confirmar ou não minhas primeiras impressões.

Depois de quase seis anos respirando UnB, está sendo bem difícil me acostumar com esse novo ambiente Universitário. Isso tem me mostrado como a UnB é de fato uma Universidade única e que, apesar de todos os percalços que encontramos no meio do caminho ao longo de sua história, ela já caminhou longe e tem potencial para ir além. E tem me mostrado como a experiência universitária latino americana possui sua originalidade que, apesar das tentativas de enquadrá-la em um modelo eurocêntrico, reforçam o papel das nossas Universidades como verdadeiras instituições democráticas, ou que assim devem ser.

No mais, vários aspectos sociais que são reproduzidos no âmbito da Universidade têm chamado minha atenção e, em certos momentos, causado até mesmo aflição. As relações no âmbito acadêmico parecem ser demasiadamente distantes e hierárquicas, o que tem representado um choque para mim que, ao menos em relação a minha experiência universitária, tive uma relação de proximidade e amizade com professores da FD e que construi amizades em ambientes tão estimulantes como os do movimento estudantil e da extensão.

Além disso, o Japão é um país extremamente conservador, destacando-se o questões de gênero: mulheres precisam incorporar o nome do marido, há uma infantilização da personalidade feminina e do seu corpo, pouco espaço para debates sobre direitos reprodutivos e por aí vai. No entanto, apesar das mulheres japonesas demonstrarem em várias pesquisas insatisfação, elas parecem não conseguir reivindicar publicamente seus anseios, e até mesmo na Universidade o debate de gênero aparenta ser tímido, existindo somente no plano teórico, dentro dos departamentos que atuam com o tema. Tenho buscado material para compreender mais sobre a questão, e até mesmo procurado movimentos que lidem com a questão por aqui, mas não tenho econtrado muita coisa - mais uma vez, talvez seja a barreira da linguagem.

O excesso de organização e limpeza tem causado um certo desconforto em mim em alguns momentos, um verdadeiro choque cultural. A ausência de manifestações artísticas nas paredes, nas ruas, nos espaços públicos e, até mesmo, a ausência de moanifestações públicas, mostram para mim que estou em um paradigma completamente distinto de sociedade.

Ao lado do meu dormitório há uma escola de ensino fundamental e, de vez em quando, fico por algum tempo observando como as coisas ocorrem ali. A divisão de papéis sociais entre as crianças é - aos olhos de alguém que se considera feminista e luta pela desconstrução desses papéis - preocupante. Por um lado, estou extremamente receoso em estar impondo meus padrões culturais a uma cultura diversa, e, a todo momento, questiono meu próprio ponto de vista. Por outro, não consigo deixar de sentir um profundo desconforto quando um professor, por exemplo, afirma que tal palavra pode ser usada por garotos, mas, jamais, por meninas, ou quando descubro o quão difícil é para uma adolescente japonesa fazer uso de pílulas anti-concepcionais.  Uma estudante de doutorado brasileira que tive a oportunidade de conhecer possui três filhos e os três estudam aqui: o relato dela sobre como a escola dociliza as crianças talvez mostre um dos mecanismos que explique a aparente passividade política que parece imperar por aqui (como disse, isso são minhas primeiras impressões - alguns artigos que li afirmam que essa visão de passividade da sociedade civil japonesa é um mito, e talvez seja. Por outro lado, há artigos que apontam que após fracasso da esquerda na década de 70, os movimentos contestatórios passaram a ser mal vistos, o que levou a uma desmobilização que apenas recentemente mostrado sinais de melhorias). Semana passada, um processo movido por um grupo de crianças contra o governo Japonês solicitando indenização e imediata evacuação em decorrência do acidente nuclear que ocorreu em março de 2011 foi manchete por aqui. Os jornais deixavam claro que não é comum um grupo social opor seus interesses contra o Estado. Tanto é assim que as crianças, por meio de seus representantes, solicitaram que a ação tramitasse sob sigilo judicial, pois temiam ser repreendidas socialmente em decorrência de tal atitude.

É claro que há inúmeras coisas boas por aqui. A preocupação ambiental refletida nas políticas de tratamento de resíduos sólidos, os laços comunitários que ligam os habitantes das cidades em associações que estão sempre prontas a dar suporte aos seus integrantes (sendo importantes mecanismos na prevenção e superação de situações de desastre), assim como o espírito de solidariedade que parece permear as relações sociais por aqui são pontos que têm despertado minha curiosidade e que podem apresentar experiências que tenham muito a nos ensinar. Além disso, a comunidade de estudantes internacionais é enorme, sobretudo de países africanos e do sudeste asiático, possibilitando-m uma oportunidade única de conhecer culturas diversas e discutir vários temas a partir dos mais diversos pontos de vista. No mais, a estrutura para pesquisa e ensino da universidade é fantástca.
Peço desculpas pelo e-mail tão extenso, mas é difícil responder como as coisas vão por aqui sem abrir tantos parênteses.
Um abraço,
Diego

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