AULA DA INQUIETAÇÃO - 30/10/2012
Edu Lauton/UnB Agência |
Ensinamentos de um "rebelde competente"
Doutor
Honoris Causa da UnB é o participante da última Aula da Inquietação,
com um dos maiores públicos na gestão de José Geraldo de Sousa Junior
Luciana Barreto - Da Secretaria de Comunicação da UnB
Fonte:http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=7265
Luciana Barreto - Da Secretaria de Comunicação da UnB
Fonte:http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=7265
Conhecimento
entoado como emancipação; indignação, rebeldia e alegria em um só
brado; vozes, gestos e bandeiras ecoando um movimento que se mostra
plural, transformador, libertador. O incisivo calor e a baixa umidade
não se fizeram adversos, e quase duas mil pessoas no teatro de Arena, no
campus Darcy Ribeiro, na Universidade de Brasília, acolheram – com
atenção e entusiasmo (veja aqui)
– as palavras, provocações e chamamentos do renomado e irrequieto
sociólogo português Boaventura de Sousa Santos em um espaço que lhe foi
absolutamente apropriado: a Aula da Inquietação, uma iniciativa da
gestão de José Geraldo de Sousa Junior, em sua oitava edição.
De
modo criativo e despojado, os eventuais picos de luz que sustaram o
microfone não o impediram de falar. Pelo contrário, Boaventura não se
fez de rogado. A situação o impeliu a assumir o megafone e circular por
entre os alunos para propor o que compreende como o grande motor e
matriz da inquietação transformadora, a “rebeldia competente”. O
percurso político e a biografia intelectual do sociólogo foram
reverenciados em cerimônia ocorrida na noite anterior – leia matéria aqui
–, na qual recebeu o título de Doutor Honoris Causa por sua recorrente
presença e inegável contribuição à Universidade de Brasília.
LUTA KAIOWÁ –
De início, uma quebra de protocolo se mostrou justa, providencial e
legítima. Com assentimento do reitor José Geraldo de Sousa Júnior,
anfitrião da Aula, um grupo de estudantes-manifestantes, com cartazes,
tambores e faixas, lançaram um apelo pelo direito ao território do povo
Guarani-Kaiowá e, na seqüência, o líder indígena Ash fez uma comovente e
contundente fala. “A cosmologia da floresta está sendo atacada, e o
chamado progresso está destruindo a natureza. Sem espiritualidade e sem
essa cosmologia, o mundo está ficando doente de arrogância, hipocrisia e
egoísmo. E para tratar o câncer que resulta disso tudo a medicina
alopática rouba nossa matéria-prima e patenteia nossas plantas, e não
existe propriedade na natureza”.
Edu Lauton/UnB Agência |
Ash
aproveitou para convidar a todos para a Marcha contra o Genocídio dos
Guarani-Kaiowá, a ser realizada nessa quarta, 31, no Museu Nacional da
República, às 10h. “Prestem atenção na cosmologia das florestas, pedindo
ainda aos antropólogos que se formaram dentro das aldeias que “não
escrevam só livros, mas ajudem, atuem, apliquem”.
Para
o líder indígena, “diploma é só um papel, uma chuva o desfaz; o que
nunca vai se desfazer é o diploma consciente dentro do espírito e da
mente de cada um”. Em um momento em que foi muito aplaudido, lembrou que
“Pedro Álvares Cabral não descobriu o Brasil, nós já estávamos aqui
muito antes dos colonizadores e bandeirantes”, complementando que “o
conhecimento está na biblioteca, mas também na natureza, em um pássaro,
em uma árvore, numa folha caindo, no vento que muda de direção. Que o
coração de vocês, como o vento, também mude de direção e de sentido,
pois a espiritualidade e a política têm de estar juntas, afinal somos
cidadãos, jovens e ‘evolucionários’”.
SAUDAÇÃO –
Para o idealizador e anfitrião do evento, o reitor José Geraldo de
Sousa Júnior, “essa Aula da Inquietação coroa o acolhimento aos novos
estudantes, permeado pela Semana Universitária e pelo Festival Latino
Americano de Arte e Cultura (FLAAC), em que esses jardins chegaram a ter
30 mil pessoas acompanhando os eventos que celebram nosso
cinquentenário”.
Edu Lauton/UnB Agência |
Segundo
José Geraldo, o titulamento de Boaventura, “esse intelectual ativo,
transformador, esse cidadão do mundo”, como Doutor Honoris Causa
representa “o significado de uma Universidade que, em sua biografia e
percurso, traduz a lealdade de seus fundadores, uma Universidade que é
excelente, pois comprometida com conhecimento de ponta e também com o
desenvolvimento social e com o povo – povo aqui expresso, por exemplo,
na liderança de Ash”, acrescentando que “uma universidade necessária é
também uma universidade emancipatória”.
REBELDES COMPETENTES –
Para contornar as renitentes quedas de energia, Boaventura, de início,
valeu-se do megafone, fazendo jus ao tom e expandindo o espírito
esperado de uma Aula da Inquietação. “Impedir o suicídio coletivo do
povo Kaiowá é uma luta a ser encampada por todos”, reiterou, sublinhando
a legitimidade trazida pela liderança indígena e aproveitando para
lembrar o quanto é importante pressionar o Supremo Tribunal Federal
(STF), responsável pela decisão de mérito quanto à posse da terra.
“Os
povos indígenas têm razão, pois a realidade é o que ainda não existe. A
realidade são nossas aspirações a serem realizadas, é algo mais
complexo do que está diante de nossos olhos”, provocou Boaventura, ao
lançar e defender a necessidade de as universidades investirem na
formação do “rebelde competente” em contraposição à grande massa de
"conformistas incompetentes".
De modo didático,
vibrante e entusiasmado, o sociólogo prosseguiu com sua aula, afirmando
que “o rebelde competente não deve aceitar soluções impostas como as
únicas válidas e sensatas. Há sempre outras alternativas e outros modos
de ver a realidade”. Para tanto, é fundamental valer-se do que chama
de "ecologia dos saberes" e a valorização de todos os conhecimentos
plurais e heterogêneos.
ALEGRIA, PROVA DOS NOVE –
Uma das emblemáticas frases do escritor modernista Oswald de Andrade
foi evocada por Boaventura para ilustrar o eixo mobilizador que deve
orientar e sustentar o gesto da inquietação transformadora: “a alegria é
a prova dos nove”. De acordo com ele, “essa é mensagem dos indignados
da Grécia, do Portugal e da Espanha, por exemplo”. Ainda na ilustração
do conceito da rebeldia competente, defendeu que esse rebelde deve
conjugar “razões convincentes a paixões mobilizadoras”.
Paulo Castro/UnB Agência |
Já
com microfone na mão, o que melhorou a repercussão e o alcance do som
para um público curioso e participativo, o sociólogo expôs as sete
grande ameaças que o mundo precisa enfrentar. A primeira está associada
ao Estado a serviço dos negócios e não dos cidadãos – “situação na qual o
rebelde competente deve exercer uma diária e crítica vigilância”. A
segunda ameaça é a desvalorização da democracia, “que cada vez mais vale
menos, sendo fundamental democratizar a própria democracia, já que não
participamos das coisas mais importantes de nossa nação”.
Já
a terceira ameaça apontada por Boaventura é a destruição da natureza –
“por que a natureza não pode ter direitos?” – e a quarta estaria voltada
especialmente à Espanha, Portugal, Grécia, África do Norte, pois nos
países grego e espanhol, por exemplo, “50% dos jovens estão
desempregados, e o perigo é a distinção entre trabalho pago e não pago
desaparecer”, o que configura a maior das explorações, apontando para
uma “civilização voraz e sem regras, destruidora dos valores coletivos”.
COMERCIALIZAÇÃO - Por fim, nessa
esteira de alertas, Boaventura falou ainda sobre a quinta grande ameaça,
que é a “comercialização e mercantilização do conhecimento – “e a
necessidade de impedir que a universidade valorize somente o
conhecimento com valor de mercado”, defendendo que um pensamento crítico
e independente deve destruir essa tendência, inclusive a lógica de se
valorizar mais as produções e publicações voltadas para o currículo
lattes que as atividades associadas aos movimentos sociais.
Sobre
a sexta ameaça, o sociólogo levantou o perigo da “criminalização do
protesto social” – “e os poderes políticos não costumam gostar disso”,
mencionou citando exemplos próximos de afrodescendentes e indígenas
perseguidos na América Latina, muitas vezes “presos como terroristas”.
“Bloquear estrada para impedir que suas comunidades e história sejam
destruídas é crime?”, indagou. Como última “significativa e séria
ameaça” o fato de como “a herança colonial persiste em nossos corações”.
Explica, aproveitando para provocar: “existe ou não racismo no Brasil,
até mesmo a despeito de muitas instituições que progrediram a partir de
ações afirmativas?” Segundo ele, “o racismo no Brasil é insidioso e tão
inteligente que parece não existir”, alerta. "Nossas lutas são todas as
lutas, não apenas as que pertencem a determinados grupos ou países".
No
encerramento da Aula, o Teatro de Arena da UnB pareceu assumir a sua
acepção grega originária – um espaço vivo e catártico no qual a
comunidade toda se ressignificava a partir dos atos ali encenados. E na
encenação do real, Boaventura contou com a adesão – em uníssono – de
quase duas mil pessoas, quando em coro com ele repetiram: “Prezados
companheiros indignados, a vossa luta é a nossa luta; somos 99% e eles,
1%; se nos fecharem o futuro, abrimo-lo de novo; se nos negam as
instituições, a rua é afirmativa; se nos negam a democracia,
democratizaremos a democracia; e a prova dos nove é a
alegria”. Vibrantes provocações e iluminadores ensinamentos que
certamente se inscreverão na história e no imaginário da Universidade de
Brasília.
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