O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta
sábado, 23 de janeiro de 2016
Cuidado: uma epifania pode revelar o injusto
Patrick Mariano
“Ora, aconteceu que, indo eu já de caminho, e chegando perto de Damasco, quase ao meio-dia, de repente me rodeou uma grande luz do céu”. (Atos 22:6)
Merecer la vida, no es callar y consentir/Tantas injusticias repetidas/ Es una virtud, es dignidade/Y es la actitud de identidade/Más difinida!
- Honrar la vida, Eladia Blázquez
É Saramago, em uma das primeiras páginas mais belas da literatura, quem abre o livro Levantados do Chão com uma pérola: “O que mais há na terra, é paisagem”. O capitalismo faz com que se possa adaptar o mestre português para dizer que o que mais há na terra é a sua tentativa de estabelecer o egoísmo e a indiferença para com o outro como tônica da relação entre homens e mulheres.
O contrário do egoísmo é a alteridade. Da indiferença, o amor[1]. O amor é uma experiência transfomadora e revolucionária, não à toa Che Guevera dizia que “todo verdadeiro revolucionário é movido por grandes sentimentos de amor”. Nas relações humanas é a consciência do outro, no sentido do respeito e compreensão (cuidado), quem deveria conduzir os encontros cotidianos. O capitalismo risca a alteridade, a ternura e o cuidado do mapa. Em seu lugar, faz com que o medo ocupe lugar de destaque.
Isso faz com que nos tornemos indeferentes à dor alheia, aos seus dramas e formas de ver a vida. Incapazes de ocupar o lugar do outro, passamos a naturalizar processos e situações de violência e injustiça. Mas ainda há esperança.
***
No início dos anos 2000, em um acampamento sem-terra no Pontal do Paranapanema, interior de São Paulo, um coronel da polícia militar, após realizar uma ação de busca e apreensão nos barracos de lona à procura de carne e macarrão – produto de dois caminhões saqueados no dia anterior por aqueles trabalhadores e trabalhadoras – chegou em casa e teve um daqueles momentos a que podemos chamar de epifania.
Algumas horas antes da transformação, durante o dia quente, adentrou naqueles casebres e viu a situação daquelas famílias. Já tarde da noite, pegou o telefone e discou para uma das lideranças do MST. Ligou porque não conseguia dormir. Ao ver os próprios filhos em casa, depois de ter visto os filhos daqueles homens e mulheres que quase nada possuíam além da própria dignidade, perdeu o sono, mas ganhou algo revelador: a consciência ética da alteridade.
Durante quase uma hora quis saber sobre realidade da vida cotidiana de Josés e Diolindas, donos das casas as quais havia entrado em cumprimento a ordem judicial. Queria saber como poderia fazer para ajudar.
Aquele homem treinado durante décadas com o rigor das academias militares a comandar, sufocar sua alteridade e enxergar no outro um inimigo, rompeu numa tarde de sol forte no interior de São Paulo muitas das amarras que foi formatado a ter. Desprendeu-se e encontrou o que sempre esteve ali ao lado ou mesmo dentro de si. Nunca mais foi o mesmo.
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Procuro há muitos anos por uma reportagem do JN. A cena era o cumprimento de uma ordem judicial que determinava a destruição de uma casa. O oficial de justiça acompanhava o trabalho do motorista da máquina que transformaria em entulhos a sala, quarto, cozinha e a memória de uma família que viveu durante muitos anos naqueles poucos metros quadrados.
O motorista, surpreendendo a todos, antes mesmo de dar a estocada fatal, paralisou. Abaixou a cabeça sobre o volante da máquina e se recusou a destruir. O oficial então mandou que a polícia o obrigasse. Tentou mais uma vez e estancou em sua própria consciência. O homem que comandava a máquina, um simples operário, foi mais humano e teve a dignidade que faltou ao magistrado que decidiu.
Preso por desobediência à ordem judicial, foi conduzido aos prantos até a viatura policial. Recebeu, porém, enquanto caminhava, aplausos. Sinal de que a humanidade não residia somente nele ou naquela casa, mas também era compartilhada por quem acompanhava a cena. Aquele obreiro não somente viveu uma epifania como a irradiou.
São essas cenas que vez ou outra nos surpreendem e resgatam certo otimismo em meio à insensibilidade que se firma como tônica do sistema de produção capitalista. Sistema que não somente sufoca a existência do outro, como faz com esses exemplos sejam quase que uma clarividência em meio à cegueira reinante.
É que com o o fim da história defendido pelos neoliberais o sentido da existência não passa pela ideia do justo, bom e belo da vida. A solideriedade é vista como algo pontual.
Pouco importa se a ordem judicial para destruição da casa era justa ou se a fome impingiu aqueles trabalhadores a buscarem comida. A engenharia burocrática do sistema de justiça costumeiramente ignora essas nuances.
O ensino jurídico não trabalha com a ideia de justiça, mas sim com o positivismo mais tacanho. O estudante é treinado, assim como o policial, a não se questionar.
A falta de estímulo ao estudante de direito para criticar a realidade diante de si fabrica futuros atores jurídicos que não pensam, apenas aplicam o que imaginam ser a lei. A lei, não a justiça.
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Em um vídeo postado nas redes sociais sobre o processo de ocupação das escolas em São Paulo, uma das crianças deu aula de direito a um policial que, sem mandado judicial, quis entrar e retirar os estudantes.
Em que pese a nobreza das epifanias individuais pelas quais todos temos a oportunidade de passar, são os processos coletivos de tomada de consciência que possuem maior capacidade de transformação da realidade.
O trabalhador sem terra que decide ocupar o latifúndio percebe, no processo, que o fazendeiro é atendido sem demora pelo juiz que determina a ação policial de despejo e que a mídia o tratará como bandido. Se dá conta que a engrenagem do Estado protege o proprietário e que isoladamente não é nada, apenas força de trabalho. Daí porque o termo “Uni-vos” ganha destaque no em um dos documentos políticos mais significativos dos últimos séculos.
As lutas coletivas por moradia no espaço urbano revelam as contradições de uma cidade pensada para poucos e, ao se retirar o véu que encobre as suas nódoas, aquele trabalhador ou trabalhadora entende porque só pode acessar a cidade, com tudo o que ela tem de melhor a oferecer, para trabalhar.
É por isso que a ação coletiva dos pobres desperta tanto medo nas classes dirigentes e são demonizadas pela grande mídia. A luta pela redução do preço das passagens é perigosa ao sistema porque questiona o poder de grandes grupos empresariais junto aos governantes. É a polícia, portanto, quem deve receber os manifestantes e com eles tratar se valendo da sua usual cordialidade.
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Outro dia, em um desses vídeos da internet, uma mulher sozinha protegia um ladrão no Rio de Janeiro da sanha de linchadores. Ouviu muitos impropérios e quase foi agredida. Mas ficou ali, entre a irracionalidade daqueles homens, o ladrão e sua temerária decisão de agir de acordo com a sua consciência e ética. Foi repreendida inclusive pelo policial que tardou a chegar. Aquela mulher é uma metáfora da tragédia dos nossos tempos, mas também, esperança de que o capitalismo ainda não nos roubou tudo.
Atordoado, me concentrei na análise daqueles homens que agrediam a mulher e buscavam o sangue do ladrão. Por que agredir alguém já rendido, indefeso e mais fraco? De onde irradia esse ódio para tamanho desiderato? Falhei na tentativa de compreender.
Talvez estivesse a mirar o lado errado da cena. Era aquela mulher, corajosa, e íntegra que deveria tentar compreender. O que a levou a arriscar sua integridade física pelo ladrão? O que levou Saulo, aquele que perseguia os cristãos a se tornar Paulo no caminho de Damasco? Por que aquele motorista da máquina se recusou a cumprir a ordem judicial?
São essas as perguntas que devem feitas e essas as pessoas que merecem uma análise profunda por que nos devolvem aquilo que temos de mais pleno e merecedor no sentido de honrar a vida.
Patrick Mariano é escritor.
Junto a Marcelo Semer, Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe e Giane Ambrósio Álvares, assina a coluna ContraCorrentes, publicada todo sábado no Justificando.
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