sexta-feira, 17 de maio de 2024

 

Ética e Justiça Social

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Realizou-se em Brasília, nos dias 14 e 15 de maio, numa promoção da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, o XXIV Seminário Ética na Gestão. Tema: Ética e Diversidade no Serviço Público.

Com um temário instigante e convidados reconhecidos nos respectivos temas de atuação ou estudos – Ética no serviço público como ferramenta de justiça social, Ética Pública e a condição da mulher na sociedade, Instâncias Ética Disciplinar e Ouvidoria: papéis, interações e limites de atuação – o seminário organizou também, além das palestras, oficinas técnicas para que as comissões de ética setoriais do sistema público federal pudesse apresentar suas atuações e compartilhar experiências animadas pelas sugestões dos temas e seus expositores.

A convite doPresidente Manoel Caetano Ferreira Filho e de seus pares na Comissão de Ética Pública, proferi a palestra magna de abertura desse importante evento, com o tema que dá título a este artigo: Ética e Justiça Social.

Comecei lembrando que passados 14 anos, quando em setembro de 2010 se instalou o XI Seminário Internacional Ética na Gestão, então com o tema Ética, Direito e Democracia. Naquela oportunidade, a convite do Presidente da Comissão de Ética Pública, o Ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, participei do painel Ética e Direitos Humanos, um tema que conduz e tece o fio condutor da função ética que legitima a democracia.

Com efeito, naquela altura, conforme está nos anais (Presidência da República/Comissão de Ética Pública. Brasília: Esaf, 2010, p.22-29), conclui minha apresentação pondo em relevo a importância do seminário por ter proporcionado como mediação entre ética e direito, a democracia, porque a democracia é, exatamente, a expressão do processo a partir do qual nos tornamos continuamente humanos, forjando institucionalidades aptas a reconhecer novas subjetividades emancipatórias.

Os direitos humanos, com efeito, a partir das lutas sociais que os reconhecem, conferem, pela mediação democrática a ética pública de legitimação das sociabilidades instituintes, não porque sejam quantificados, colecionados num elenco burocrático de um almoxarifado legislativo, mas porque expressam relações interativas, relacionais, de um humano que se expande. É o que diz a Constituição brasileira, no salto entre o censitário que há 200 anos inscreveu a cidadania na renda e pelo patrimonialismo, pelo patriarcalismo e exclusão, alienou o humano do trabalhador, da mulher e dos indígenas, gerando o empreendimento capitalista-colonial, para se fazer cidadã (1988), devolvendo ao social emancipado a subjetividade ativa participativa que abre a pauta dos direitos ao processo democrático, para além do elenco positivado, de modo a incluir todos os direitos que derivem da natureza democrática do regime e da consideração aos direitos humanos(art. 5º, parágrafos).

Recupero o enunciado final de minha exposição, durante o XI Seminário:

Participei há quinze dias, de dois eventos, coicidentemente simultâneos que se deram em lugares distintos: um a convite da Ouvidoria do Servidor Público do Ministério do Planejamento e outro a convite do Tribunal Superior do Trabalho em relação a OIT. Nos dois eventos, uma discussão comum: o trabalho decente. No primeiro caso, no que diia respeito ao Ministério do Planejamento, para reivindicar que nas relações de trabalho nos déssemos conta de que a emancipação dos sujeitos, as formas de dignidade do trabalho, inserem problemas que precisam ser considerados na interferência ética da análise dos processos, mesmo sabendo dos limites da atuação das comissões de ética, cujo efeito mais operante é a censura, a nota de desabono, e que vivem o drama cotidiano de realidades não perceptíveis porque disfarçadas em princípio de legalidade ou de autoridade. Em meio a isso, o abuso da autoridade e o assédio moral difuso. A outra questão foi a que se vivenciou no TST sobre o mesmo tema. Partindo do pressuposto de que o trabalho decente é entendido como aquele adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, seja capaz de garantir uma vida digna. E, portanto, insere com uma leitura necessária o fato de que a percepção do que é decente é um paradigma que é preciso inferir a partir das mediações éticas construídas por meio das relações de trabalho. Uma realidade que ainda hoje interpela a justiça do trabalho, que resiste em salvaguardar o núcleo irredutível da dignidade inscrita nos direitos humanos, em face de uma hostilidade neoliberalizante do próprio sistema de justiça, do piso ao teto.

Na minha conclusão, cuidei de realçar que a agenda nacional e internacional de discussão sobre o trabalho decente, está convencionada em vários de seus fundamentos pelo enunciado cogentes dos direitos humanos, enquanto vão emergindo num cotidiano enriquecido pela leitura significativa do que são relações de dignidade, de difícil discernimento porque localizadas em clivagens problemáticas do legal e do ilegal, da moralidade e da ética.

Entretanto, para os objetivos da exposição inaugural, voltei ao tema da Ética e dos Direitos Humanos, para acentuar que o tema dos direitos humanos deve ser referido à práticas sociais emancipatórias, nas quais as transgressões concretas são sempre, produto de uma negociação e de um juízo político, uma busca de reciprocidade que seja critério geral de uma política democrática emancipatória, enquanto a forma e os meios de negociação deverão ser privilegiadamente os direitos humanos enquanto expressão avançada de lutas pela reciprocidade, na qual tenham lugar legítimo de reivindicação os diversos, os diferentes, os subalternos, que abrem horizontes para reconhecimento, para superar e vencer os obstáculos de inserção, obstáculos inclusive legais,historicamente marcados para a interdição de segmentos diversos e por profundas desigualdades sociais.

Note-se que Roberto Lyra Filho, na medida em que formulou a sua concepção de Direito, na abordagem de sua dialética social – “aquilo que ele é, enquanto vai sendo, nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta dentro do mundo histórico e social” – também indicou, como critério de avaliação dos produtos jurídicos contrastantes, na competitividade de ordenamentos, os direitos humanos.

E, nesse aspecto, resgatei meu velho mestre Roberto Lyra Filho, quando fala em direitos humanos enquanto síntese jurídica. Para ele, o processo social, a História, é um processo de libertação constante e dentro deste processo histórico, o aspecto jurídico representa a articulação dos princípios básicos da Justiça Social atualizada, segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem. Nesta perspectiva diz Roberto Lyra Filho:

Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade, em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas. À injustiça, que um sistema institua e procure garantir, opõe-se o desmentido da Justiça Social conscientizada; às normas, em que aquele sistema verta os interesses de classes e grupos dominadores, opõem-se outras normas e instituições jurídicas, oriundas de classes e grupos dominados, e também vigem, e se propagam, e tentam substituir os padrões dominantes de convivência, impostos pelo controle social ilegítimo; isto é, tentam generalizar-se, rompendo os diques da opressão estrutural. As duas elaborações entrecruzam-se, atritam-se, acomodam-se momentaneamente e afinal chegam a novos momentos de ruptura, integrando e movimentando a dialética do Direito. Uma ordenação se nega para que outra a substitua no itinerário libertador. O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda.

Vê-se, logo, nesta ordem de consideração, que a reposição do tema dos direitos humanos referidos ao contexto de práticas sociais emancipatórias, traz, por sua vez, o problema da inafastável e incindível base ética de toda normatividade, não obstante a pretensão cientificista de separação entre Ética e Direito, conveniente a uma conjuntura de localização e de isolamento do poder político numa determinada instituição – o Estado e de fetichização de seu instrumento privilegiado de intervenção – o direito positivo estatal.

Logo, numa recuperação histórica, filosófica e sociológica de uma experiência então ainda irredutível ao arbitrário da separação entre Estado e Sociedade, entre Público e Privado, o que se poderia configurar como caracterização do campo ético, designava, perfeitamente, a identidade concreta entre eticidade e moralidade e direito, valendo-me de importantes leituras que indico no contexto de minha apresentação.

Por isso a ética na política e na gestão não são uma expressão apenas da expectativa individualizada das condutas mas uma exigência do sistema de gestão, senão nos procedimentos, ao menos no modo de discernir, mesmo que em colóquios ou seminários, ou em iniciativas de ofício que nos ajudem a alargar a perspectiva de compreensão dos processos administrativos, na sua forma racional de realizar a promessa constitucional de radicalização da democracia, da justiça social e da própria Constituição.

A gestão não pode ser um matadouro da democracia e da justiça social, esvaziando essas promessas.  Não pode se restringir em avaliar a bondade dos agentes, tem que se estruturar como mediadora de transformação da realidade, numa ação simultaneamente realista e utópica de emancipação do humano.

Nessa perspectiva, finalizei minha circunstanciada exposição com uma alegoria a Brecht (BRECHT, Bertolt. A Santa Joana dos Matadouros. Tradução de Roberto Schwarz. São Paulo: Cosac Naify, 2009), com a voz de Joana:

Mas aprendi e sei uma coisa que não quero levar comigo

Agora que estou morrendo:

Que conversa é essa de que vocês têm algo de interior

Que não sai para fora? Vocês sabem O QUÊ, só o que sabem

Não tem consequência?

Eu por exemplo não fiz nada.

Pois nada seja dito bom, por muito que impressione, salvo

O que ajuda de fato, e nada seja estimável salvo

O que transforma para sempre este mundo, que está precisado.

Eu fui providencial para os opressores!

Ah, bondade sem efeito! Intenções impalpáveis!

Eu não transformei nada.

Deixando infrutífera e rapidamente a cena

Eu lhes digo:

Atenção para que vocês ao deixarem o mundo

Não apenas tenham sido bons como estejam

Deixando um mundo melhor!

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


quinta-feira, 16 de maio de 2024

 

Lido para Você: Incapacidades. Proteção ou Repressão?

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Roberto A. R. de Aguiar. Incapacidades: Proteção ou Repressão? Fundamentos das Incapacidades no Direito Positivo: em Busca de uma Reconceituação. Tese apresentada em Concurso para Professor Titular do Departamento de Propedêutica e Direito Comercial do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará, matéria Filosofia do Direito. Belém: Universidade Federal do Pará (mimeo), 1988, 193 fls.

Não é a primeira vez que me debruço sobre um texto de Roberto A. R. de Aguiar para o resenhar. Muito pelo contrário. Minha primeira resenha publicada foi exatamente sobre um livro desse querido amigo, meu colega na UnB, meu antecessor na Reitoria da universidade e parceiro em muitos projetos, acadêmicos e políticos.

Com efeito, então, ainda estudante no Mestrado de Direito da UnB, fiz, por indicação de meu Orientador o Professor Roberto Lyra Filho, uma leitura crítica de Roberto, um autor que nem ele, nem eu conhecíamos, e que acabara de publicar pela Editora Alfa Ômega, o livro Direito, Poder e Opressão. Minha resenha, com o mesmo título foi publicada no Correio Braziliense, de 15/4/1981. Fiz a leitura e preparei uma primeira versão da resenha que submeti a Lyra Filho, como de hábito, questionando a pertinência de sua publicação. Penso que ele ficou atento ao fato de que eu, mesmo sugerindo pleno acolhimento ao livro e às proposições avançadíssimas do autor, levantasse alguns pontos para criar polêmica nos debates em seminário que ele deveria promover.

Assim, para ilustrar, um certo tom no meu texto, reticente a aspectos inferidos em Michel Foucault, forte na obra, de um lado sobredeterminando relações de direito às tensões ideológicas entre dominantes e dominados, eventualmente conducentes, por causa de Foucault à uma leitura nihilista do jurídico.

De outro lado, também com o objetivo de recortar temas para o debate pedagógico, cuidados que algumas afirmações de meu texto deveriam suscitar. Reproduzo uma passagem: “…o livro atinge a sua finalidade. Isto é, percorre o primeiro caminho do processo cognoscitivo, o da abstração, o da extração das categorias. Inclusive, nesta etapa, alcança (ainda como processo cognoscitivo) intuições e representações formidáveis. Refiro-me, não só à percepção de antidireitos, de direitos plurais (p. XV e 135), à questão do desaparecimento ou ultrapassamento do direito (pág. 184), como, muito significativamente, na colocação dos direitos humanos (p. 171), embora, contraditoriamente, neste caso, recusando as suas mais amplas possibilidades (admissão apenas como princípios e não como direitos propriamente ditos) à falta de um poder que lhes confira eficácia e vigência, não obstante, a incursão anterior (p. 47), muito lúcida, quanto ao problema das fontes e do contra legem (p. 84)…”.

Tendo enviado previamente a resenha para Roberto, por mediação da Editora Alfa-Ômega, esse foi o cartão de visita, para uma amizade, que seguindo-se à resposta elegante que deu, fortaleceu-se por toda a vida dele e para o que ainda possa restar da minha.

Mais recentemente, a propósito de uma reedição de seu livro O Que é Justiça: uma Abordagem Dialética. Brasília: Senado Federal (Edições do Senado Federal; v. 279). Conselho Editorial, 2020 (https://estadodedireito.com.br/o-que-e-justica-uma-abordagem-dialetica-2/), no qual também tenho um ensaio extenso no qual faço o registro de múltiplas trocas intelectuais e políticas que estabelecemos em nosso percurso, arrolo várias leituras que fiz de suas obras, incluindo outras resenhas, entre elas a que foi publicada na Revista Humanidades, da Editora UnB (volume 8, número 1, 1992, p. 97-98, a propósito de seu livro A Crise da Advocacia no Brasil – Diagnóstico e Perspectivas, também publicado pela Alfa-Ômega, 1ª edição 1991.

Ainda na recensão mais recente sobre a obra celebratória publicada pelo Senado (https://estadodedireito.com.br/o-que-e-justica-uma-abordagem-dialetica/), lembrei outros registros, entre eles o de ter, com meus alunos de Pesquisa Jurídica, na Faculdade de Direito da UnB, incluído nessa mobilização de homenagens, o exercício autoral de pesquisa, conforme temos seguidamente procedido nas suas edições da disciplina, compondo para a wikipedia o verbete Roberto Aguiar (https://pt.wikipedia.org/wiki/Roberto_Aguiar), cujo conteúdo, apresentado em sala de aula no momento de seu lançamento, teve a presença da viúva Wanja Meire de Carvalho, procuradora federal e da filha Júlia Aguiar, e outros ilustres convidados.

Em complemento, trago o testemunho da professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, minha colega e esposa, extraindo de seu belo e consistente parecer no Conselho Universitário da UnB, por ocasião da deliberação de outorga de título de professor emérito a Roberto, o retrato completo que ela desenhou, e que veio a ser publicado no Portal da UnB: Roberto Aguiar, um Paladino da Causa da Justiça (https://noticias.unb.br/artigos-main/3043-roberto-aguiar-um-paladino-da-causa-da-justica), 12/7/2019.

Com muita síntese, extraio do que com a acuidade que a tornaram uma credenciada avalista das mais destacadas biografias acadêmicas, com o modo muito preciso com que faz a leitura crítica dos elementos curriculares para que melhor se exibam às distinções acadêmicas, notabilizou-se no Conselho Universitário da UnB pelas peças que muito contribuíram para conferir reconhecimento honorífico nas láureas universitárias, a respeito de Roberto, disse a professora Nair Bicalho.

Tenho que ela leu o currículo do Professor Roberto Aguiar para aferir seus requisitos acadêmicos quando submetida ao Conselho Universitário da UnB a proposta do título de Professor Emérito da UnB. No parecer, atualizado para registro de homenagem que a autora faz ao amigo, colega e ex-Reitor da UnB, ela anota que o docente, com trajetória militante e acadêmica, que o erige em verdadeiro paladino da causa da justiça, publicou em 1980 seu primeiro livro Direito, poder e opressão (São Paulo: Alfa-Ômega) onde apresenta uma nova concepção do direito “sempre parcial por conter a ideologia do poder legiferante” e elabora uma crítica da “simbiose oficial entre o saber teórico e o saber burocrático”. Em 1985 recebeu o prêmio Alceu Amoroso Lima da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de S. Paulo pelo ensaio publicado em 1983, “LSN – a lei da insegurança popular”. Em 1986 publica novo livro Os militares e a Constituinte (São Paulo: Alfa-Ômega), além de diversos ensaios e artigos sobre o tema. Em 1991 lançou A crise da advocacia no Brasil (São Paulo, Alfa-Ômega), onde realiza uma reflexão entre direito, ciência e tecnologia e afirma que o “Direito é uma expressão de um processo que faz do advogado um sujeito partícipe de sua criação, na medida em que ele representa interesses, expectativas e projetos de grupos sociais e de coletividades emergentes. O advogado é um explicitador de direitos”. Nos anos seguintes o professor Roberto Aguiar se dedicou à publicação de ensaios e artigos sobre os temas da justiça, da ética, da bioética, da cidadania e dos direitos humanos. Em 2000, publica Os filhos da flecha do tempo: pertinência e rupturas (Brasília: Letraviva), um marco teórico fundamental na sua trajetória de jurista e filósofo. Além de refletir sobre a opressão, as repressões, as violências (“estranhamento do outro”) e desigualdades presentes no mundo contemporâneo, ele propõe a constituição de um ser integral: “Os entes sociais , para viver em liberdade, necessitam ser unos e plurais (…) Só as convivências da unidade na variedade, da totalidade com as diferenças poderá construir sistemas unos, porém dinâmicos e mutáveis, e manter seu sentido de complexidade e possibilidade de saltos para patamares mais avançados de ser”.

Apesar de tantas excursões à fortuna crítica do pensamento filosófico-jurídico de Roberto Aguiar, acabei me dando conta de que um trabalho seminal por ele elaborado, ainda que referido aqui e ali, restou pouco referido. Talvez porque só tenha tido a circulação circunscrita ao objetivo de sua elaboração: uma tese para concurso. E ainda assim, num tempo ainda muito artesanal para a circulação de material acadêmico: o texto foi datilografado e encadernado para leitura da banca de concurso e para depósito nos repositórios oficiais da Instituição, portanto, com muito poucas cópias disponíveis e que se propagaram quase no privado do restrito grupo de leitores, alguns colegas e uns tantos amigos.

Trata-se da tese tema deste Lido para Você. Fui um dos escolhidos que receberam uma cópia do texto. Texto que li com enorme curiosidade e surpresa, sobretudo por logo me dar conta de que a sua defesa num departamento de direito privado, não lhe retirava a densidade epistemológica que bem o poderia ser arrolado, tal como diz a Professora Nair Bicalho, na linha condutora que caracterizou a produção de Roberto num conjunto reflexivo formado pelos temas da “justiça, da ética, da bioética, da cidadania e dos direitos humanos”.

Acabei revisitando a obra, por ocasião da participação em recente banca de qualificação de dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB.

Trata-se da dissertação (ainda em etapa de qualificação já concluída) – Capacidade Jurídica das Pessoas com Deficiência: a Compreensão da Magistratura do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios Após a Lei nº 13.146/2015 – de Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, em elaboração no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade de Brasília (CEAM).

Sob a orientação da Professora Sinara Zardo, a dissertação pretende investigar “a argumentação e o entendimento dos magistrados do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) sobre as mudanças efetivadas pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) – também denominada Estatuto da Pessoa com Deficiência –, no sentido de ruptura do tradicional regime das incapacidades e de garantia, às pessoas com deficiência, do direito ao exercício da sua capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas”. A pergunta que a pesquisa quer responder “é se o direito das pessoas com deficiência à capacidade jurídica – estabelecido no artigo 12 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e reiterado, em parte, na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) e em outras normas legais – tem sido reconhecido e interpretado, pelos magistrados do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, sob a ótica dos direitos humanos”.

Ana Cláudia vem trabalhando o tema da capacidade ou incapacidade, como ativista e teórica do tema, em parte motivada por convocações subjetivas que lhe são próximas. Antes da dissertação, ainda em fase de elaboração, mas já qualificada, ela se associou a projeto editorial que conduzo e em processo de reflexão se associou à proposta de pensar o empoderamento de sujeitos coletivos cujas lutas sociais e políticas instituem e ampliam direitos fortalecendo a capacidade protagonista de lutar por reconhecimento.

Ela assim se fez autora e co-organizadora do livro O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023. Para mais, conferir em https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/

Os artigos do livro tratam, cada um do seu modo, da categoria jurídica do sujeito coletivo de direito. Com cerca de três décadas desde a formulação do conceito, tal como indicado nessas leituras preparatórias, a obra em questão serve como uma espécie de compêndio que promove balanços, inovações e direcionamentos acerca da fortuna crítica dessa categoria e de seu alcance nos âmbitos da teoria e da práxis.

A identidade política dos movimentos sociais e a possibilidade de que eles venham a se investir de uma titularidade jurídica coletiva, ou seja, de atuarem como um sujeito coletivo de direito, são questões caras para a política e para o ensino jurídico. Assim, as reflexões com o pano de fundo teórico do Humanismo Dialético e d’O Direito Achado na Rua são, por sua vez, uma referência para a leitura crítica da realidade.

Pois bem, no ensaio O Reconhecimento dos Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência: Resultados Provisórios de Lutas do Movimento Social, Ana Cláudia Mendes de Figueiredo aborda a trajetória das lutas do movimento social e político das pessoas com deficiência pelo reconhecimento jurídico dos direitos humanos desses sujeitos de direito, bem como alguns resultados provisórios de tais lutas. À luz da teoria crítica dos direitos humanos, analisa os processos para tal reconhecimento e o cenário de não efetivação ainda dos direitos daquela população, reveladores da imprescindibilidade de criação de condições que viabilizem a esses sujeitos o acesso igualitário aos bens necessários a uma vida digna.

A arranque dessa ordem de considerações, na dissertação, ela é bastante firme no estabelecimento dos pressupostos que orientam o seu trabalho. O objetivo geral da sua pesquisa é o de investigar como os magistrados do TJDFT têm interpretado normas legais que, por força da CDPD (Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência), desconstruíram o tradicional regime das incapacidades, passando a assegurar a todas as pessoas com deficiência o direito ao exercício da sua capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas. O trabalho, que há pouco passou pelo procedimento de qualificação (precedente ao momento definitivo de ser apresentado a defesa), tem como título, nessa etapa: “Capacidade Jurídica das Pessoas com Deficiência: a Compreensão da Magistratura do Tribunal de Justiça do Distrito Federal após a Lei nº 13.146/2015”.

A hipótese de pesquisa é a de que, não obstante o artigo 12 da CDPD tenha reconhecido o direito das pessoas com deficiência ao exercício da sua capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas, e a LBI tenha promovido em nosso ordenamento, em homenagem à citada norma constitucional, alterações importantes acerca do tema, o aludido direito segue sendo interpretado à luz de teorias, institutos, concepções e conceitos superados pelo novo paradigma da capacidade jurídica e pelos princípios de direitos humanos consagrados nas citadas normas constitucional e legal, especialmente quando se trata de pessoas com deficiência intelectual e psicossocial.

Para a Autora, “constituindo o exercício da capacidade jurídica um direito humano – que se insere na esfera existencial de todas as pessoas – e havendo, de outro lado, a possibilidade de que o referido direito venha sendo ignorado, é de extrema relevância e necessidade a investigação pretendida, a qual propiciará a geração de informações empiricamente sustentadas. Contudo, na banca, ao discutir a questão da incapacidade necessária a esses pressupostos, verifiquei que a disponibilidade conceitual e política para afrontar esses pressupostos, ainda se faz muito carente de possibilidades emancipatórias que livrem os sujeitos de um sistema de contenção para exercitar liberdades e autonomias legítimas”.

Em apoio a Ana Cláudia de Figueiredo, eis que me veio em socorro a tese única de Aguiar, para poder abrir esse campo de possibilidades: Incapacidades: Proteção ou Repressão? Fundamentos das Incapacidades no Direito Positivo: em Busca de uma Reconceituação.

A tese de Roberto Aguiar, tal como ele propõe, teve (tem) por objetivo discutir a validade dos modelos explicativos das denominadas incapacidades previstas no ordenamento jurídico, em específico, o brasileiro. Ela (a tese) se vale de subsídios trazidos pelo marxismo, pelo pensamento de Michel Foucault – um autor sempre em diálogo co Aguiar -, pelos juristas que procuram uma renovação epistemológica e pelas contribuições das ciências sociais. Assim, foi desenvolvida uma análise crítica do modelo que subjaz à doutrina sobre as incapacidades, destacando as justificativas ideológicas da vontade livre, do mundo harmônico e do individualismo, como sustentadoras desse entendimento do jurídico. O resultado dessa análise levou a reconceituação de incapacidades, que foram chamadas de incapacitações, já que imersas em contexto mais amplo, atingindo também as pessoas jurídicas, não tendo caráter protetivo dos incapazes, uma vez que apresentam evidente marca repressiva, configurando-se por isso, como uma das formas do exercício dos poderes.

Seguindo ainda o que o próprio autor da tese designa, foram levantadas outras formas de incapacitação que constam em outras regiões do ordenamento e que aparecem nas práticas sociais, sejam confirmando o direito, seja negando, mas sempre a serviço de interesses que não são os dos incapacitados. Para um aprofundamento da questão foram (são) levantas questões sobre cada um dos atingidos pelas incapacitações. Mas a questão de fundo, que está ligada aos problemas tratados na tese, refere-se aos países periféricos, que têm uma tradição histórica de autoritarismo e vivem relações oriundas de um capitalismo tardio, o que vem a exacerbar as desigualdades, aumentar o arbítrio e distanciar as classes sociais, em evidente colisão com os objetivos propostos em abstrato pelo ordenamento.

Marcada pelo pensamento europeu – ele continua – nossa doutrina dominante não tem condições de perceber a natureza fragmentária e perigosamente destrutiva de nosso ordenamento, que tem baixa credibilidade até mesmo nos setores que são por ele beneficiados.

Em conclusão, diz Roberto Aguiar, resumindo sua proposta, o problemas das incapacidades, na sua tese, foi (é) tratado partindo desses pressupostos, além (grifo) de levar em conta a existência de uma pluralidade de ordenamentos, o que significa a presença constante – grifo de novo – de uma tensão contraditória permanente entre os direitos cristalizados e os emergentes das lutas dos destinatários desfavorecidos.

Outro ponto que o Autor põe em relevo, foi (é) a preocupação de evidenciar a estigmatização de uma população, que é jogada para fora da produção convencional e que, não tendo os valores da acumulação ou da transformação, podem tomar atitudes que podem inviabilizar o direito e os poderes, sem que haja um salto para melhor.

O sumário da tese tem uma distribuição analítica que permite percorrer todas essas dimensões postas em relevo no resumo, até consumar-se numa discussão de fim que é poder discutir ou melhor, rediscutir incapacidades.

Dei conta dessa tentação, exatamente no tema das capacidades/incapacidades/incapacitações, ao recuperar incidente que exigiu leitura crítica inspirada em posicionamentos político-epistemológicos, de rara localização, como esse de Roberto Aguiar.

Aliás, documentei a situação, conforme meu artigo no Jornal Brasil Popular (https://brasilpopular.com/lealdade-ao-dever-constitucional-de-protecao-a-funai-os-indios-e-o-direito/), não sem anotar que as condicionantes da novidade.

A situação diz respeito a um incidente dentro da vocação autoritária e anti-povo, nunca totalmente superada em nosso País. Ainda que a Constituição atual, artigos 231 e 232 tenha reconhecido a capacidade ativa dos índios, ela manteve o dever de proteção pelo Estado dos direitos originários desses povos, tanto que atribuiu ao Ministério Público acompanhar todos os atos que digam respeito à salvaguarda desses direitos e manteve como obrigatoriedade governamental, não havendo mais o regime de tutela, de exercitar essa obrigação, atribuindo a Fundação Nacional do Índio (Funai) como órgão indigenista oficial responsável pela promoção e proteção aos direitos dos povos indígenas de todo o território nacional.

Ora, é legítimo o repúdio indígena aos posicionamentos hostis que a partir desse órgão, começam a caracterizar a quebra de lealdade ao dever constitucional de Proteção, violando os direitos indígenas.

É preciso lembrar que mesmo no curso da ditadura do regime imposto em 1964 e ainda sob a égide de uma Constituição de traços colonialistas, que não reconhecia a capacidade plena aos indígenas, mantendo-os subalternos e tutelados, nunca se perdeu o horizonte emancipatório de respeito aos seus direitos, usos e tradições originários.

Num artigo que publiquei no Jornal de Brasília, edição de 29/04/1984 – Os Índios e o Direito – trato desse tema. Nele aludo a decisão proferida em mandado de segurança que estudantes terenas, representados por membros da Comissão de Direitos Humanos, da OAB-DF, impetraram contra a Funai, ocasião para que o íntegro juiz Dario Abranches Viotti, da Justiça Federal em Brasília, reconhecendo a incompatibilidade de interesses entre o tutor e seus assistidos, nomeou curador especial um dos advogados, para o fim específico de representa-los na ação. Essa curatela especial coube a mim, um dos advogados da OAB, investido no processo pelo magistrado.

Essa decisão não trouxe, a rigor, eu disse no artigo, nenhuma inovação técnica. A remoção do tutor, no âmbito da legislação cível, ou a interdição de direitos, como pena acessória, nos casos de incompatibilidade manifesta, na esfera penal, implicam na perda do exercício da tutela, constituindo alternativas adequadas para a verificação da responsabilidade do tutor em face de suas obrigações para com o tutelado.

Tanto é assim que, no caso relatado, o Juiz simplesmente adotou a solução sugerida pela lei processual civil, identificando, na situação litigiosa, uma hipótese de colisão de interesses.

O inusitado da medida não chega a ser, sequer, o seu pioneirismo jurisprudencial, embora mereça relevo a determinação, no particular, que resultou em abandono de postura, evidentemente inibida da magistratura brasileira. O que repercute nessa decisão, sem precedente a nível judiciário, é o seu alcance instrumental para a defesa de interesses e direitos diferenciados no seio da sociedade civil, como garantia de acesso à Justiça de segmentos sociais dela alienados.

Penso ter aí um exemplo da disposição que Roberto Aguiar sugere na conclusão de sua tese, sobre caminhos para “a superação das incapacitações em direitos como o brasileiro passam pelas redistribuições das desigualdades, pela instrumentalização dos direitos previstos e pela eliminação dos ardis que remetem a questão para o mero exercício da violência ou do arbítrio”.

São trilhas emancipatórias. Referidas a O Direito Achado na Rua, na perspectiva do que temos atribuído a essa concepção, do que se trata é realizar uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função crítica para de atribuir o sentido político ao Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular, claro, o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.

Curiosamente, embora essa perspectiva emancipatória tenha leito natural no campo da teoria do direito e dos direitos humanos, Roberto Aguiar a traz para o campo do direito privado que historicamente serviu bem ao modo burguês de produção capitalista, assentada na perspectiva privatizante da acumulação.

E não tardou que a pudéssemos surpreender sustentada de modo muito orgânico, no sentido intelectual e político do termo, em nuances que a pressentem, embora por distintas razões, em autores que se distinguiram em estudos de direito privado. Assim que, em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013 • 3 Commenti (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/), notável jurista (e político recém-falecido) Stefano Rodotà, nos fala sobre “a necessidade inegável de direitos e de direito manifesta-se em todo o lado, desafia todas as formas de repressão e inerva a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pelos seus dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.

Para ele, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.

Mas, realmente, numa aferição que me surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual instalamos toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.

Fecho a recensão com Roberto Aguiar. Conforme ele lembra, “tais modificações não podem acontecer no interior do direito estatal. Elas vêm das lutas pela transformação social e pela cristalização de direitos operativos, já existentes nos grupos dominados que se estruturam. Isso significa que só haverá o fim das incapacitações exacerbadas, pela mudança dos poderes políticos. Se houver tempo…” (p. 180).

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)