O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 30 de abril de 2025

 

A Alma Sentipensante da Biblioteca da NAIR

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Membros da AJUP-RLF e militantes do MTD e MST em mutirão da UnB. Foto de Rayssa Nunes Braz de Queiroz

Neste sábado, 26/4, a AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho) http://www.linktr.ee/ajuprlfdf se reuniu em mutirão, no espaço do NEP – Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos, com triplo objetivo: fazer-se presente nesse espaço que tem O Direito Achado na Rua como um de seus pilares. Foi aí exatamente que se organizou e se marcou com o seu selo a série O Direito Achado na Rua; e também se lançou as bases para a institucionalização (pelo CEAM) da disciplina Direitos Humanos e Cidadania (graduação) e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (mestrado e doutorado).

O segundo objetivo: o encontro com militantes do MTD (Movimento de Trabalhadores Desempregados) e do MST (Movimento Sem Terra) para uma participação em documentário dirigido por estudante de graduação da Faculdade de Comunicação (Rayssa Nunes Braz de Queiroz), tendo como argumento a AJUP Roberto Lyra Filho. Todos participaram das gravações, desde mística a depoimentos para o documentário.

O terceiro objetivo: pensar, organizar e projetar o espaço para a instalação da Biblioteca da NAIR (Nair é a sigla da Nova Escola Jurídica Brasileira. Sobre a NAIR, o NEP e O Direito Achado na Rua ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_Achado_na_Rua) caracterizada pela reunião de um volume muito significativo de livros e documentos compondo um relevante acervo com centralidade em obras de justiça (de transição), paz e direitos humanos articuladas com títulos de filosofia, sociologia, história e literatura em diálogo interdisciplinar. Sobre Assessoria Jurídica Popular ver https://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2009/08/o-que-e-assessoria-juridica-popular.html.

Por isso que o encontro foi iniciado com uma roda de conversa para lembrar que não era só uma tarefa o que nos reunia. Mas um encontro lúdico (de compartilhamento em torno de um lanche comunitário) e ao mesmo tempo político-pedagógico, para confirmar que na universidade, qualquer espaço e qualquer encontro realiza esse pressuposto pedagógico.

Por isso que na abertura lembrei o âmbito até conceitual como o contrato de comodato e depois de doação da Biblioteca Roberto Lyra Filho veio a incorporar-se à BCE da UnB (https://estadodedireito.com.br/modo-de-aquisicao-todos-relatorio-de-exemplar-processo-de-aquisicao-comodato-roberto-lyra-filho/).

Lembrei que o próprio Roberto Lyra Filho já antecipara o modo de construir bibliografias e de organizar política e epistemologicamente o acervo de um campo de conhecimento por sua bibliografia. Ficou a sugestão de ler e estudar seu texto: “Filosofia jurídica: pequena bibliografia em perspectiva contemporânea (1976). Revista Notícia do Direito Brasileiro, n. 9, UnB, Brasília, 2002, p. 381-403”, que pode ser conferido na Biblioteca Digital Roberto Lyra Filho em https://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2012/07/biblioteca-roberto-lyra-filho.html.

Para melhor compreensão o ensaio cuida de atendimento do professor (fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira) a solicitação do chefe do Departamento de Direito, Faculdade de Estudos Sociais Aplicados (atualmente o antigo Departamento se tornou Faculdade de Direito da UnB), para que os professores preparassem bibliografias para as suas disciplinas. Ao se desencumbir do encargo disse o professor no ensaio: “A tarefa constitui, um estimulante desafio, pondo à prova o domínio da disciplina, em sua contextura e nas linhas fundamentais de sua expressão bibliográfica. Se as restrições de extensão da lista impuseram cortes drásticos e extremo rigor seletivo, os critérios utilizados devem ser expostos a fim de que não se impute à arbitrariedade ou ao desconhecimento do material o que é, apenas, um esforço no sentido de reduzi-lo às proporções da encomenda”.

O ensaio, raro, em seu escopo, permanece como “exemplo de escolha e aplicação de processos depuradores, num plano coerente e executado com certo rigor técnico”. E é também, nessa mesma disposição, que Talita Rampin, fundadora da AJUP-RLF, mas num outro alcance, lembrou Walter Benjamin, para comentar excertos de “Desempacotando minha biblioteca. Um discurso sobre o colecionador”, que pode ser encontrado em Rua de mão única (Obras escolhidas II). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 227-35: “Estou desempacotando minha biblioteca. Sim, estou. Os livros, portanto, ainda não estão nas estantes; o suave tédio da ordem ainda não os envolve. Tampouco posso passar ao longo de suas fileiras para, na presença de ouvintes amigos, revista-los. Nada disso vocês têm que temer. Ao contrário, devo pedir-lhes que se transfiram comigo para a desordem de caixotes abertos à força, para o ar cheio de pó de madeira, para o chão coberto de papéis rasgados, por entre as pilhas de volumes trazidos de novo à luz do dia ou da noite…uma tensão dialética entre os pólos da ordem e da desordem”.

Outro coordenador da AJUP-RLF, Antonio Escrivão, mencionou Jorge Luis Borges, que também escreveu sobre a biblioteca de Babel, um conceito de uma biblioteca infinita e complexa. Borges assumiu a direção da Biblioteca Nacional da Argentina (1955-1961). Além de seus escritos sobre a Biblioteca de Babel, Borges também deixou uma vasta obra de ficção, poesia e ensaios, que o consagrou como um dos mais importantes escritores do século XX. É dele “Del culto de los libros” e “La biblioteca de Babel”, onde fala intensamente sobre livros, bibliotecas e o ato de lidar com eles.

Talita leu trechos de “Encaixotando minha biblioteca: uma elegia e dez digressões”, 2021, Companhia das Letras, de Alberto Manguel. Talita lembrou a forte ligação direta e emocional de Manguel com Borges, especialmente nesse tema da biblioteca como “mundo interior” e da experiência do afastamento dos livros. Quando jovem, o próprio Manguel trabalhou como leitor para Borges, que já estava cego. Ele lia para Borges em Buenos Aires nos anos 1960. Essa experiência marcou profundamente a vida dele. Anos depois, Manguel se tornou um dos grandes escritores sobre o ato de ler (Uma História da Leitura, A Biblioteca à Noite, etc.), e fala muito sobre a relação íntima entre a pessoa e seus livros — inclusive sobre a dor de perder o acesso físico ou simbólico a eles.

No livro “A Biblioteca à Noite”, Manguel medita justamente sobre bibliotecas como espaços de memória, de identidade e até de luto. Tem um momento em que ele fala do processo de mudar sua biblioteca pessoal e de como isso é doloroso, quase como “desfazer-se de uma parte da alma” — que conversa muito com a ideia de encaixotar uma biblioteca, como se fosse fechar um mundo.

Imagine o que representou para Gladstone Leonel Silva Junior, o novo coordenador do NEP e também fundador da AJUP-RLF, que trouxe como doação alguns livros, entre eles a edição em português de O Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Um Estudo Sobre a Bolívia.

Com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz (ao tempo do grande sociólogo Álvaro García Linera), o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político en Brasil: caminos hacia un ‘constitucionalismo desde la calle’.

No Golpe de Estado contra Evo Morales, a vice-presidência foi um dos alvos e o obscurantismo autoritário se manifestou nitidamente na queima de livros do acervo, entre eles a edição em espanhol de O Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Um Estudo Sobre a Bolívia.

Foi ao devaneio dessas conversas que concluímos uma primeira rodada de programação da Biblioteca da NAIR, refazendo o arranjo topográfico do mobiliário do NEP para receber o acervo, classificá-lo e pensar um catálogo que expresse a identidade da AJUP e de O Direito Achado na Rua e que se traduza como “parte de nossa alma”.

Pois livros, são partes de nós. Me lembrou isso o escritor e advogado Fábio de Sousa Coutinho presidente da Associação Nacional de Escritores (ANE) e também presidente da Academia Brasiliense de Letras (ABrL). Ao receber a notícia desse encontro, em nossa lista de contato, Fábio me enviou uma afirmação de Borges: “Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação”.

Corri a conferir a edição que recebi da Editora EDUSP, desse primoroso ensaio – O Livro – numa edição comemorativa de seus vinte anos (1988-2008) e do milésimo título publicado. O texto, reproduzido do livro Cinco Visões Pessoais, de Jorge Luis Borges, foi publicado pela Editora da Universidade de Brasília (2ª edição., 1987), com tradução de Maria Rosinda Ramos da Silva, para esse fim autorizada.

A escolha do título e do autor, é um alento embalado graficamente. Plínio Martins Filho o editor da EDUSP o expõe: “São vinte anos de editora. São vinte anos de edição própria. 1000 títulos. Editá-los não foi fácil. Enfrentamos oposição e descrença. Todas as vezes que o desânimo baixava, relia este texto de Jorge Luis Borges”.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

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