O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

 

Marina Jucá Maciel: Direito ao Sonho e à Emoção de (Ser) Tão Artista

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Marina Jucá Maciel. Direito ao Sonho e à Emoção de (Ser) Tão Artista: luta pela efetivação dos direitos humanos nas veredas da arte. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2024, 222 fls. mais anexos

Perante a Banca Examinadora, formada pelas professoras Talita Rampin – FD/UnB, Orientadora e Presidenta; Cinara Barbosa de Sousa – IDA/ UnB, Membra interna suplente arguidora; pelo professor Marcelo Campos, Departamento de Teoria e História da Arte do Instituto de Artes, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), membro externo; e por mim, na condição de membro interno, da Faculdade de Direito da UnB, foi defendida e aprovada a Dissertação de Mestrado tema desta Coluna Lido para Você.

Do que trata o trabalho diz o seu resumo:

O Direito ao Sonho e à Emoção de (Ser) Tão Artista: luta pela efetivação dos direitos humanos nas veredas da arte. Por meio da metodologia de Estudo de Caso, entrevistamos 21(vinte e uma) artistas, participantes do movimento social Paramar. Refletimos sobre as suas práxis de lutas pela efetivação dos direitos humanos na superação das múltiplas opressões coloniais vividas no “Grande Sertão: Veredas” (ROSA, 2001) que, de forma metafórica, idealizamos, inicialmente, como local onde vivem pessoas inviabilizadas, socialmente marginalizadas, “zona de não ser” (FANON, 2008). Pelas veredas da arte, sonhos e emoções, é redesenhado como Zona de Ser, local de resistência, (re) existência, luta pelo acesso aos direitos humanos. Logo, o sertão transformando-se em (Ser) Tão, ou seja, “Ser” no sentido de ser humano e “Tão”, em sua plenitude de potencialidades, criatividades e fruição de direitos humanos. Por meio de lentes decoloniais, desaprendemos o que a colonialidade nos ensinou, reaprendemos, pintamos, desenhamos, bordamos, fotografamos, costuramos, reconstruímos, sonhamos, nos emocionamos com as artistas participantes. E, ao longo dessas veredas artística, encontramos os Direitos Humanos Achados na Arte. Após este emocionante encontro, conscientes de que os espaços de poder são ocupados, em regra, pela população hegemônica do norte global, avançamos para reassumir nosso legítimo lugar, que nos foi tomando pela colonização, para construirmos coletivamente um direito autêntico, achado na rua, na arte, no clamor das vozes das artistas, são os Direitos Humanos Achados na Arte. Nessas veredas, enfrentamos secas nos sertões e tempestades no Atlântico Vermelho, superamos os obstáculos, quebramos represas e barreiras, guiadas por nossos sonhos e emoções. Com muita coragem, chegamos na sede da ONU, em Genebra, onde tomamos nosso legítimo espaço e, assim, palestramos, refletimos, gritamos, lutamos, cantamos, nos manifestamos por meio da arte. Ao final, construímos coletivamente uma recomendação internacional de direitos humanos entregue à direção desse organismo internacional. Nas veredas de retorno ao Brasil, fortalecidos com os progressos atingidos, elaboramos a minuta do Projeto de Lei de Regulamentação da Profissão de Artistas Visuais (PL1928/24), em tramitação no Congresso Nacional. Logo, não obstante os avanços alcançados com muitas emoções vividas e sonhos realizados, temos consciência de que a luta está apenas no começo por mais um sonho impossível, transformar-se em possível, até o “mundo ver uma flor brotar do impossível chão” dos grandes sertões nas veredas da arte.

Desde o resumo e na tessitura do todo o trabalho, a língua explicativa da ciência se entrecruza e se implica com a língua sensível da arte, poética, imagética, num contexto desafiador à instalação no real que convoca. São poemas, marcadores linguísticos que, desde o título e na ancoragem dos capítulos e da armação dissertativa busca repercutir, o que Eduardo Lourenço, sobre a literatura, recusava o seu aparente delírio para assinalar que o que ela expressa é essa tentativa desesperada de se instalar no real (in Mitologia da Saudade).

A Dedicatória não é, pois um adereço, mas uma tomada de posição nesse sentido: às artistas participantes, coautoras da presente pesquisa, por me desconstruírem, reconstruírem e, nas veredas decoloniais da arte, me ensinarem a enxergar um novo mundo colorido pelos sonhos e emoções, desenhados, pintados, fotografados, bordados, costurados, escritos, falados, aclamados, lutados como um manifesto dos Direitos Humanos Achados na Arte de (Ser) Tão Artistas!. Ah, como evoco Manoel de Barros (O Livro das Ignorãças e nele Uma didática da Invenção: “desaprender 8 horas por dia ensina os princípios). Veja-se os meus grifos e demore-se sobre as 107 imagens que também narram e revelam o tema escolhido para estudo e pesquisa.

A propósito da legitimidade desse enquadramento, muito em geral o valida a boa bibliografia revisada, mas o abona o acervo epistemológico do sensível (Maffesoli, A razão sensível; De Mais, A Emoção e a regra; Martha Nussbaum, Justicia Poética; o próprio Eduardo Lourenço já mencionado) e, em sede decolonial (Fals Borda, sentipensar; Patricio Guerrero Arias, Corazonar : una antropología comprometida con la vida). Claro que entre todos Roberto Lyra Filho, não fosse O Direito Achado na Rua uma paráfrase poética (Marx, Cassiano Ricardo, em A Concepção de mundo na obra de Castro Alves ou Filosofia Geral e Filosofia Jurídica em Perspectiva Dialética. Eu próprio, seguindo as veredas desses autores e autoras, pude me situar nas múltiplas possibilidades de conhecer, entre si implicadas, não se reduzindo à sua mirada exclusiva. Do explicar científico, do fundamentar filosófico, do intuir artístico, do lúdico brincante, do revelar místico.

De minha parte li e fiz aplicações fecundas em um bom número de ensaios: https://estadodedireito.com.br/meninos-do-rio-vermelho-e-uma-senhora-pelada/https://estadodedireito.com.br/olhos-de-madeira-nove-reflexoes-sobre-a-distancia-de-carlo-ginzburg/https://estadodedireito.com.br/criminologia-e-cinema-semanticas-do-castigo/https://estadodedireito.com.br/entrelugares-de-direito-e-arte-experiencia-artistica-e-criacao-na-formacao-do-jurista/https://estadodedireito.com.br/pesadelo-narrativas-dos-anos-de-chumbo/https://estadodedireito.com.br/literatura-livros-folhasfonte-pixabay/: Direitos Humanos nas entrelinhas das crônicas de Carlos Drummond de Andrade; https://estadodedireito.com.br/justicia-poetica-la-imaginacion-literaria-y-la-vida-publica/https://estadodedireito.com.br/tracos-especial-5-anos/https://estadodedireito.com.br/os-cartazes-desta-historia/https://estadodedireito.com.br/farol-ancoradouro-oasis-e-sal-vozes-femininas-na-literatura/https://estadodedireito.com.br/literaturas-munduruku-as-historias-contadas-e-a-justica-cognitiva/https://estadodedireito.com.br/cadernos-do-ceam-arte-e-inovacao-em-tempos-de-pandemia/https://estadodedireito.com.br/mascaras-no-varal-a-revolucao-e-preta-feminista-e-imparavel/https://estadodedireito.com.br/na-sala-da-justica/https://estadodedireito.com.br/filosofia-enquanto-poesia-sete-cartas-a-um-jovem-filosofo-conversacao-com-diotima-filosofia-nova-e-outros-escritos/https://estadodedireito.com.br/o-frio-das-minhas-cinzas/https://estadodedireito.com.br/57-contos-e-cronicas-por-um-autor-muito-velho/https://estadodedireito.com.br/guayasamin-continente-mestico/https://estadodedireito.com.br/jogados-ao-mar/https://estadodedireito.com.br/synara-veras-de-araujo-em-sessao-de-autorgrafos-no-12a-fest-aruanda-foto-aptedney-moreira-carmela-grune-e-jose-geraldo-de-sousa-junior-no-lancamento-da-obra-direito-no-cinema-brasileiro-foto/https://expresso61.com.br/2024/08/21/lido-para-voce-poesia-para-o-tempo-do-fim/.

Alguns desses ensaios, por iniciativa da editora do jornal onde são publicados, compondo uma Coluna Lido para Você, formaram uma edição antológica José Geraldo de Sousa Junior. Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura – São Paulo: Editora Dialética, 2023. 168 p., que reúne os textos com essa disposição de articular razão e sensibilidade: https://estadodedireito.com.br/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura/.

Com uma motivação próxima a de Marina Maciel, com nuances nutridas no mesmo imaginário, localizo o trabalho de Raique Lucas de Jesus Correia. Direito, literatura & sertão: perspectivas decoloniais a partir do romance d’A Pedra do Reino de Ariano Suassuna. João Pessoa, PB: Editora Porta, 2022,343p. https://estadodedireito.com.br/direito-literatura-sertao-perspectivas-decoloniais-a-partir-do-romance-da-pedra-do-reino-de-ariano-suassuna/

O desafio a que se impôs o Autor na obra: pensar o decolonial aplicado ao Direito, desde as v(e)ias abertas pelo “Romance d’A Pedra do Reino”, tendo como centralidade os influxos proporcionados pelos modos de ser e de viver, pela cultura, pelas vivências e pela luta do povo sertanejo, marcada pela miséria e pela fome, mas também pela garra e pelo sonho.

Nesse itinerário de inquietações e total ausência de certezas, são delineados diversos deslocamentos, territórios que tão logo emprenhados são desfeitos, dando lugar a outras paisagens, sintetizados nos diversos movimentos presentes no sumário. Assim é que, no primeiro movimento “Prelúdio – Direito & Literatura” o Autor nos convida a refletir sobre as possiblidades guardadas pela aproximação entre o Direito e a Literatura, promovendo um rico diálogo entre os diversos autores e autoras que, contemporaneamente, tem enfrentado o desafio de conjecturar a esse respeito, para, então, afirmar waratianamente que a “a aproximação entre Direito e Literatura, não só é possível, como também é fundamental, uma vez que proporciona a formação de ‘territórios ambíguos’, pelos quais se é possível escapar as deformações regradas da semântica cientificista e fundar ‘um saber sobre o Direito que reconcilie o homem com suas paixões, tenha respostas de acordo com o mundo e transforme a estagnação de suas verdades em desejos vivos’ (WARAT)”.

Posteriormente, enuncia sua formulação mais do que original, a emergência de um “Direito Achado no Sertão”, um “Direito de Canudos”, d’A Pedra do Reino, um Direito que seja expressão legítima das lutas e vivências do nosso povo pobre, negro, índio, mestiço, espoliado e oprimido, silenciado pelos ecos cosmopolitas da modernidade/colonialidade.

É por essa fenda que a imersão na obra de Ariano Suassuna anuncia uma ruptura com a epistemologia jurídica moderna. Em primeiro plano, permite-nos uma conexão com as nossas raízes culturais e, também, com o nosso povo, de onde se é possível readequar através do saber local as categorias jurídicas vigentes. Mais profundamente, inaugura uma nova sensibilidade, que nos possibilita também reimaginar poeticamente a nossa imagem de mundo a partir do Sertão.

Logo, o “direito castanho”, enquanto inscrição decolonial do Direito na cultura nordestina, nasce como um conceito eminentemente subalterno, no sentido de oferecer uma nova interpretação do Direito a partir do imaginário sertanejo. Na acepção incorporada pelo Autor, isto é, “[…] como síntese ‘quadernesca’, o ‘direito castanho’ poderia ser percebido como uma matização entre, de um lado, o espírito mágico professado pelo ‘surrealismo jurídico’ de Luis Alberto Warat e, de outro, a matriz dialética adotada pela práxis de ‘O Direito Achado na Rua’”.

Assim é que o Autor se desincumbe da sua tarefa de pensar uma epistemologia jurídica decolonial a partir do Romance d’A Pedra do Reino e nos brinda, ao tempo que nos interpela, com os intrigantes conceitos de “Direito Achado no Sertão”, “Direito Castanho”, “Sertanismo Jurídico”. Conceitos cujos sentidos intencionalmente foram deixados em aberto, como algo sempre por fazer, sempre por alcançar; convocando à experimentação do chão pedregoso do Sertão, da quentura escaldante do sol, da secura da sua terra, da bravura e beleza da sua gente. Numa narrativa que coexiste com todas as outras possíveis, ela mesma um infinito de possibilidades” – há uma tomada de posição político-epistemológica, tanto referida ao filosófico no que tange à perspectiva decolonial, como por extensão, uma perspectiva crítico-emancipatória do direito – O Direito Achado na Rua – que vão se fundir nos elementos interpretativos do mundo e da sociedade.

Seguindo o exposto da própria Marina, para sumariar o trabalho, anota-se, no primeiro capítulo, a explicação de como, dentre as quase 200 (duzentas) artistas participantes dos eventos culturais da Paramar, escolheu 21 (vinte e uma) expoentes dos seus Grandes Sertões do Brasil para ensinar por meio de suas práxis de lutas pela efetivação dos direitos humanos. O recorte acadêmico inicial traçado para investigação foi a obra de Rosa (2001) “Grande Sertão: Veredas”, que, metaforicamente, representa resistência, lutas contra o sistema colonial e opressor dos diferentes sertões. Por sua vez, as veredas , nesta pesquisa, representam caminhos alternativos, construídos pela e com arte, nesta luta decolonial pelos direitos humanos.

Nas veredas do primeiro capítulo, a Autora busca esclarecer a ideia metafórica de “Grande Sertão: Veredas” (ROSA, 2001), no qual, no primeiro momento, o sentido de sertão será vinculado à sua aridez, opressões contra sociedade invisibilizadas, onde há pessoas marginalizadas, especialmente por precariedade de políticas públicas e acesso a direitos humanos. Logo, associamos essas veredas de sofrimento com o conceito de “zona de não-ser” criado por Frantz Fanon , sendo ampliado de forma geográfica, social, política e cultural para outros espaços onde há pessoas nessas condições. Por isso, utilizamos a ideia de amplitude do sertão afirmada pelo próprio autor do livro de que: “O sertão está em toda a parte” (ROSA, 2021, p.8, grifo nosso).

Em um segundo momento, passa a analisar o sertão, como o local de resistência, (re) existência pelas pessoas socialmente invisibilizadas pela estrutura colonial, representadas pelos grupos minorizados, rompendo com as cadeias de opressão social, econômica, cultural, por meio de lutas pela efetivação dos direitos humanos de diferentes formas, sendo a arte uma dessas veredas potentes que analisaremos nesta pesquisa.

Por meio desta potência artística, o sertão, como “zona de não ser”, redesenha-se, por meio das emoções, dos sonhos, do acesso aos direitos humanos, em Zona de Ser , transformando-se em (Ser) Tão! Ou seja, o “ser”, no sentido de ser humano, o “tão”, no sentido de amplo, irrestrito, de potência de emoções e criatividades em sua plenitude.

Vale registrar que a reflexão sobre termo “(Ser) Tão”, inicialmente, surgiu em diálogo com Cinara Barbosa, curadora, pesquisadora e professora do Departamento de Artes da UnB, no qual idealizamos um projeto de impacto sociocultural por meio de parceria do movimento social Paramar e do Plano das Artes . Posteriormente, por meio das reflexões da presente pesquisa, ampliamos para: (Ser) Tão Artista .

Uma vez que o Direito Achado na Rua valoriza as construções jurídicas oriundas das experiências cotidianas, o trabalho desenvolvido pelo movimento social Paramar junto com artistas atravessadas por diferentes interseccionalidades pode corroborar com as suas narrativas e expressões para reflexões profundas pela arte que oportunize emancipações diversas, do direito ao sonho, à emoção (MATOS, 2024; ANEXO B) e de transformação de realidades socioculturais.

Neste contexto, após a escolha das 21 (vinte e uma artistas), por serem expoentes de resistências, (re) existências e de verdadeiras lutadoras por meio da arte na efetivação dos direitos humanos, em seus grandes sertões de diferentes espaços geográficos do país , submetemos ao Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UnB, recolhemos as assinaturas dos Termos de Consentimentos Livres e Esclarecidos (TCLE) e Termos de Autorizações de Uso de Imagens, sendo aprovado por este comitê de ética da UnB .

Durante as escutas sensíveis que realizamos durante as entrevistas das participantes, todas elas, sem exceção, acreditam que, por meio de suas práxis da arte, lutam pela efetivação dos direitos humanos a fim de superarem as múltiplas opressões interseccionais vividas nos seus grandes sertões. Logo, aceitamos o convite do Direito Achado na Rua e propomos: Direitos Humanos Achados na Arte!

Nessas veredas, no segundo capítulo, por meio de lentes decoloniais, a Autora analisa alguns tópicos para somar forças com a ideia de ampliar o nosso viés não colonizado, ou seja, articularemos o pensamento orgânico com o acadêmico, com a militância, com as críticas individuais, com as emoções e os sonhos para formar uma grande emancipação da opressão colonial que aprisiona boa parte da nossa sociedade.

Nessas veredas decoloniais, a Autora assenta que a cultura é alvo do colonizador com objetivo de tentar destruir os dominados nas suas subjetividades, nas suas raízes culturais, nas emoções e sonhos expressados pela arte, tentando transformar a sua visão da realidade e impondo uma pretensiosa superioridade do invasor. Exsurge a importância da interculturalidade crítica no combate a esta forma de estratégia que permanece até os dias atuais (WALSH, 2009).

Neste capítulo, ainda, a Autora reflete sobre a importância das Teorias Críticas dos Direitos Humanos, defendidas por Herrera Flores (2009), em que sustenta que os direitos humanos não são apenas a sua previsão formal em ordenamentos jurídicos, sem aplicabilidade real, isto é, direitos humanos considerado “gourmet” (KRENAK, 2021). É imprescindível a sua concretização dos direitos humanos, especialmente em favor dos grupos historicamente minorizados.

Após escutar as artistas por meio de oitiva sensível e decolonial e, em virtude dos Direitos Humanos Achados na Arte, acessarem campos subjetivos do ser humano, a reflexão se debruça sobre a importância dos sonhos e das emoções , como sendo possíveis direitos subjetivos do (Ser) Tão artistas.

Nos recortes das entrevistas, têm-se que os Direito Humanos Achados na Arte versam sobre direito ao sonho, à emoção, à liberdade, à dignidade, à equidade, à inclusão, ao respeito. Isto é, a arte recriando novos repertórios decoloniais, possibilitando novas trajetórias de vida digna, por meio da “restituição do sensível” (MATOS, 2024; ANEXO B), superando as múltiplas opressões em seus grandes sertões.

Por sua vez, no terceiro capítulo, a Autora analisa as experiências do Projeto Atlântico Vermelho, realizado na sede da ONU, em Genebra, como uma intervenção artística, e a construção do Projeto de Lei de Artistas Visuais (PL 1928/2024), em trâmite no Congresso Nacional. Apesar das barreiras enfrentadas para que o sonho impossível, fosse transformado em possível, explicamos os aprendizados vividos por meio dessas veredas, especialmente a importância desses grupos minorizados ocuparem espaços de poder, dos quais, em regra são restritos à população dos países do norte global (WALSH, 2012), em um manifesto pela exigência da efetivação dos direitos humanos, políticas públicas, direito ao sonho e à emoção de (ser) tão artistas.

Nessas veredas do Atlântico Vermelho, o achado é a potência do Projeto Atlântico Vermelho, constituído por uma exposição de arte com 66 (sessenta seis) obras de 22 (vinte e dois) artistas participantes, além de ciclos de palestras, dos quais geraram reflexões para a construção de recomendações que foram inseridas na Declaração Universal de Direitos Humanos dos Afrodescendentes.

Após a entrega da referida recomendação e retorno ao Brasil, a missão continuou com a formação de grupo de estudos, concebido por artistas, pesquisadores, curadores e demais pessoas que trabalham na área de cultura com o escopo de elaborar um Projeto de Lei de Regulamentação da Profissão de Artistas Visuais, o qual ensejou a articulação com alguns parlamentares e, sem nenhuma mudança substancial no texto sugerido, deu início ao Projeto de Lei 1928/2024.

Para a Autora, nas conclusões, “apesar de termos avançado muito, tanto com o Projeto Atlântico Vermelho, quanto com o Projeto de Lei, acreditamos que estamos ainda no início da caminhada nessas veredas sertanejas, então, não propomos uma conclusão nesta pesquisa, mas a proposta de “estórias sem final” (ROSA, 2001)”. Por isso que o trabalho é também um convite para um aprendizado conjunto “com as práxis das artistas participantes a refletir sobre suas lutas pela efetivação dos direitos humanos, desenhando, redesenhando, resistindo, (re) existindo, criando, (re) criando as suas poéticas decoloniais na superação das múltiplas opressões vividas em seus grandes sertões, sendo esses transformados de “zona de não ser” em “zona de ser”, nas veredas da arte, especialmente por meio dos Direitos Humanos Achados na arte, no Direito ao Sonho e à Emoção de Ser Tão Artistas”.

Considerando a adesão da Autora às veredas do Direito Achado na Rua, acolho como pertinentes a sua contribuição que transita dessas veredas até os Direitos Humanos Achados na Arte, que vem se agregar à fortuna crítica de O Direito Achado na Rua. Com efeito, com essa designação, o seu desiderato acadêmico imprime uma caracterização a um processo em movimento que vai discriminando aproximações teórico-políticas (cf. na Dissertação página 94, principalmente) como contribuição para a teoria crítica do direito e dos direitos humanos (https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-contribuicoes-para-a-teoria-critica-do-direito/). É um movimento que opera no protagonismo de sua ação política, formas emancipatórias na perspectiva dos direitos humanos – germinais – já caracterizadas até aqui, por seus protagonistas intelectuais, associados à Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, como sindicalismo achado na rua, ítem anterior acrescido ao catálogo de ricos achados que formam a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua: a Aldeia, o Quilombo, a Rede, os Lares, a Noite, o Manicômio, o Cárcere, a Encruzilhada, as Águas, Campos e Florestas Amapaenses, o Constitucionalismo Achado na Ruao Sertão; há pouco o (Eco) Constitucionalismo Achado na Rua (Victor Nunes Leal e JJ Gomes Canotilho), a Rua em seu sentido amplo de espaço de cidadania (Milton Santos, Paulo e Nita Freire, Roberto Lyra Filho).

Nessas veredas, constituímos um grupo de estudos, formado por artistas, pesquisadores, curadores e demais pessoas que trabalham na área de cultura. Estudamos outras profissões regulamentadas, no Brasil, como artesão, músico e, no plano internacional, em que há profissão de artista visual regulamentadas. Após, redigimos uma minuta do projeto de lei, articulamos com alguns parlamentares e foi dada entrada no formato que enviamos, sem nenhuma mudança substancial, sendo a PL 1928/2024 em tramite no Congresso Nacional, desde maio de 2024.

Respondemos à pergunta da pesquisa: Como as artistas participantes da presente pesquisa, pelas veredas da arte, dos sonhos e das emoções, lutam pela efetivação dos direitos humanos a fim de superar as múltiplas opressões coloniais vividas em seus grandes sertões? Indicando que as artistas participantes lutam pela efetivação dos direitos humanos, com suas especificidades individuais, desenhando, redesenhando, resistindo, (re)existindo as suas histórias decoloniais na superação das múltiplas opressões vividas em seus grandes sertões, sendo esses transformados de “zona de não ser” em Zona de Ser, pela e com arte, especialmente por meio do Direito Achado na Arte, Direitos Humanos Achados na arte, no Direito ao Sonho e na Emoção de Ser Tão Artistas.

Ao ler o trabalho de Marina Maciel logo me acudiu a experiência vivenciada em Brasília, num sábado ensolarado quando me encontrei, numa feira solidária organizada por produtores assentados e cooperativados no conceito de agricultura familiar, com um grupo de pessoas, em sua maioria mulheres, que se reúnem para uma convivência cotidiana de reflexão-ação traduzidas em afeto e reconhecimento político.: o Coletivo Linhas de Resistência (https://www.ihu.unisinos.br/630447-linhas-da-resistencia-bordar-coletivamente-e-um-ato-emancipatorio-artigo-de-jose-geraldo-de-sousa-junior).

Me aproprio de nota postada por uma delas (Letícia) no Instagram do Coletivo, que assina como mulher bordadeira, escritora amadora e advogada. Diz ela:

Paulo Freire escreveu: “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”.

Uma de nós disse dias desses que “coletivo” é constituído para ser mais potente e mais forte do que as individualidades. Se assim não se configura, limita-se a ser uma mera agremiação.

Bordar parece um gesto singelo. Mais do que uma ação-reflexão, é sentir. Pulsar. Quando a linha abraça a agulha, uma dança inesperada tem início. Na medida em que linha e agulha atravessam o algodão cru, é como se os pés saíssem do chão e tecessem no céu sonhos e coragens. Um gesto de amor que, de tão grande, é indizível.

Bordar apequena as inseguranças. Faz brotar um jardim de flores na secura da terra que já não mais se reconhece como nascente de sonhos e criações e, mesmo assim, acolhe e nutre o que é vida. Bordar é alento para o futuro.

Nosso coletivo borda sonhos, uma de nós assim reconheceu essa potência criativa que nos habita. Pelo bordado, despertamos sorrisos onde há desamparo. Enfeitamos o olhar com a delicadeza de uma criança que descobre algo inusitado e fica estonteada com uma nova descoberta.

Bordar coletivamente é um ato emancipatório. É que nenhum indivíduo é capaz de emancipar-se em solidão. A emancipação acontece no compasso da dança da linha com a agulha, da boca que se dispõe a falar com ouvido atento a escutar. Bordar é partilha.

Nosso coletivo teve a honra e a alegria de receber no primeiro sábado solar de julho o professor José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da UnB (Universidade de Brasília) e que dedica-se ao movimento em curso nomeado “O Direito Achado na Rua”, consistente em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito”.

É possível dizer que, a partir das reflexões e compreensões sobre a realidade diante dos nosso olhos, o Direito Achado na Rua é vocacionado à construção emancipatória do direito. Nosso coletivo borda, mesmo que em rotas paralelas com o professor José Geraldo Sousa Junior, o sonho da emancipação-afeto nesses pontos comuns.

Tomo a postagem de Letícia, feliz por constatar que ela captou o que mais fortemente propõe O Direito Achado na Rua em sua perspectiva de que quando falamos em Direito falamos em emancipação, processo que só o social no seu agir coletivo pode legitimamente realizar. O Coletivo Linhas da Resistência, tece o amanhã. Como outros coletivos – estou pensando o Projeto Mulheres Coralinas, aqui pertinho na Cidade de Goiás (a nossa “Goiás Velho”) que apoia mulheres nas áreas da Gastronomia, Artesanato (cerâmica, bonecas, fibras naturais e bordado) e Educação, com participação de mulheres garis. Como dizem Ebe Maria de Lima Siqueira e Goiandira Ortiz de Camargo (organizadoras) de Mulheres Coralinas. Goiânia: Cânone Editorial, 2016, “é o resultado de esforço de pessoas, instituições e poder público de trabalhar a favor da cidadania, da igualdade de gêneros e da autonomia financeira das mulheres”.

Ebe Siqueira, em coautoria com Nair Heloisa Bicalho de Sousa e Adriana Andrade Miranda, explicam, a partir desse coletivo, o significado do conviver para viver, tal como está no texto Conviver para viver: formação e atuação das Mulheres Coralinas no enfrentamento aos efeitos perversos da pandemia do coronavírus (que está em livro que organizei com Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral. Direitos Humanos e Covid-19. Volume 2. Respostas Sociais à Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022). Um belo registro que Adriana Andrade Miranda está transformando em tese de doutorado na UnB (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania – CEAM): Literatura e Direitos Humanos: o projeto de formação das Mulheres Coralinas na cidade de Goiás, de 2014 a 2023.

São formas de resistência mas também protagonismo emancipatório para bordar e tecer o amanhã.

Mas é também, como diz Letícia, a melhor expressão dessa intersubjetividade emancipatória que designa o sentido pulsante do sentipensar (usando mais uma vez o conceito emprestado do sociólogo colombiano Fals Borda) do Coletivo Linhas da Resistência: “Todo sábado a gente cuida do jardim-composição Linhas da Resistência. É o tempo comum que criamos, pro riso, pro afago, pras fagulhas. Cada uma de nós tem afeto à sua maneira. A intensidade? É forte….Bordamos sonhos. É aos sábados que também estendemos nossos sonhos no varal. Oferecemos esses sonhos ao vento, deixamos o sonhar quarar no sol. Sonho também pede afago e delicadeza…. No cotidiano, a gente veste cada sonho. Além da pele que se vê. Pro sonhar crescer e brotar”.

É esse o mesmo sonho emancipatório que que fala Marina, em seu trabalho? É desse modo libertário que podemos apreender o sentido de uma história sem fim quando conclui que “apesar de sabermos que ainda há longas veredas dos Grandes Sertões a serem percorridas, tempestades neste Atlântico Vermelho a serem enfrentadas, o nosso navio negreiro guerreiro seguirá firme por “mais um sonho impossível” até o “mundo ver uma flor brotar do impossível chão” (CHICO BUARQUE, 1972). Isso porque não nos falta coragem para transformar os sonhos impossíveis em possíveis, em nossas veias pulsa vermelho sangue de vida, da resistência e (re)existência nesta luta decolonial de (Ser) Tão Artistas?

Qual, para Marina, a materialidade epistemológica do sonho para interpelar o real? Constato que ela se aproxima de Luis Alberto Warat, na linha que ele de modo instigante lança em seus dois manifestos – Por uma Ecologia dos Desejos e, muito originalmente, no Manifesto do Surrealismo Jurídico. Gosto de pensar que meu estimado orientador de tese logrou formular uma função emancipatória da pedagogia, ao estabelecer a relação sonho-práxis, condição para imaginar o novo (Manifesto do Surrealismo Jurídico).

Cito Warat – p. 18 – do Manifesto do Surrealismo: a imaginação e o sonho guardam estreita relação com a democracia, pois nos interpelam e nos provocam em torno do novo, nos propõem a possibilidade de pensar e sentir sem censuras, nos revelam os segredos da singularidade, o ponto neurológico da diferença: o homem novo, aquele que não tem seus sonhos, seu imaginário censurado pela instituição e que organiza seus afetos sem desejos alugados. A democracia é o direito de sonhar o que se quer”.

Penso que o trabalho de Marina abre a possibilidade, com fundamentos estendidos, que sob a perspectiva de O Direito Achado na Rua, a partir de Roberto Lyra Filho e Luis Alberto Warat, haviam sido enunciados em Observatório da Constituição e da Cidadania, UnB/Faculdade de Direito, nº 8, outubro de 2006 (Leia-se a entrevista de Warat colhida por Marta Gama, aliás, sua última entrevista em vida) – https://drive.google.com/drive/folders/12GQ-vu0EIbnqrA0Ftl0Z4IJO08v_OpMg?fbclid=IwY2xjawGXODZleHRuA2FlbQIxMAABHRz8CE3VPBCt1qXsYw3GL0OVmds-use-zesv_R8CcfOlFYZTLW7i3Ksthw_aem_izpiEtPv0ptHQIrQ5Zx1FA – sobre Novos Caminhos da Arte e do Direito.

E nem se cuida já de imaginar o caráter onírico das teorias (Warat, Manifesto do Surrealismo Jurídico), mas de compulsar outros modos de consideração do Direito, tal como o vem fazendo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao admitir, para efeito de reparação, inclusive histórica, mas também civil, no âmbito da justiça de transição, com a restauração da dignidade afrontada, do dano ao projeto de vida, quando se impede que o fluxo de escolhas e de aspirações da pessoa, seus sonhos sejam realizados Entre outros casos Benavides versus Peru (2001), Villagrán Morales y otros vs. Guatemala (2001) – (Indemnización de perjuicios, caso los “Niños de la calle” e Atala Riffo y Niñas vs. Chille (2012).

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