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quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Impactos Legislativos das Jornadas de Junho de 2013

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Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Impactos Legislativos das Jornadas de Junho de 2013. Robson Rodrigues Barbosa. Brasília: Edições Câmara, 2024

 

Já no prelo, para edição em breve, livro de Robson Rodrigues Barbosa, uma versão reduzida de sua tese de doutoramento defendida na Universidade de Brasília em 2023, dez anos depois das jornadas de junho. A publicação é um estudo singular porque opta por destacar a exposição dos dados e reduzir a incursão teórica que foi aprofundada em pesquisa acadêmica. A obra vem a público pelas Edições Câmara. Fiz o prefácio a convite do autor e dele retiro o núcleo desta recensão.

Com efeito, há muitos ensaios e artigos de opinião sobre esse tema. Para preparar este prefácio li alguns. Eles, em maior ou menor extensão e desde diferentes perspectivas temporais ou mesmo conjunturais, buscam circunscrever os acontecimentos com aproximações em geral políticas ou sociológicas. Um exemplo é o conjunto de entrevistas que a Revista do IHU Instituto Humanitas – Nº 524 | Ano XVIII | 18/6/2018 (repositório do qual sou assíduo como leitor e também autor), que a edição organizou oferecendo como chave de leitura Junho de 2013 – Cinco Anos depois. Demanda de uma radicalização democrática nunca realizada.

Ainda com essa chave, encontrei textos nos quais as Jornadas de Junho de 2013 são avaliadas como elemento de uma crise da democracia. A ocupação das ruas e das redes naqueles dias marcou as mentalidades. O que começou com poucos milhares de estudantes protestando contra o aumento da tarifa (os 20 centavos), transformou-se nas maiores manifestações de rua da história recente do Brasil, marcadas pela violência policial e pela resistência ativa das multidões, sem contudo, levar a um entendimento sobre o que se passou.

Se bem possam ser identificadas as causas dos protestos, e nisso um bom grau de reconhecimento de sua legitimidade; dez anos depois ainda não é seguro determinar se houve mesmo um despertar da sociedade civil para um protagonismo pondo em tela crítica o sistema representativo e às consequências políticas e sociais que esse acontecimento segue produzindo mudanças no modo de ativar o sistema político, seu funcionamento e as relações dos sujeitos nesse processo, de modo a poder aferir de expectativas abertas com as mobilizações possam ter tido a qualificação de promessas para transformar qualitativamente, transformando-a, a ação democrática e a cultura política, se efetivamente cultura e política.

Cinco anos depois, a esperança democrática convertida em pesadelo autoritário, desvaneceu-se num desgoverno necropolítico indicando em boa medida que as performances seletivas, o impeachment falacioso, o Escola sem Partido, os caminhoneiros militaristas, não se tratava de um povo se constituindo como um sujeito constitucional, mas uma histeria de multidão, de caminhoneiros militaristas, de acampamentos sediciosos e de pretorianos e milicianos recrutados disponíveis por meio de fake news para urdir um golpe (2023), contra a democracia, a constituição e em última análise, contra o próprio povo, numa articulação que levou à perda da agenda do progressismo e à emergência de um claro projeto de direita e de extrema-direita.

Mobilizações como o Junho 2013, 15M espanhol e o recente Nuit Debout, “funcionam mais como performance do que como discurso e projeto político alternativo”, escreve Salvador Schavelzon, antropólogo, professor da Universidade Federal de São Paulo (Osasco) e autor de El nacimiento del Estado Plurinacional de Bolivia. Etnografía de una Asamblea Constituyente (2012), em artigo publicado por El País, 26-05-2016.

Segundo ele, “tais protestos aparecem como irracionais, infantis, ou subversivos para as forças repressivas e os interlocutores do Estado, mas também para uma esquerda dogmática e centralizada, para a imprensa e as ciências sociais que exigem ou esperam propostas e demandas claras, interlocutores com rosto e biografia, trajetos de mobilização delimitados e horário para terminar claramente estabelecido. Protestos como os de junho de 2013, o Occupy Wall Street, o 15M espanhol, a Primavera Árabe e o recente Nuit Debout na França não se adaptam a esses parâmetros, como críticas “de fora e de baixo” a todo um sistema político, mas também a um modelo de sociedade e de civilização. Essa realidade utópica não a paralisa, daí deriva sua força de rápida difusão e impugnação política”.

O livro de Robson Barbosa volta-se para o impacto das Jornadas de Junho de 2013 nas proposições normativas do Poder Legislativo com o intuito de verificar se esses protestos eventualmente reordenaram os assuntos que à época pautavam a agenda legislativa.

A justificativa decorre do fato de que, não obstante tais protestos serem de importância ímpar na história das manifestações de massa brasileiras, não foram encontrados escritos no direito que mensurassem empiricamente os seus impactos institucionais, pois apenas buscaram teorizar a natureza jurídica desses acontecimentos.

Segundo o Autor, “a primeira impressão é que tais protestos incitaram um outro ‘espírito de época’ legislativo, ainda que com efeitos diferidos. Se até meados de 2013 tinham atenção assuntos como, por exemplo, empregados domésticos, Lei Maria da Penha, Raposa Serra do Sol, Comissão Nacional da Verdade, união homoafetiva, cotas, Prouni/Fies, aposentadoria especial, concessão de remédios/tratamento, num posterior e relativo curto espaço de tempo, tomaram a pauta, por exemplo, a limitação dos gastos públicos sociais pela Emenda Constitucional 95, de 2016, a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência, a prisão em segunda instância, a ampliação das competências da Justiça Militar, a intervenção federal, dentre outros.

O Autor utiliza análise estatística lexicométrica para o exame do conteúdo de 48.531 proposições legislativas federais, apresentadas entre 2003 e outubro de 2020, para mapear os grandes temas legislativos e mensurar em que medida esses protestos reordenaram a  agenda do processo legislativo Mas cuidou de adotar precauções historiográficas “para evitar a essencialização dos sentidos desses protestos, analisando-os em seu caráter sublime, como manifestações específicas de um poder insurgente que implicam em acelerações do tempo social e forja outro nexo ontológico entre o social e o político, possibilitando o advento de um novo sujeito constitucional”.

No capítulo 1 busca esclarecer a utilidade e o funcionamento do processamento estatístico para a análise de conteúdo dos dados selecionados, a partir do qual pretendeu descobrir a representação social desses eventos na visão do legislador. É a questão de método.

No capítulo 2, tendo em vista que esse trabalho é sobre a receptividade do Parlamento acerca dos protestos de 2013, resume aspectos gerais do funcionamento do Poder Legislativo, no item 2.1, bem como busca entender, item 2.2, o papel dos parlamentares enquanto integrantes da instituição que, por designação constitucional, é a representante social sensível aos influxos das demandas das ruas.

O capítulo 3 estuda o contexto prévio que propiciou o surgimento e a repercussão das Jornadas de Junho de 2013. O item 3.1 tem por finalidade encontrar as conexões entre os contextos pretéritos com as oportunidades discursivas abertas pelas Jornadas de Junho de 2013, e procura compreender quais atores e respectivos discursos contribuíram para a convulsão social promovida pelos protestos e suas influências na possível reorientação da agenda legislativa desde então. Já o item 3.2 busca justificar a periodização adotada no processamento dos dados a partir dos antecedentes históricos do evento, no que diz respeito ao contexto institucional e social que parte de 2003.

O capítulo 4 condensa o processamento dos dados e busca avaliar como se deu a evolução dos temas que foram preocupações legislativas entre 2003 e 2020, para revelar os potenciais disruptivos das Jornadas de Junho de 2013 e demonstrar quais discursos passaram a ser possivelmente objetos da atenção legislativa e quais deixaram de ser em razão dos protestos.

O resultado do estudo é o de as direções da atividade legislativa demonstraram a alteração temporal dessa sensibilidade política em função das Jornadas de Junho de 2013. Para o Autor, as análises do macro cenário legislativo apontaram que a maior mudança decorrente da responsividade da instituição legislativa ao movimento insurgente das massas de 2013 foi o aumento da probabilidade de se discutir mais matérias penais, financeiras, tributárias e de organização federativa como temas hierarquizantes, enquanto se tornou mais difícil uma atenção principal e específica com assuntos relacionados a direitos sociais.

E a conclusão do trabalho é a de que, pese ter-se verificado que tal tendência já vinha se desenvolvendo timidamente desde 2011, a instituição legislativa interpretou que a potência insurgente das Jornadas de Junho de 2013 demandou a aceleração temporal dessa transição, com efeitos mais acentuados a partir de 2015. E que sim, as Jornadas de Junho de 2013 implicaram em acelerações do tempo social e, por conta da sua potência, impactaram nas direções da atividade propositiva do Poder Legislativo.

Essa conclusão é precedida de um talvez – “talvez as Jornadas de Junho de 2013 apenas aceleraram a maturação de um contexto legislativo que se desenhava antes mesmo dos protestos, com fortes efeitos a partir de 2015”.

Penso que os nítidos deslocamentos ocorridos na pauta de proposições pelo ativismo de uma bancada, nas duas Casas, com as eleições que se desenrolaram no ambiente de polarizações pós-junho de 2013, contribuíram para organizar a perspectiva de um projeto conservador, em todos os âmbitos, que fazem circular proposições que mais o enraízem na estrutura do social.

Assinalei essa clivagem ao contribuir para a publicação do livro Democracia da Crise à Ruptura. Jogos de Armar: Reflexões para a Ação. Roberto Bueno (Organizador). São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, 1131 p. Convidado a participar da obra, o fiz com um texto afinado com seu projeto. Denominei meu artigo de Estado Democrático da Direita

Coloquei em causa um outro modo, mais sutil, de identificar um Estado Democrático da Direita. Refiro-me a sua disponibilidade para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da dignidade humana, da cidadania e dos direitos.

Ou ainda, o que assistimos agora em nosso próprio País, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a previsão de aplicação de procedimento de afastamento do Presidente ou da Presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado Democrático da Direita, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas.

talvez lançado por Robson Barbosa, a meu ver, representa exatamente essa clivagem, a de que as Jornadas de Junho de 2013 apenas aceleraram, incitando conforme ele aventa, valendo-se de uma categoria de Hegel, um outro “espírito de época”, derivado da maturação de um contexto legislativo que se desenhava antes mesmo dos protestos, com fortes efeitos a partir de 2015.

 

 

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