O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Lido para Você: Direito Achado na Rua e o Movimento Quilombola na Aroeira

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Emmanoel Antas Filho. Direito Achado na Rua e o Movimento Quilombola na Aroeira em Pedro Avelino/RN. Natal: OWL Editora Jurídica, 2024, 209 p.

Recebi com uma amável e leal dedicatória, manuscrita pelo Autor, essa bela edição, em capa dura, do livro Direito Achado na Rua e o Movimento Quilombola na Aroeira em Pedro Avelino/RN, de Emmanoel Antas Filho, advogado, Mestre em Serviço Social e em Direitos Sociais pela UERN (Mossoró), professor da universidade.

O livro tem o prefácio do professor Olavo Hamilton Ayres Freire de Andrade, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), que identifica no trabalho de Emmanoel, o ter conferido ao seu estudo “do Quilombo Aroeira em Pedro Avelino/RN, cidade onde estão fincadas as suas raízes [o aporte] ao movimento um marco teórico para a luta e afirmação dos direitos que lhes são inerentes: o ‘Direito Achado na Rua’”.E o faz, seguindo uma linha de localização e de explicação sobre o campo teórico, assinalando que a “teoria do ‘Direito Achado na Ra’ é uma concepção de direito que busca enfatizar e legitimar as práticas sociais e os movimentos populares como fontes criadoras de normas jurídicas, defendendo um acesso mais democrático e inclusivo ao direito”.

Me reconheço nas demarcações mais precisas que o professor Olavo Hamilton desenvolve no prefácio fruto, certamente, do convívio entretido ao tempo da realização da UFERSA (Universidade Federal Rural do Semiárido, em Mossoró, RN), do programa interinstitucional de pós-graduação em direito, com a minha universidade, a UnB.

O professor Hamilton participou do programa com tese publicada em 2016 como livro, já constituído como referência, Princípio da Proporcionalidade e Guerra Contra as Drogas, pela OWL, já em terceira edição, com edição em inglês pela E-Book Kindle, Proportionality and The War On Drugs: Why banning drugs is unconstitutional.

A OWL é quem edita o livro de Emmanoel e vale uma nota de distinção sobre esse projeto editorial. Conforme pude constatar, seus fundadores traçaram um programa com esse objetivo: “A despeito das enormes disparidades econômicas que separam a região nordestina do sudeste brasileiro, paradoxalmente as produções intelectual e artística de ambas se equivalem, quando mesmo pesam mais em favor dos nordestinos. Tem sido assim historicamente na literatura e na prudução do conhecimento científico (mormente nas áreas das ciências humanas e sociais) e filosófico. Nos domínios do Direito, a vetusta Faculdade de Direito do Recife foi o grande polo irradiador da cultura jurídica nacional, desde a sua fundação no primeiro quartel do século XIX, ultrapassando sobejamente o saber jurídico criado à sombra das velhas arcadas de sua congênere do Largo São Francisco, em São Paulo. A despeito das enormes disparidades econômicas que separam a região nordestina do sudeste brasileiro, paradoxalmente as produções intelectual e artística de ambas se equivalem, quando mesmo pesam mais em favor dos nordestinos. Tem sido assim historicamente na literatura e na prudução do conhecimento científico (mormente nas áreas das ciências humanas e sociais) e filosófico. Nos domínios do Direito, a vetusta Faculdade de Direito do Recife foi o grande polo irradiador da cultura jurídica nacional, desde a sua fundação no primeiro quartel do século XIX, ultrapassando sobejamente o saber jurídico criado à sombra das velhas arcadas de sua congênere do Largo São Francisco, em São Paulo”.

Do projeto, quase um manifesto, segue-se a concretização: “O passo seguinte foi reunir as nossas experiências de docentes de faculdades de direito situadas no Rio Grande do Norte, bem assim de operadores jurídicos – um magistrado federal e dois advogados militantes – para criar uma editora que possa dar vazão à publicação editorial dessa produção teórica e prática dos juristas desta região nordestina. Na construção do nome da nova editora jurídica, do advogado e professor Olavo Hamilton Ayres Freire de Andrade foi extraído o “O”; o magistrado e professor Walter Nunes da Silva Júnior contribuiu como a inicial “W” e, finalmente, o advogado e professor Paulo Afonso Linhares entrou com a inicial “L” do seu nome de família, tudo para formar a sigla OWL que, em língua inglesa significa “coruja”, por excelência ave que, na cultura ocidental, simboliza o conhecimento filosófico. Eis a OWL Editora Jurídica, primeira editora jurídica sediada em solo potiguar. O objetivo da OWL Editora Jurídica Ltda. é, portanto, ser instrumento de intermediação entre as fontes de produção do conhecimento jurídico regional e o mercado editorial nacional, para tornar possível o surgimento de maiores oportunidade para aqueles que, distanciados das grandes editoras jurídica do sudeste brasileiro, muito dificilmente conseguiam publicar sua produção teórica em matéria de Direito, o que inelutavelmente fortalece uma maior presença do pensamento jurídico sulista a balizar as grandes questões nacionais, nos parlamentos, na imprensa, nas academias do Direito e, enfim, no mundo forense. Assim, nossa expectativa é que a OWL Editora Jurídica Ltda. possa, ao lado de outras congêneres já instaladas na região nordestina, cumprir este desiderato, pelo bem das letras jurídicas e da produção científica”.

Eu já conhecia o trabalho acadêmico de Emmanoel – dissertação de mestrado – que deu origem ao livro, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, em 2020, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Serviço Social e Direitos Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Maria Ivonete Soares Coelho; tendo como Co-orientador o estimado Professor Lauro Gurgel de Brito, que também participou do Minter UnB-UFERSA e que veio a ser diretor do curso de Direito da UERN – Mossoró.

Até publiquei uma nota-recensão sobre o trabalho, aqui neste espaço Lido para Você – https://estadodedireito.com.br/movimento-social-quilombola-e-o-direito-achado-na-rua/, manifestando dupla satisfação, o ter podido participar da banca e o de ter podido verificar a rica e fecunda elaboração derivada, em boa medida daquela experiência interinstititucional que a rigor, ainda tem curso pois, em seguida às defesas de teses que o programa ensejou com total aproveitamento, há continuidade do diálogo que então se abriu, bastando ver a sua projeção nos valiosos trabalhos que hoje circulam nos catálogos editoriais.

Já festejei a publicação de Neoliberalização da Justiça no Brasil: Modo Governamental de Subjetivação, Dispositivo Jurisdicional de Exceção e a Constituição como um Custo, de Thiago Arruda Queiroz Lima, pela Editora Lumen Juris. Contribui para a obra com um prefácio e dela fiz uma recensão na minha Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/neoliberalizacao-da-justica-no-brasil/). Incluo nesse rol altamente representativo o próprio Professor Lauro Gurgel de Brito, que participa como coautor, no volume que co-organizei para a Série O Direito Achado na Rua, vol. 9: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico. Na obra, conferir em (https://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/), tem relevo a importante contribuição do professor Gurgel de Brito – Além do Protesto: Movimento Pau de Arara Reivindica a Cidade, um tema desdobrado de sua tese, ela própria, necessariamente, constante da bibliografia da Dissertação de Emmanoel Antas Filho.

Exalta essa dupla satisfação o valioso e enriquecedor debate proporcionado pelas colegas Mirla Cisne Álvaro e Maria Ivonete Soares Coelho, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), respectivamente, examinadora e Orientadora da Dissertação.

Em relação à dissertação e agora ao livro, constato com uma nota de aprovação o cuidado que o Autor demonstra em fundamentar, com dados relevantes de estudos locais e regionais, o seu estudo. Seu co-orientador sabe, ao tempo em que acompanhei o projeto interinstitucional UnB/UFERSA, de doutoramento em Direito, o quanto valorizo e recomendo esse cuidado. Algo que tenho insistido em fomentar em outras experiências com esse caráter de interinstitucionalidade regional. Na ocasião, desenvolvendo o meu curso no projeto, fiz incidir na bibliografia autores potiguares, não só porque com isso carrego um tanto de ufanismo, mas porque há na bibliografia norte-riograndense de Direito, contribuições notáveis, entre tantos, Amaro Cavalcanti, Miguel Maria de Serpa Lopes, Miguel Seabra Fagundes e, para mim, em registro duplo, de ufanismo e reconhecimento, meu próprio e querido avô, Floriano Cavalcanti de Albuquerque, sobre o qual e para distingui-lo, escrevi um ensaio que fiz circular no Curso (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Depoimento. In ALBUQUERQUE, Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de. Desembargador Floriano Cavalcanti de Albuquerque e sua Brilhante Trajetória de Vida. Natal: Infinitaimagem, 1a. Edição, 2013). Em aditamento a esse depoimento, remeto à minha Coluna Lido para Você, no Jornal Estado de Direito, conforme https://estadodedireito.com.br/desembargador-floriano-cavalcanti-de-albuquerque-e-sua-brilhante-trajetoria-de-vida/ . Além disso, anoto, entre as opções do Autor, o para mim insuperável Luís da Câmara Cascudo.

Tal como mostra a bibliografia da obra, toda uma forte documentação e estudos temáticos de excelente interpretação e boa circulação sobre o tema do escravismo colonial, do desenvolvimento local, regional e do Rio Grande do Norte, sobre protagonismo de movimentos sociais e sobre histórias e modos de vida das comunidades remanescentes de Quilombos, dão a dimensão de pertinência que o tema requer, exibindo um empírico que interpela realisticamente, as abordagens teóricas já disponíveis sobre o tema e que dão sustentação ao empenho explicativo que o Autor desenvolve.

Ponho em relevo entre esses estudos, a excelente Dissertação defendida na UnB, em 2019, no Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB, “Entre a Ocupação, a Certificação e a Titularidade da Terra: a Luta pelo Direito à Terra da Comunidade Quilombola de Macambira – RN” de autoria de Áurea Bezerra de Medeiros.

Nesse trabalho, sobre o qual também escrevi uma Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/entre-a-ocupacao-a-certificacao-e-a-titularidade-da-terra-a-luta-pelo-direito-a-terra-da-comunidade-quilombola-de-macambira-rn/), Áurea oferece um sumário descritivo do campo que pretende abranger, abrindo com uma introdução histórica, na qual recupera o percurso que vai da escravidão à formação dos quilombos, para abrigar o sentido de reconhecimento dos remanescentes dessas comunidades, a partir de julgamento do Supremo Tribunal Federal, no marco da Constituição de 1988 e, tal como está no artigo 68 da Disposições Transitórias, a designação de direitos das comunidades quilombolas. Sob esse ângulo, ela analisa a decisão do STF sobre a constitucionalidade do Artigo 68 da ADCT e do Decreto 4.887, tal como se deu no julgamento da Adin 3239.

Em seguida a autora traça “a Longa e Tortuosa Trajetória Sofrida Pela Comunidade Quilombola de Macambira – Detalhamento da Tensão entre a Justiça Estadual, a Federal e o processo Administrativo no INCRA”. Assim ela descreve, com detalhes o Processo na Justiça Estadual, a luta pela terra iniciada em 1997; a Apelação TJRN e Ação de Execução Provisória na Justiça Estadual do RN; o enquadramento da questão na Justiça Federal – Processo nº 0800076-72.2013.4.05.8402; o modo de designação da Comunidade Quilombola Macambira no Processo Administrativo no INCRA; finalizando com uma análise documental crítica desses processos judiciais e administrativo.

No que é uma singularidade do trabalho, a Autora, indica já no sumário, a sua importante contribuição, para o conhecimento dessa realidade, pois penso que é o único estudo que a focaliza e oferece um retrato da COMUNIDADE QUILOMBOLA DE MACAMBIRA E SUA HISTÓRIA: o seu reconhecimento como comunidade quilombola; esse reconhecimento pela Justiça Federal, no tocante ao seu direito as terras; e, outra singularidade do estudo, a demonstração do conflito presente nesse enquadramento no que designa como “A Comunidade Quilombola de Macambira, as torres de energia eólica um acordo extrajudicial lesivo”.

O professor Menelick de Carvalho Netto, que também participou no Programa Interinstitucional em Mossoró e que orientou a dissertação de Áurea Medeiros, valoriza conforme eu também o faço, a importância dos estudos de caso, valiosos na configuração das singularidades, assim como em Barro Vermelho e Contente, no Piauí, na pesquisa Rodrigo Portela Gomes cujo trabalho acaba de ser indicado, juntamente com mais outros três, ao Prêmio UnB de Dissertações e Teses 2018/2019, pela Faculdade de Direito da UnB.

Editado pela Lumen Juris, com igual caraterística – estudo de caso – menciono o livro de Cássius Dunck Dalosto (Políticas Públicas e os Direitos Quilombolas no Brasil. O exemplo Kalunga, Rio de Janeiro, 2016, 243 p.). Pesquisa originada do Programa de Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás, o livro insere no contexto da “história dos quilombos no Brasil”, a experiência de resistência dos Kalungas (Estado de Goiás) e seu processo de luta. É desse processo de luta que trata o livro, luta de resistência “contra a violência perpetrada sobre as comunidades negras no Brasil na busca por reconhecimento e por acesso aos bens e serviços oferecidos pelo Estado… para a conquista por direitos e sua efetivação na realidade social por meio de políticas públicas…”.

Ainda sobre o estudo de Áurea, sobre o que possa interessar à pesquisa de Emmanoel Antas Filho, está o apreender em ambos, uma realidade em processo, pondo em evidência o conjunto de ameaças que pairam sobre o direito reivindicado. Para Áurea, “no caso da Comunidade (de Macambira), a garantia jurídica de seus direitos esteve todo o tempo sendo tolhida, conseguir a efetivação deste direito tornou-se uma luta desleal, observa-se o período que o processo ficou parado na primeira instância sem ter prosseguimento, e o prazo que não foi concedido a Comunidade para apresentar manifestação sobre o terceiro interessado que iria fazer parte do processo”.

O livro de Emmanoel, em resumo, “tem o objetivo de analisar o processo de lutas, de reconhecimento e conquistas dos direitos sociais do quilombo da Aroeira, localizado no Município Pedro Avelino/RN, à luz da proposta teórica do Direito Achado na Rua. Nesse sentido, foram investigadas a formação e a origem da comunidade, identificados os interesses e os projetos em disputa pelo grupo, tudo com uma atenção especial em relação às formas de organização, lutas e a configuração como sujeito coletivo de direito e expressão do Direito Achado na Rua. O processo metodológico da pesquisa constou de revisão de literatura sobre as temáticas escravismo, quilombos, movimentos sociais, Direito Achado na Rua e Sujeito Coletivo de Direitos. Ocorreu pesquisa documental junto ao INCRA, à Prefeitura Municipal de Pedro Avelino, à Fundação Palmares e à Associação São Francisco do Quilombo Aroeira, bem como em sites e jornais disponibilizados em plataformas digitais quando as informações tratavam da temática ou dos atos do quilombo. Os estudos relacionados à escravização, quilombos, movimentos sociais e movimentos social quilombola fundamentaram-se em autores clássicos e contemporâneos e a análise foi feita dentro de um contexto histórico e a sua evolução traz diferentes posicionamentos, que contribuíram para apreciação e construção dos resultados. A pesquisa apresenta o termo Movimento Social Quilombola como Sujeito Coletivo de Direito e expressão do conceito de Movimentos Sociais e sua articulação com o Direito Achado na Rua, como materialização das conquistas e lutas do Quilombo Aroeira por Direitos Sociais. Esse se constitui como propósito teórico da dissertação. Para essa articulação, foi abordado o Direito dentro de um processo histórico que emerge da dialética social, não como ordem ou lei, mas como legítima expressão da liberdade, conforme propõe Roberto Lyra Filho, emanando do espaço público e decorrendo dos movimentos sociais quando lutam por direitos sociais enquanto sujeitos coletivos de direitos, tendo como referência empírica o quilombo da Aroeira e seu processo de reconhecimento, entre os anos de 2006 a 2020. Os achados da pesquisa apontam para a confirmação de que o processo de reconhecimento e conquistas dos direitos sociais da comunidade quilombola da Aroeira em Pedro Avelino-RN decorre da sua luta e organização enquanto sujeito coletivo de direitos do movimento social quilombola, constituindo-se, portanto, expressão do Direito Achado na Rua”.

Vale em sequência a advertência do Autor de que o “viso do trabalho não é na linha de abordagem do escravismo como folclore ou romantização escorada nos princípios da revolução francesa, mas como símbolo de resistência e de lutas”. Isso logo se verá a partir do enquadramento interpelante da leitura crítica que o Autor oferece, retirando do tema qualquer domesticação da crueza da luta por reconhecimento e direitos e do sentido dramático da reivindicação não conformista, mas que que é rebelde e contesta.

A advertência não é, pois, graciosa, se entre nós, no Rio Grande do Norte principalmente, com os registros folclóricos de narrativas a que nos acostumamos, um pouco românticas, como em Cascudo, ou Gilberto Freyre, edulcoradas num imaginário que oculta em comportamentos bondosos a dureza de uma estrutura que ultrapassa as biografias e mantêm intactas as condições de espoliação e de opressão.

A narrativa de Emmanoel, escovando a realidade a contrapelo, fez evocar em minhas memórias juvenis, as crônicas que tantas vezes serviram de cortina para fazer penumbra a uma sociedade patrimonialista, em arranjo decolonial, com os contornos de um legado escravocrata, mesmo entre “bons” senhores de escravos.

O estudo de Emmanoel Antas Filho contribui para o fortalecimento de consciência, de defesa e de apoio à causa quilombola em nosso País. Ele corrobora para realizar aqueles objetivos que Vilma Francisco procurou estabelecer ao preparar um manual de Direitos Humanos para Quilombolas (Coleção Caminho das Pedras, vol. 1. Rio de Janeiro, 2006 – https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-para-quilombolas/. O Manual, uma iniciativa do PROAC – Projeto de Apoio a Comunidades de Quilombos do Brasil, vinculado ao Instituto Brasileiro de Ação Popular – IbrAP, é fruto de cuidadosa pesquisa e de redação original e sensível e tem a preocupação de situar os direitos fundamentais e os direitos humanos ao alcance dos quilombolas, por meio de uma linguagem que facilita o seu entendimento e as suas condições de exercício.

Em sua tessitura editorial, a obra, em razão de sua motivação e de seu alcance, não é uma tarefa fácil, mas é uma tarefa urgente. Numa sociedade em que o racismo orienta fortemente as disposições ideológicas desde o pós-abolição (SANTOS, Sales Augusto dos. A Lei nº 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro, in Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade/MEC, Brasília, 2005), assumir atitude, defesa ou firmar a consciência da subjetividade aspirante a direitos iguais e plenos pelos excluídos da cidadania, requer sentido de imediatidade e comprometimento histórico.

Trata-se, por isso também, quando se cogita de um Manual de Direitos Humanos Quilombolas, de procurar abrir a doutrina jurídica nacional, para a relevância desses direitos, uma vez que “o povo negro teve o seu direito mantido separado da ‘lei oficial’, elaborada e mantida pelas oligarquias econômicas que estavam no poder” (SAULE JR, Nelson, org., A situação dos direitos humanos das comunidades negras e tradicionais de Alcântara, MA – Brasil. Relatório da Missão da Relatoria Nacional do Direito à Moradia Adequada e à Terra Urbana. São Paulo, Instituto Polis, 2003).

O Manual, vou continuar chamando-o assim, carrega esta pretensão auspiciosa. Além de oferecer aos próprios sujeitos membros das Comunidades Quilombolas o conhecimento que emancipa, colocando o Direito e os meios para os exercer ao alcance de sua capacidade de ação, quer ainda “despertar a consciência da sociedade em geral no sentido de perceber a necessidade que se impõe para o respeito às comunidades quilombolas. Não apenas pela importância simbólica de sua existência concreta, mas pelo reconhecimento dos seus direitos já garantidos e legitimados na Constituição e nos tratados internacionais”.

Para um País que se construiu sobre bases escravistas, lembra Ivair Augusto Alves dos Santos (Ações afirmativas: farol de expectativas, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al., org. Educando para os Direitos Humanos. Pautas Pedagógicas para a cidadania na Universidade, Porto Alegre: Síntese, 2004), “mais de um século pós Abolição, não foi capaz de elaborar um programa de promoção de igualdade ou um conjunto de políticas sociais que contemplasse a questão das desigualdades raciais”.

O Manual aponta para esse esforço de construir igualdade. Na medida em que abre o horizonte dos direitos, opera com a expectativa da enorme disposição dos quilombos contemporâneos para se fazerem sujeitos de sua própria inserção. Citando Glória Moura, fonte na qual invariavelmente busco alimento para qualificar minhas reflexões nesse tema, com um pequeno ajustamento de contexto (O Direito à Diferença, in MUNANGA, Kabengele, org., Superando o racismo na escola. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Brasília, 2005), cuida-se de imagina-los “como fator formador e recriador de identidade – para, através dos direitos fazê-los – veículo de transmissão e internalização de valores que possibilitam a afirmação e a expressão da diferença/alteridade e, ao mesmo tempo, a negociação dos termos de inserção das comunidades rurais negras na sociedade como um todo”.

Seu trabalho precede a vertente acadêmica que se debruça sobre o tema e que começa a oferecer reflexões valiosas para a afirmação dos direitos humanos das Comunidades Quilombolas. É o caso da dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UnB), também sob minha orientação, de Emília Joana Viana de Oliveira: Mulheres quilombolas na luta pelo direito à água: uma reflexão a partir do conflito do Quilombo Rio dos Macacos – BA.

No centro de sua pesquisa se vai constatar a água como elemento central para a produção e reprodução da vida humana, e, também para a manutenção do modo de vida da Comunidade Quilombola de Rio dos Macacos-BA, pela identidade quilombola pesqueira e agricultora no espaço rural. A dissertação apresenta a água como um componente central na disputa pelo território no conflito com a Marinha do Brasil, que executa uma gestão territorial de controle, proibição, violências e restrição do acesso à água, com diversas violações de Direitos Humanos desde a chegada da instituição no território onde já vivia a comunidade e se iniciaram as atividades que envolvem o complexo da Base Naval de Aratu-BA na década de 1950.

A partir do conflito, vê-se que a práxis de mulheres quilombolas para a manutenção do modo de vida quilombola, que é atravessada pelo racismo e pelo sexismo, tem o papel anunciar que o território também é água, na medida em que lutam para que o processo de regularização fundiária quilombola no contexto de conflito com o Estado, por meio de uma instituição militar, garanta também o acesso aos rios, fontes sagradas e a possibilidade de uso da água de todas as formas necessárias para a garantia do modo de vida quilombola.

A disputa pela compreensão da água como parte do território e como um Direito Fundamental, surge da percepção de mulheres negras nesse conflito e visa a efetivação deste diante do Estado e se aplica a esse, mas também a tantos outros conflitos fundiários no Brasil, marcados pelo racismo desde a colonização, de modo que o olhar para a experiência quilombola, no passado e no presente, evidencia um dos modos de disputa pelo acesso à terra da população negra brasileira, como continuidade da Diáspora Africana. Ao mesmo tempo, amplia a percepção do acesso a água como dinâmica essencial para a manutenção dos modos de vida de acordo com as identidades e as territorialidades.

As comunidades quilombolas surgem enquanto categoria que abre o reconhecimento jurídico a partir da previsão normativa do art. 68 do ADCT da CF/88, inaugurando a dogmática constitucional sobre os direitos dos povos quilombolas, considerando estes reunidos em territórios coletivos, com a regularização fundiária prevista no Decreto 4887/03, que prevê os procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação, recentemente declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a validade do Decreto 4.887/2003, garantindo, com isso, a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas).

Entendo que o livro de Emmanoel parte dessa ordem de posicionamento. Para o Autor o trabalho “tem como tema O Movimento Social Quilombola e o Direito Achado na Rua: uma análise da organização e lutas do Quilombo da Aroeira no Município de Pedro Avelino-RN, buscando respostas para o problema que deu impulso inicial à pesquisa, que é saber se o quilombo da Aroeira em Pedro Avelino-RN é expressão do Direito Achado na Rua. Nessa linha, tem-se como objetivo geral analisar se o quilombo da Aroeira em Pedro Avelino-RN é expressão do Direito Achado na Rua, ponto este que terá cada elemento dissecado nos capítulos do trabalho, ficando à cargo da última parte, fazer a articulação entre o que se apreendeu da pesquisa documental, os referenciais teóricos abordados e o quilombo objeto do estudo”.

Insere-se na motivação do Autor “pesquisar sobre O Direito Achado na Rua, trabalhando-o não como ordem, mas como “legítima expressão da liberdade” (LYRA FILHO, 1982), analisando seus elementos e a relação com as lutas dos movimentos sociais, valendo-se de posicionamentos doutrinários que tratam das formas de efetivas conquistas de Direitos Humanos, com significativa importância dada às contribuições dos Movimentos Sociais e do Direito Achado na Rua como um instrumento de lutas e vitórias”.

Quer o Autor compreender o do sujeito coletivo de direito, categoria fundante do campo teórico-epistemológico de O Direito Achado na Rua e analisar a sua formação e o seu papel dentro do contexto histórico, de constituição da comunidade quilombola, espaço no qual se forma a subjetividade ativa e instituinte de direitos.

O processo de titulação da terra correspondente ao território do quilombo, que tramita junto ao INCRA, possui cadastro de todas as famílias até 2013, o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), composto pelo estudo antropológico com entrevistas, fotografias, dados, árvore genealógica, relatos e mapas. Começou a tramitar no ano de 2006 e até julho de 2020 encontrava-se com o relatório concluído e pendente de andamento.

Com esse aporte empírico possível quer o Autor “fazer a subsunção das categorias descritas na parte teórica do trabalho para explicar como a comunidade se enquadra e se identifica como expressão do Direito Achado na Rua, tomando por base suas ações e conquistas no espaço público, enquanto sujeito coletivo e movimento social quilombola” e, nesse passo, “trabalhado o conceito de Direito Achado na Rua, passando pela sua concepção, objetivos e relevância dentro do contexto social e político, fazendo a relação com o movimento social, abordando o Movimento Social Quilombola, identificando-o e analisando-o como Sujeito Coletivo de Direitos” .

Tomando o território do quilombo não só como um espaço físico, “mas como lugar onde se tem depositado suas tradições, seus costumes, onde se concentram e se conservam valores étnicos, a linha de investigação percebe o quilombo, com uma ideia de nucleamento, de associação solidária em relação a uma experiência intra e intergrupos, vendo a territorialidade como uma fronteira construída a partir de um modelo específico de segregação, mas que propicia condições de permanência de continuidade das referências simbólicas importantes à consolidação do imaginário coletivo”, o Autor pretende em suma, fazer a articulação das categorias designadas no curso da pesquisa para “demonstrar que o quilombo se configura como expressão do Direito Achado na Rua, por ser imanente de práticas libertadoras do sujeito coletivo na luta por direitos que emergem do espaço público, como legítima expressão da liberdade”.

Terá alcançado seu intento?

Ora, o Autor opera com a convicção colhida em sua pesquisa, de que “os Movimentos Sociais não precisam pedir licença para lutar, tampouco para pautar as suas reivindicações políticas na lei ou na autorização dos poderes constituídos. Por essas razões, o direito que dessa organização se origina é puramente humano, democrático, na verdadeira acepção da palavra”. E que a “sua luta que não cessa, mas, é através do Direito Achado na Rua, com sua afirmação nas ações dos Movimentos Sociais, que respira a liberdade e a participação política, como meio de criação de verdadeiros direitos humanos e de uma democracia substantiva”.

Daí a relevância das categorias de O Direito Achado na Rua, que o Autor utiliza com pertinência e entendimento preciso, conforme se constata no capítulo 2 da Dissertação, como um instrumento para dar sustentação a essas relações com os Movimentos Sociais e suas lutas políticas, no alcance dos direitos humanos. Com efeito, para o Autor, “o referencial teórico tratado no presente fez constatar os movimentos sociais e o Direito Achado na Rua como instrumentos de luta, molas propulsoras para aquisição de direitos humanos, cidadania e democracia”.

A análise conceitual e histórica “mostrou que o quilombo deixou de ser somente um aspecto negativo, ilícito e até criminoso, para, diante de uma ressemantização, ser analisado por outros prismas, levando em conta aspectos sociológicos e políticos que passaram a fundamentar as razões da reunião dos negros descendentes de escravos e essa territorialidade que os ligam à terra vindicada”. Assim, “foi trazido um conceito de quilombo que envolve categorias como união, identidade étnica, luta, preservação de valores, sujeito coletivo de direito, resistência e territorialidade. Com essas categorias conceituais veio à baila uma nova percepção de quilombo, com nova interlocução com a sociedade e com o aparato estatal, que passa a se afigurar como o que se denomina de movimento social quilombola”.

Nesta linha, foi possível abordar, através das fundamentações teóricas, o Movimento Quilombola como um Novo Movimento Social, que transcende as discussões de classe, embora não as exclua. A partir de elementos conceituais coligidos em sua revisão bibliográfica, o Autor acaba por ressignificar o conceito, concluindo por designar quilombos, ao menos para sulear sua abordagem na Dissertação, como “movimentos por direitos e por reconhecimento dos quilombos como identidade étnica, resistência, luta, preservação de valores; buscando que seja a eles assegurado o território onde encontram-se fincadas suas raízes, bem como as conquistas decorrentes das lutas do povo negro e da população quilombola como sujeito coletivo”.

A organização dessas lutas e a identidade entre os sujeitos que se unem em torno de valores históricos e étnicos, na busca por direitos, os fazem se identificar com projetos convergentes para participar de ações coletivas, a fim de solucionar suas demandas. O Movimento Social Quilombola está pautado num referencial coletivo, que baliza suas ações em critérios subjetivos, identitários e comunitários de lutas, vendo o quilombo como um fator de mobilização política, que faz com que esses sujeitos gerem uma identidade entre si.

O Movimento Social Quilombola ainda apresenta tímida participação no cenário nacional nesse campo de lutas, mas cada dia vem se afigurando vetor de organização, ciente que o retrocesso não pode ser uma opção palatável, o que levará a implementação de estudos mais aprofundados.

Ainda segundo o Autor, “os documentos consultados dão conta que o reconhecimento como quilombo e a demarcação das terras em um processo moroso, assoberbado de exigências e investigações jurídicas, sociais e antropológicas é tratado como mais um tópico destes capítulos da resistência e lutas políticas do povo quilombola de Aroeira. Observou-se que as normas que disciplinam o processo de reconhecimento, demarcatório e de concessão do título da terra aos quilombos são objetos de lutas e decorrem, também, das marcas deixadas por esses embates e manifestações. Todavia, ficou claro que, não só no Rio Grande do Norte, mas em todo o Brasil, esse processo de titulação e elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Demarcação (RTDI) são morosos e penosos, sendo o seu andamento um desafio dos quilombos e dos Movimentos Socais Quilombolas, em razão da destinação de poucos recursos financeiros, bem como a secundarização pelo INCRA à política quilombola, a ausência de agenda com demandas comuns dos quilombos, além da fragmentação das organizações associativas das comunidades”.

O estudo constata que “no quilombo Aroeira que as conquistas são contínuas, dentre as quais o acesso à políticas públicas e infraestrutura, como a sede própria para a associação e um açude para abastecimento de água para a comunidade, que decorreu da compensação pela instalação de linhas de energia eólica construídas no território do quilombo, melhorando a vida da localidade. O Aroeira é um quilombo de pessoas sofridas, tradicionalmente abandonadas pelo poder estatal. Resistir mais de um século nessa situação mostra a garra que possuem os quilombolas lá fincados. Há pouco mais de uma década passos significativos passaram a ser dados como única saída de quem grita por direitos e percebeu que, para galgar espaços, é preciso uma articulação diferenciada através da organização enquanto, como a Associação São Francisco. Registre-se que não se pode esperar simplesmente da lei a resposta para essas necessidades, bastando lembrar que a escravidão tinha todo amparo do Estado e da legislação da época, como se evidenciou dos referenciais teóricos utilizados. Todavia, perceba-se que para o êxito dessas reivindicações, especialmente quando se luta por direitos humanos, democracia e cidadania, é fundamental que se dê de forma não segmentada, unindo forças dos movimentos sociais contra toda a estrutura de dominação, vindicando ter em mãos o efetivo poder político”.

E mais, diz o Autor: “No quilombo Aroeira, em Pedro Avelino-RN, a luta por direitos sociais, dentre os quais os títulos da terra, adicionados especialmente a luta por água potável, moradia e saneamento básico, está em plena efervescência e sua atuação como sujeito coletivo de direitos tem fundamental papel no processo de reconhecimento e conquistas desses direitos. Nessa perspectiva, é importante ter em mente, e isso já se apresenta claro para os quilombo da Aroeira, que a conquista da demarcação do território é apenas um passo, sendo fundamental que se implementem as políticas subsequentes de reforma agrária e infraestrutura que concebam a qualidade de vida como consequência dos direitos conferidos”.

Para além de meus próprios escritos, os mais importantes e mais pertinentes inscritos no referencial teórico resenhado, consinto que depois da completa e bem posicionada formulação de Mauro Almeida Noleto (Subjetividade Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998 – https://estadodedireito.com.br/subjetividade-juridica-a-titularidade-de-direitos-em-perspectiva-emancipatoria/), o abalizado e mais recente estudo sobre a aplicação da categoria sujeito coletivo de direito e as estratégias de enquadramento a partir do marco epistemológico estabelecido em O Direito Achado na Rua, foram bem configurados num texto ainda inédito – SUJEITO COLETIVO DE DIREITO E OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: A LUTA POR DIREITOS DE ACESSO À TERRA E TERRITÓRIO – de Clarissa Machado de Azevedo Vaz e Renata Carolina Corrêa Vieira, produzido para o Seminário Internacional O Direito Como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua e que vai integrar o volume 10, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade (no prelo).

Nesse texto as Autoras revisitam o acervo teórico do tema para articular a questão dos Movimentos Sociais e novos sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direito e o Direito Achado na Rua e, em diálogo com meus conceitos, acertam que “depois de estabelecer as bases sociológicas e filosóficas do conceito, José Geraldo de Sousa Junior conclui, portanto, a fundamentação teórica necessária para a constituição da categoria jurídica “sujeito coletivo de direito”. Segundo o autor, “a análise da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, que se exprime no exercício da cidadania ativa, designa uma prática social que autoriza a estabelecer, em perspectiva jurídica, estas novas configurações, tais como a determinação de espaços sociais a partir dos quais se enunciam direitos novos, a constituição de novos processos sociais e de novos direitos e a afirmação teórica do sujeito coletivo de direito”.

Para elas, assim como para Emmanoel, “é neste ponto, que se enquadra a teoria epistemológica de O Direito Achado na Rua, expressão criada pelo professor Roberto Lyra Filho (1986). Ao reconhecer esse espaço de cidadania ativa como uma experiência emancipatória, Lyra Filho defende que o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão, “enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”. O direito, portanto, se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência), quanto produtos falsificados (isto é, a negação do direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto da consagração do direito”.

Para as Autoras, é somente nesse sentido que pode se orientar o trabalho político e teórico de O Direito Achado na Rua em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito: 1. determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos; 2. definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e 3. enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direito e estabelecer novas categorias jurídicas, que superem a condição de espoliação e de opressão e estabeleça uma legítima organização social da liberdade.

A pesquisa também evidenciou a questão identitária, étnico-racial de autodeclaração e orgulho da sua condição de negro quilombola. É essa questão identitária que a luta do quilombo como um sujeito coletivo ajuda a construir, como ocorre quando aqueles que não residem mais na Aroeira se afirmam quilombolas, em razão de terem a consciência que ali estão suas origens e que são parte daquela territorialidade por se sentirem melhor protegidos nesse processo contínuo e histórico de lutas.

É possível afirmar, consoante os achados da pesquisa, que no quilombo Aroeira a organização e o fortalecimento das práticas de políticas associativas estão em franco desenvolvimento e consolidação, demonstrando-se pela análise da documentação com os referenciais teóricos, que são elas responsáveis, direta ou indiretamente, pelas conquistas que decorrem das lutas como sujeito coletivo.

Nesse sentido – completa o Autor – “consideramos que os estudos realizados evidenciaram que a hipótese foi confirmada pelos elementos destacados, no sentido de que as experiências do Quilombo Aroeira em Pedro Avelino-RN se constituem expressão do Direito Achado na Rua. A importância do estudo empírico realizado é poder utilizar as vozes do quilombo Aroeira através dos documentos e outros estudos, analisando o lugar da fala dos seus sujeitos e, também, por possibilitar tratar do movimento quilombola como um movimento social responsável pelo surgimento do direito, onde nada havia sido escrito ou pesquisado com um olhar dedicado as suas lutas e ao Direito Achado na Rua, articulando, ainda, dois campos de conhecimento: o Serviço Social e o Direito”.

As Autoras, assim também Emmanoel, procuraram estabelecer reflexões sobre a categoria jurídica do “sujeito coletivo de direito” e sua relação com os novos movimentos sociais, na busca por direitos, em especial direito à terra e território, e a sua concretização na criação de novos direitos, revelando, ao fim, a atualidade da categoria jurídica “sujeito coletivo de direito” após os seus trinta anos de concepção.

Nessa observação, extraída do texto de Clarissa Machado e Renata Vieira, coloca-se uma necessária ordem de indagações ao Autor, na perspectiva da dupla confiança que a análise precisa carregar: política e epistemológica. Em tempos agônicos, de travessia entre mundos em transição, pelo esgarçamento dos modos de produção da existência e sua incapacidade de suprir dando equivalência as exigências de necessidade e de liberdade; de fracasso político para mediar as crises dessa travessia, nas tensões entre democracia e exceção; na disputa pelo futuro, nas condições pós-pandemia; o que significa fazer tese nesse contexto e que pode fazer o social organizado, a partir dos sujeitos coletivos de direito inscritos nos Movimentos Sociais?

Se nos Movimentos Sociais as identidades são móveis, variam segundo a conjuntura, como diz o Autor, na travessia corrente pode-se falar em regresso ou em avanço? Os Movimentos Sociais e os Sujeitos neles inscritos, estão se desmantelando em derrotas ou se reorganizam para reorientar seus projetos e suas formas de luta?

Para Clarissa Machado e Renata Vieira, aliás, minhas orientandas, que pensam como eu penso, como está assentado em nossas discussões e em trabalhos co-autorais, apesar da conjuntura política, social e econômica vivenciadas, com uma escalada de retrocesso de direitos e uma ameaça à integridade constitucional-democrática, o “campo prático-conceitual sustentado por José Geraldo de Sousa Junior, que vê nas formas de mobilização e organizações populares, especialmente quando organizadas em movimentos sociais, a emergência de atores e contradições sociais capazes de criar direitos nas suas dinâmicas de afirmação de necessidades não satisfeitas, ao relembrar historicamente das lutas e conquistas que os sujeitos coletivos de direitos construíram ao longo da história, principalmente no período de redemocratização do país, após analisar os avanços em suas conquistas, chega ao atual momento de crise, no qual observa-se a reorganização desses sujeitos coletivos”.

“As pessoas”, e eu acrescento, assim como os seus movimentos, como diz John Steinbeck, Prêmio Nobel de Literatura (A Rua das Ilusões Perdidas, tradução brasileira do original norte-americano Cannery Row. Rio de Janeiro: BestBolso, 2019, ninguém pode prever como saem das crises: “É que existem duas reações possíveis ao ostracismo social: ou um homem emerge determinado a ser melhor, mais puro e generoso ou desanda para o mal, desafia o mundo e faz coisas ainda piores”.

A segunda, afirma Steinbeck, “é a reação mais comum ao estigma social”, tão nitidamente identificada na conduta daqueles que deveriam encarnar a retidão de proto-homens, uma vez erigidos à condição de governança mas que indisfarçadamente regridem da posição de guias da comunidade.

Na primeira, os sujeitos coletivos inscritos em movimentos sociais que se recompõem em face da crise. Que se reorganizam. Uma reorganização não porque estavam desorganizados, mas porque se reinventam nas formas de protestos, unificam pautas e sujeitos, demonstrando a clareza da consciência do que estão enfrentando, focados na resistência, mas construindo, para o futuro (com as reservas utópicas de emancipação), orientadas por um conhecimento que traduza as possibilidades plurais que provenham, diz Boaventura de Sousa Santos, das “práticas políticas que estão nas ruas, nas lutas e que contribuam decisivamente para a construção de um mundo melhor” (Na Oficina do Sociólogo Artesão: aulas 2011-2016. Seleção, revisão e dição Maria Paula Menezes, Carolina Peixoto. São Paulo: Cortez, 2018), até consumar-se como “legítima organização social da liberdade” (LYRA FILHO).

Por fim, vencidas as questões que proponho, entendo com o Autor, ser possível sim afirmar que o Quilombo Aroeira é, uma expressão de realização daqueles fundamentos que configuram o estatuto político-epistemológico de O Direito Achado na Rua. É um trabalho que adensa a crítica teórica para armar a ação jurídica transformadora, criando condições para protagonismos emancipatórios de sujeitos até então invisibilizados, vulnerabilizados.

É o que mostra Karla Araújo de Andrade Leite. Os Ventos que Sopram na Serra do Inácio – Piauí: quando os invisíveis têm direitos?. Dissertação de Mestrado. Teresina/Universidade Estadual do Piauí – UESPI/PPGSC, Campus Poeta Torquato Neto, 2024

Quando os invisíveis têm direitos? Ela pergunta. E afirma: “A resposta será levantada todas as vezes que a Defensoria Pública se deparar com um grupo social marginalizado pelas forças colonialistas. É preciso estar atento aos fatos, aos valores simbólicos do grupo social, e não negociar direitos alheios sob nenhuma hipótese. É preciso permitir que cada sujeito esteja ativo em seu próprio destino, decidindo conscientemente e livremente sobre se e quando poderá ceder a negociações, em termos dialogados, e não impostos. É preciso ter a natureza confiada pela Constituição Federal de 1988, uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados. É preciso, desta maneira, assumir a postura contracolonialista desejada pelo constituinte”(https://estadodedireito.com.br/os-ventos-que-sopram-na-serra-do-inacio-piaui-quando-os-invisiveis-tem-direitos/).

Obras e autores e autoras que com intencionalidade revelam escolhas teóricas e políticas bem definidas. Sim, pois há sempre uma aproximação que não necessariamente carrega uma mesma intencionalidade, mas que, talvez por isso, corrobore a consistência dessas escolhas bem definidas. Em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013 • 3 Commenti (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/), notável jurista (e político recém-falecido) Stefano Rodotà, nos fala sobre “a necessidade inegável de direitos e de direito manifesta-se em todo o lado, desafia todas as formas de repressão e inerva a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pela sua dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.

Para ele, um autor insuspeito dadas as suas referências de origem, políticas e teóricas, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.

Mas, realmente, numa aferição que me surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual instalamos toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

 

O Direito Achado na Rua e a eleição para Reitora da UnB

 

                Então! Li atentamente o texto do professor Rodrigo de Faria em que, nalguma medida, faz um ataque ao Direito Achado na Rua. Li também atentamente o texto do professor José Geraldo de Sousa Junior (“causador” da ágora pós-eleitoral na UnB). Destas mensagens balizadoras (ou preparatórias), passo à minha modesta opinião, que se faz, com a devida vênia, uma retratação ao Direito Achado na Rua, seu Coletivo de Pesquisadoras/res, assim também um de seus mentores, o próprio Zé Geraldo.

 

                Confesso que me assustei com a escolha da premissa pelo professor Rodrigo de que o seu colega de trabalho e sonhos, José Geraldo, estaria a “deslegitimar” o voto e a participação de certos eleitores/segmentos a partir do que consta exatamente como último parágrafo no texto do Zé no jornal “Brasil Popular”. Resumo com suas próprias palavras na mensagem que me enviou enquanto debatíamos outras necessidades no mundo (e foi como tive acesso ao texto, em PDF e assinado, de Rodrigo de Faria). Disse-me o Zé: “Aproveito para compartilhar um texto curioso produzido no calor da campanha, ingênuo, equivocado e injusto”… complemento: “imprudente”!

 

                Acusas o professor ofendido o José Geraldo de algo que ele mesmo cometeu como contra-argumentação: deslegitimar o seu oponente temporário.

 

                Fazendo, com o reiterado respeito, uso das palavras do próprio Rodrigo, “lamentavelmente o que essa deslegitimação construída com vocabulário erudito” pretendeu foi: i) desabafar diante da discordância de ter visto – talvez um “ídolo” seu da Academia – o Zé Geraldo apoiando uma chapa que não fosse a sua; ii) extravasar o estresse que é muito comum em engajamentos de uma determinada campanha política (e para isso, escolher um “alvo”, normalmente, alguém com chancela e potência no enlace da disputa); e/ou iii) chamar a atenção (isto é, buscar holofotes) para a continuação da campanha, ainda que fazendo uso de métodos estranhos ao que se esperaria de um (ex-) aliado. Em todo caso, não passa de um esforço retórico para, aí sim, tentar deslegitimar o debatedor que houvera proposto outra premissa.

 

                Mas é fundamental que analisemos o conteúdo dos dois textos (ex)postos ao público. No primeiro[1], do Zé Geraldo, o que vemos é uma longa narrativa acerca do legado da UnB por suas interfaces de participação (construção e resistência histórica) democrática. Isto é, uma Instituição que foi se aprimorando na moldura da convocação de sua comunidade e de toda a sociedade quanto ao exercício democrático. Contudo, o texto também denota o risco de que, nos tempos de hoje, onde ainda cheiramos o chorume do fascismo, as pessoas (legitimados do processo eleitoral e do processo de significação da Universidade), ou não queiram mais participar, ou participem de forma enviesada. Sim, ou estão desacreditados do processo político nas várias esferas, ou acreditam, mas a partir de fábulas e falácias que forjam uma pós-verdade à Instituição e sua gente.

 

                O texto do professor Zé Geraldo pontua as gigantes características das concorrentes, especialmente no louvor a que, nesta disputa, por sorte da democracia, integralmente se tratam de candidatas, avocando para a história o lugar que sempre deveria ter sido de legitimidade política das mulheres. Óbvio, “puxa a sardinha” um pouco mais para a sua candidata, a professora Olgamir Amancia Ferreira, mas isso é do jogo democrático: se se tem um lado no processo e se se tem o espaço de fala, uma “boca de urna” é sempre bem-vinda! Claro, no respeito ao tabuleiro limpo para uma justa partida do xadrez eleitoral.

 

                Imprudente ou maquiavelicamente, o professor Rodrigo pegou a última sentença do último parágrafo para tentar desacreditar o texto de seu adversário pró-tempore. Entretanto, comete duas potentes incoerências. A primeira é que “entende mal” a colocação do professor José Geraldo que não estava a prover uma crítica negativa aos servidores técnico-administrativos, contudo, a realizar uma constatação e que, por si mesma, não é ilegítima: de que estes levam às candidatas (e, veja, não é apenas para uma candidata, mas todas) as suas “pautas e suas expectativas”, que podem ou não ser classistas ou de qualquer outro interesse legítimo. A segunda é que não há uma honestidade intelectual em trazer, pelo menos deste último parágrafo do texto do Zé Geraldo, o restante de suas mobilizações e inquietações ao segundo tempo do “jogo”, isto é, para a continuação do pleito eleitoral. A este respeito, leiamos todo o parágrafo do artigo do emérito da UnB para tirarmos todas as nossas conclusões e mais algumas – honestas:

 

                “Convicto da legitimidade do processo o que estou pondo em causa, à luz do fecho do primeiro turno, é que se abra uma perspectiva avaliativa sobre as exigências pedagógicas para superar essa distância de participação e de engajamento, no intento de buscar formas pedagógicas para maior intensificação desse processo, no geral, e pensando também o segundo turno, ainda num período de alto esvaziamento da universidade pelas circunstâncias de diferentes posicionamentos no movimento de greve, com alunos e professores entre os que já encerraram as suas atividades acadêmicas e um segmento presente na sua totalidade, os servidores, muito determinados em inserir suas pautas e suas expectativas corporativas na agenda de compromissos das candidaturas. Mais que nunca o debate se faz necessário e é importante proporcionar as condições para que ele seja promovido.”

 

                Quanto ao texto do professor Rodrigo[2]. Magistral quanto ao acervo e aos sofismas, entretanto, dúbio quanto ao escopo. Enaltece a grandeza da corrente epistemológica do “Direito Achado na Rua”, contudo, personifica em apenas uma pessoa (embora seja o líder maior da corrente) todo um Coletivo de sujeitos elaboradores/as das postulações teóricas desta ciência social. Isto é, confunde o Direito Achado na Rua com o próprio professor José Geraldo (uma espécie de metonímia cínica). Reiteramos: embora o Zé Geraldo seja seu maior formulador, não se pode deslegitimar o Direito Achado na Rua por uma suspeita de – quem sabe – existir algum dia uma incongruência do professor. Dizer, logo no título do comunicado à comunidade universitária e em outras instâncias do texto que esta corrente é o “Direito ‘Perdido’ na Rua” é fazer um deselegante e injusto trocadilho. Destarte, aparenta má-fé, ou proximidades aos métodos sujos visto na atual política, especialmente da extrema-direita, que dissimula o conteúdo e as regras.

 

                Há no texto do Rodrigo um manancial de elogios, tanto ao professor José Geraldo, quanto à sua história e também ao Direito Achado na Rua. Há uma certa nostalgia, além de uma implícita poesia destas três dimensões quanto ao que o Rodrigo afirma ser um tempo de “(re)construção” da UnB, uma universidade pulsante, vibrante que passou por uma transição tempos atrás e teve no Zé Geraldo e outros atores de ideal um divisor de águas. Entretanto, embora reconheça tudo isso, o “calor” da atual eleição (consulta) para Reitora mexeu tanto com os nervos do professor Rodrigo que ele prefere apagar toda esta riqueza para, de alguma forma, difamar (se preferimos um eufemismo: deslegitimar) o seu colega, José Geraldo.

 

                Em tempos em que as polarizações são burras; tempos “à flor da pele”, o debate não parte apenas de premissas erradas, todavia, de desentendimento (enviesamento) das premissas e das verdades que exigem a pura democracia.

 

                Para dar um melhor lugar a esta resposta ao professor Rodrigo e a todos que desejem com ele concordar (sem uma justa e honesta interpretação do texto do Zé Geraldo), deixo claro que o Direito Achado na Rua defende exatamente o que um de seus mentores quis dizer naquele texto. Ao dissertar, entre outras premissas, o seguinte: “considerei que, ao avizinhar-se uma nova troca de pele, com  a UnB entrando“em processo de consulta para a escolha de um novo reitor. Será uma reitora. Três mulheres, nutridas pelo ethos do generoso projeto que formou a UnB. Todas leais aos seus princípios, numa garantia de que não haverá traição à concepção dessa bela utopia acadêmica. Saudável exercício democrático-universitário que se fixará nas distinções sutis das propostas, a qualificação das associações que as pretendam realizar, a correspondência entre discursos, experiências e práticas”, está a guardar os pressupostos da corrente teórica que ajudou a criar e catapultar para o Brasil e para o mundo. E elucidamos mais, o Coletivo do Direito Achado na Rua defende como princípios de uma nova sociedade, a emancipação dos sujeitos, neste particular, daqueles que historicamente foram oprimidos, espoliados e/ou vulnerabilizados, a decolonização das estruturas e das instituições, os direitos humanos, a justiça de transição e a democracia. São pilares inegociáveis para o Coletivo e estão implícitos (quando não, explícitos) no texto do Zé Geraldo a tratar de UnB e Eleição para Reitora.

 

                Na síntese: embora extremamente injusto tenha sido o professor Rodrigo diante das suas palavras ao professor José Geraldo (e ao lado por este escolhido na Consulta da UnB), ainda que pareça incoerência, ficarei com ele mesmo escreveu no último parágrafo de seu destrato: “Esse sim é o ‘Direito Achado na Rua’ que continuarei acreditando. É preciso enfrentar politicamente essa estratégia político-eleitoral caracterizada pelo binômio deslegitimação/difamação (…)”. E o restante do parágrafo, assim como as crenças e manifestações do professor, é de foro íntimo. Prefiro – no que ele se irrompe no texto – não concordar!

 

Marconi Moura de Lima Burum

Aluno da pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH/CEAM/UnB) e Pesquisador do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua



[1]      Para confirmação do conteúdo, segue o link do texto do professor José Geraldo: A UnB e a Escolha de Novo(a) Reitor (a): Um processo com a participação da comunidade acadêmica - Brasil Popular.

[2]      Infelizmente não consegui encontrá-lo publicado na internet. Deve existir algum blog ou página outra que o tenha difundido. Terão de buscar em grupos de Whastsapp da UnB – que, por certo, está cumprindo seu papel de viralizar, mesmo prejudicando o contraditório por falta de uma ágora equitativa ao debate.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

 

A UnB e a Escolha de Novo(a) Reitor (a): Um processo com a participação da comunidade acadêmica

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

Facebook
Twitter
WhatsApp

Encerrou-se na madrugada deste dia 23 (por volta das 5h18, conforme Correio Braziliense), o processo de apuração da consulta para a escolha de Reitor, no caso Reitora, já que as candidaturas são todas femininas, da UnB.

Em comunicado na sua página institucional, a ADUnB, sindicato dos decentes – a Consulta é um processo comunitário não oficial coma participação dos segmentos docente, técnico-administrativo e discente, organizados em suas entidades que formam uma Comissão de Organização da Consulta/COC que oferece ao Colégio Eleitoral formado pelos Conselhos Superiores a sua indicação para a indicação formal ao Presidente da República.

Pois bem, na página da ADUnB – https://adunb.org/conteudo/2983/encerrada-a-apuracao-consulta-para-reitoria-da-unb-vai-para-segundo-turno – está o comunicado, de que “Após a votação de discentes, docentes e técnico-administrativos para consulta de Reitora e Vice-Reitor da Universidade de Brasília (UnB) para a gestão 2024-2028, os dias 22 e 23 de agosto foram marcados pela apuração destes votos. O resultado deste primeiro turno trouxe a Chapa 93 – Imagine UnB, composta pelos candidatos Rozana Reigota Naves e Márcio Muniz de Farias e a Chapa 90 – Pensar e fazer UnB, com os candidatos Olgamir Amancia Ferreira e Vice-Reitor Gustavo Adolfo Sierra Romero como vencedores. Sendo assim, o segundo turno acontece nos dias 3 e 4 de setembro. A apuração dos votos, que iniciou na manhã desta quinta-feira (22/8), no Centro Cultural da ADUnB-S.Sind, chegou ao fim na madrugada de sexta (23/8), com a proclamação do resultado final”.

O exame dos documentos da apuração detalham o resultado.

O Quadro 1 registra o mapa de apuração por segmento
No Quadro 2 pode ser observado o mapa de apuração

Os dois Quadros, por segmento em valores absolutos e por segmento em valores ponderados, revelam uma assimetria interpelante. A diferença entre o número de votantes da comunidade universitária na Consulta e os números exponenciais dessa comunidade, em tese apta a votar, a partir dos registros do sistema oficial da Universidade.

Não encontrei entre os documentos da COC um quadro de resumos da formação do Colégio. Mas fui aos assentos oficiais da UnB para identificar a grandeza desses dados. Desse modo, anotei no Anuário 2023, o último disponível na Página da UnB, utilizando fontes que incluem o Censo da Educação Superior 2022 -https://anuario2023.netlify.app/grad.html#alunos-regulares-registrados-nos-cursos-de-gradua%C3%A7%C3%A3o-por-unidade-acad%C3%AAmica-e-sexo-unb-2022, elementos que revelam essa grandeza (Fonte DGP): Total de docentes ativos da UnB por grau de titulação, 2022, docentes 2.613; número de técnico-administrativos do quadro,  2022, 2.742; número de alunos regulares nos cursos de pós-graduação UnB, 2022 (2º semestre (2021), 11.020; alunos regulares registrados nos cursos de graduação 2022,  40.047 (Fonte: Censo da Educação Superior 2022).

A comparação entre esses números, tomados os dados do potencial habilitável para participar da Consulta e aquele que efetivamente, compareceu, abre múltiplas possibilidades de indagação acerca do alcance da participação da comunidade acadêmica para realizar esse fundamento democrático no processo de escolha.

Processo que defendo e do qual já me vali, tendo sido indicado pela Comunidade, em Consulta obediente ao mesmo método e que se constituiu um fator preponderante para mobilizar a decisão do Colégio Eleitoral Especial formado pelos Conselhos Superiores.

De resto, já fiz a defesa pública desse procedimento. Aqui mesmo neste espaço do Jornal Brasil Ppular, em minha Coluna O Direito Achado na Rua, publiquei artigo no qual repercuti um debate numa comunidade virtual de ex-reitores e reitoras – https://brasilpopular.com/intervencoes-nas-universidades-autonomia-e-nomeacao-de-reitores/, anotando algumas dessas razões.

Com efeito, sustentei que já na“redemocratização, em 1985, nos estertores da intervenção que impôs a UnB um agente militar do sistema de segurança nacional como Reitor, presente na Instituição por mais de 20 anos, o governo militar ainda insinuou na transição um reitor civil e acadêmico. A comunidade que sempre resistira em atos pelo fim da intervenção, rebelou-se, mas não aceitou a alternativa do ministério da Nova República, de responder à greve provocada pela recusa de nomeação de um Reitor eleito pela Comunidade (Cristovam Buarque), com a exoneração do nomeado. Não aceitou o risco de boa-fé de afastar uma nomeação ilegítima, para abrir um precedente de afastamentos de má-fé que pudesse ser produzido para afastar uma nomeação legítima. Conduziu a greve até a renúncia do nomeado, além de tudo um professor respeitado e digno”.

Daí, afirmei,  ter ficado “satisfeito com uma postagem em grupo de reitores e ex-reitores de colega que menciona situação atual em sua universidade, vivenciando condição equivalente, e ele diz: “aqui, na (…), estamos pensando em uma alternativa interna para reparar o golpe na nossa democracia de forma legal e moral, o que exigirá a concordância da comunidade acadêmica e, consequentemente, a aprovação no Conselho Universitário”… É nossa convicção que a explicitação de procedimentos e a garantia da participação da comunidade acadêmica na gestão das instituições de educação superior virá a contribuir, efetivamente, para o seu melhor funcionamento, para uma gestão mais eficiente e para a concretização de seus compromissos com a melhoria da qualidade e o cumprimento de sua função social”.

Também cheguei a presidir por duas vezes Comissões Organizadoras de Consulta (sucessão do Reitor Cristovam; re-eleição do Reitor Lauro Mohry), a primeira, com votação em cédula (não havia sistema eletrônico) e a segunda, ao que sei, todas as demais até agora, em votação eletrônica.

É óbvio que a escolha obedece a intencionalidades e serve a produzir consequências. Na primeira, numa universidade ainda unicampus, pré-expansão do REUNI, muito menos complexa quanto às expectativas de gestão e de consecução de projetos de vida e de universidade. Nas sequência, por muitas razões, incluindo a necessidade de mais debate e de mais qualificado aprofundamento da Consulta para tornar mais consciente e republicano a apresentação dos planos, conceitos, alianças, compromissos e percursos.

Mencionei isso em artigo que publiquei no Correio Braziliense às vésperas do primeiro turno (https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2024/08/6922511-darcy-ribeiro-a-unb-e-suas-peles.html), valendo-me da metáfora das peles de Darcy, para acentuar as características e as exigências de um modo universitário, que é por definição pedagógico, não só em sentido epistemológico, mas também no seu sentido político.

Assentei que “assim como Darcy, também a UnB vai trocando suas peles, porém sempre renascendo em seus novos revestimentos. É a universidade tridimensional, conforme a pele interdisciplinar que lhe vestiu Cristovam Buarque; é a pele da inquietação, para abrir-se aos desafios da redemocratização, propostos pelo reitor Antonio Ibañez; é armadura da inclusão e dos direitos humanos, numa universidade alavancada pela demanda técnica de inovação e de responsabilidade social, até atingir os indicadores internacionais de excelência que foram alcançados na gestão da reitora Márcia Abrahão Moura”.

E considerei que, ao avizinhar-se uma nova troca de pele, com  a UnB entrando“em processo de consulta para a escolha de um novo reitor. Será uma reitora. Três mulheres, nutridas pelo ethos do generoso projeto que formou a UnB. Todas leais aos seus princípios, numa garantia de que não haverá traição à concepção dessa bela utopia acadêmica. Saudável exercício democrático-universitário que se fixará nas distinções sutis das propostas, a qualificação das associações que as pretendam realizar, a correspondência entre discursos, experiências e práticas. Separado o joio do trigo, agora o cuidado é separar o joio do joio e o trigo do trigo”. Tanto que a“Universidade de Brasília (é destinada), sobretudo, a assessorar tecnicamente o governo brasileiro e tem por objetivos a formação científica de alto nível e o estudo dos problemas nacionais, no propósito de contribuir para a formação de soluções compatíveis com a realidade do país, (…) (de modo) que essa universidade (se constitua) em núcleo de uma autêntica elite intelectual empenhada no estudo e na solução dos múltiplos problemas nacionais no campo da cultura”.

Para esse debate, para essas distinções sutis, entre joio e joio e entre trigo e trigo, é que deve voltar-se a nossa maior preocupação.  Em que pese toda o discernimento da COC, refiro-me por exemplo, ao incidente de questionamento da urna da Faculdade de Direito, verificada uma inconsistência por erro inclusive da Comissão Eleitoral (os mesários constataram o ocorrido em ata: que os votos dos estudantes foram feitos em cédula de professores e depositada na urna dos discentes (urna correta), pela a falta de cédulas dos estudantes), a COC, mesmo com encaminhamento de anulação da urna, a validaram, por unanimidade, ao entendimento democrático-constitucional de que prevalece sobre qualquer circunstância que não seja fraudadora, o direito de voto, da intenção civil-democrática do eleitor, um dos fundamentos da cidadania.

Convicto da legitimidade do processo o que estou pondo em causa, à luz do fecho do primeiro turno, é que se abra uma perspectiva avaliativa sobre as exigências pedagógicas para superar essa distância de participação e de engajamento, no intento de buscar formas pedagógicas para maior intensificação desse processo, no geral, e pensando também o segundo turno, ainda num período de alto esvaziamento da universidade pelas circunstâncias de diferentes posicionamentos no movimento de greve, com alunos e professores entre os que já encerraram as suas atividades acadêmicas e um segmento presente na sua totalidade, os servidores, muito determinados em inserir suas pautas e suas expectativas corporativas na agenda de compromissos das candidaturas. Mais que nunca o debate se faz necessário e é importante proporcionar as condições para que ele seja promovido.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)