Ética e Justiça Social
Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Realizou-se em Brasília, nos dias 14 e 15 de maio, numa promoção da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, o XXIV Seminário Ética na Gestão. Tema: Ética e Diversidade no Serviço Público.
Com um temário instigante e convidados reconhecidos nos respectivos temas de atuação ou estudos – Ética no serviço público como ferramenta de justiça social, Ética Pública e a condição da mulher na sociedade, Instâncias Ética Disciplinar e Ouvidoria: papéis, interações e limites de atuação – o seminário organizou também, além das palestras, oficinas técnicas para que as comissões de ética setoriais do sistema público federal pudesse apresentar suas atuações e compartilhar experiências animadas pelas sugestões dos temas e seus expositores.
A convite doPresidente Manoel Caetano Ferreira Filho e de seus pares na Comissão de Ética Pública, proferi a palestra magna de abertura desse importante evento, com o tema que dá título a este artigo: Ética e Justiça Social.
Comecei lembrando que passados 14 anos, quando em setembro de 2010 se instalou o XI Seminário Internacional Ética na Gestão, então com o tema Ética, Direito e Democracia. Naquela oportunidade, a convite do Presidente da Comissão de Ética Pública, o Ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, participei do painel Ética e Direitos Humanos, um tema que conduz e tece o fio condutor da função ética que legitima a democracia.
Com efeito, naquela altura, conforme está nos anais (Presidência da República/Comissão de Ética Pública. Brasília: Esaf, 2010, p.22-29), conclui minha apresentação pondo em relevo a importância do seminário por ter proporcionado como mediação entre ética e direito, a democracia, porque a democracia é, exatamente, a expressão do processo a partir do qual nos tornamos continuamente humanos, forjando institucionalidades aptas a reconhecer novas subjetividades emancipatórias.
Os direitos humanos, com efeito, a partir das lutas sociais que os reconhecem, conferem, pela mediação democrática a ética pública de legitimação das sociabilidades instituintes, não porque sejam quantificados, colecionados num elenco burocrático de um almoxarifado legislativo, mas porque expressam relações interativas, relacionais, de um humano que se expande. É o que diz a Constituição brasileira, no salto entre o censitário que há 200 anos inscreveu a cidadania na renda e pelo patrimonialismo, pelo patriarcalismo e exclusão, alienou o humano do trabalhador, da mulher e dos indígenas, gerando o empreendimento capitalista-colonial, para se fazer cidadã (1988), devolvendo ao social emancipado a subjetividade ativa participativa que abre a pauta dos direitos ao processo democrático, para além do elenco positivado, de modo a incluir todos os direitos que derivem da natureza democrática do regime e da consideração aos direitos humanos(art. 5º, parágrafos).
Recupero o enunciado final de minha exposição, durante o XI Seminário:
Participei há quinze dias, de dois eventos, coicidentemente simultâneos que se deram em lugares distintos: um a convite da Ouvidoria do Servidor Público do Ministério do Planejamento e outro a convite do Tribunal Superior do Trabalho em relação a OIT. Nos dois eventos, uma discussão comum: o trabalho decente. No primeiro caso, no que diia respeito ao Ministério do Planejamento, para reivindicar que nas relações de trabalho nos déssemos conta de que a emancipação dos sujeitos, as formas de dignidade do trabalho, inserem problemas que precisam ser considerados na interferência ética da análise dos processos, mesmo sabendo dos limites da atuação das comissões de ética, cujo efeito mais operante é a censura, a nota de desabono, e que vivem o drama cotidiano de realidades não perceptíveis porque disfarçadas em princípio de legalidade ou de autoridade. Em meio a isso, o abuso da autoridade e o assédio moral difuso. A outra questão foi a que se vivenciou no TST sobre o mesmo tema. Partindo do pressuposto de que o trabalho decente é entendido como aquele adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, seja capaz de garantir uma vida digna. E, portanto, insere com uma leitura necessária o fato de que a percepção do que é decente é um paradigma que é preciso inferir a partir das mediações éticas construídas por meio das relações de trabalho. Uma realidade que ainda hoje interpela a justiça do trabalho, que resiste em salvaguardar o núcleo irredutível da dignidade inscrita nos direitos humanos, em face de uma hostilidade neoliberalizante do próprio sistema de justiça, do piso ao teto.
Na minha conclusão, cuidei de realçar que a agenda nacional e internacional de discussão sobre o trabalho decente, está convencionada em vários de seus fundamentos pelo enunciado cogentes dos direitos humanos, enquanto vão emergindo num cotidiano enriquecido pela leitura significativa do que são relações de dignidade, de difícil discernimento porque localizadas em clivagens problemáticas do legal e do ilegal, da moralidade e da ética.
Entretanto, para os objetivos da exposição inaugural, voltei ao tema da Ética e dos Direitos Humanos, para acentuar que o tema dos direitos humanos deve ser referido à práticas sociais emancipatórias, nas quais as transgressões concretas são sempre, produto de uma negociação e de um juízo político, uma busca de reciprocidade que seja critério geral de uma política democrática emancipatória, enquanto a forma e os meios de negociação deverão ser privilegiadamente os direitos humanos enquanto expressão avançada de lutas pela reciprocidade, na qual tenham lugar legítimo de reivindicação os diversos, os diferentes, os subalternos, que abrem horizontes para reconhecimento, para superar e vencer os obstáculos de inserção, obstáculos inclusive legais,historicamente marcados para a interdição de segmentos diversos e por profundas desigualdades sociais.
Note-se que Roberto Lyra Filho, na medida em que formulou a sua concepção de Direito, na abordagem de sua dialética social – “aquilo que ele é, enquanto vai sendo, nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta dentro do mundo histórico e social” – também indicou, como critério de avaliação dos produtos jurídicos contrastantes, na competitividade de ordenamentos, os direitos humanos.
E, nesse aspecto, resgatei meu velho mestre Roberto Lyra Filho, quando fala em direitos humanos enquanto síntese jurídica. Para ele, o processo social, a História, é um processo de libertação constante e dentro deste processo histórico, o aspecto jurídico representa a articulação dos princípios básicos da Justiça Social atualizada, segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem. Nesta perspectiva diz Roberto Lyra Filho:
Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade, em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas. À injustiça, que um sistema institua e procure garantir, opõe-se o desmentido da Justiça Social conscientizada; às normas, em que aquele sistema verta os interesses de classes e grupos dominadores, opõem-se outras normas e instituições jurídicas, oriundas de classes e grupos dominados, e também vigem, e se propagam, e tentam substituir os padrões dominantes de convivência, impostos pelo controle social ilegítimo; isto é, tentam generalizar-se, rompendo os diques da opressão estrutural. As duas elaborações entrecruzam-se, atritam-se, acomodam-se momentaneamente e afinal chegam a novos momentos de ruptura, integrando e movimentando a dialética do Direito. Uma ordenação se nega para que outra a substitua no itinerário libertador. O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda.
Vê-se, logo, nesta ordem de consideração, que a reposição do tema dos direitos humanos referidos ao contexto de práticas sociais emancipatórias, traz, por sua vez, o problema da inafastável e incindível base ética de toda normatividade, não obstante a pretensão cientificista de separação entre Ética e Direito, conveniente a uma conjuntura de localização e de isolamento do poder político numa determinada instituição – o Estado e de fetichização de seu instrumento privilegiado de intervenção – o direito positivo estatal.
Logo, numa recuperação histórica, filosófica e sociológica de uma experiência então ainda irredutível ao arbitrário da separação entre Estado e Sociedade, entre Público e Privado, o que se poderia configurar como caracterização do campo ético, designava, perfeitamente, a identidade concreta entre eticidade e moralidade e direito, valendo-me de importantes leituras que indico no contexto de minha apresentação.
Por isso a ética na política e na gestão não são uma expressão apenas da expectativa individualizada das condutas mas uma exigência do sistema de gestão, senão nos procedimentos, ao menos no modo de discernir, mesmo que em colóquios ou seminários, ou em iniciativas de ofício que nos ajudem a alargar a perspectiva de compreensão dos processos administrativos, na sua forma racional de realizar a promessa constitucional de radicalização da democracia, da justiça social e da própria Constituição.
A gestão não pode ser um matadouro da democracia e da justiça social, esvaziando essas promessas. Não pode se restringir em avaliar a bondade dos agentes, tem que se estruturar como mediadora de transformação da realidade, numa ação simultaneamente realista e utópica de emancipação do humano.
Nessa perspectiva, finalizei minha circunstanciada exposição com uma alegoria a Brecht (BRECHT, Bertolt. A Santa Joana dos Matadouros. Tradução de Roberto Schwarz. São Paulo: Cosac Naify, 2009), com a voz de Joana:
Mas aprendi e sei uma coisa que não quero levar comigo
Agora que estou morrendo:
Que conversa é essa de que vocês têm algo de interior
Que não sai para fora? Vocês sabem O QUÊ, só o que sabem
Não tem consequência?
Eu por exemplo não fiz nada.
Pois nada seja dito bom, por muito que impressione, salvo
O que ajuda de fato, e nada seja estimável salvo
O que transforma para sempre este mundo, que está precisado.
Eu fui providencial para os opressores!
Ah, bondade sem efeito! Intenções impalpáveis!
Eu não transformei nada.
Deixando infrutífera e rapidamente a cena
Eu lhes digo:
Atenção para que vocês ao deixarem o mundo
Não apenas tenham sido bons como estejam
Deixando um mundo melhor!
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
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