Anistia Coletiva: efetivação da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil
- 13/04/2024
- 7:49 pm
- 13/04/2024
- 7:49 pm
Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Facebook Twitter WhatsAppCertas circunstâncias que as tensões da conjuntura tornaram candentes, acabaram trazendo muita vivacidade para os eventos ligados aos 60 anos do Golpe Civil-Militar de 1964. Mostrei a repercussão dessas tensões em artigo da Coluna O Direito Achado na Rua, aqui no Jornal Brasil Popular, 60 anos do Golpe de 1964: Memória, Verdade mas também Justiça. Razões para o Nunca Mais(https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/).
Talvez por isso, e pelas razões que indico no meu artigo ligadas ao modo como repercutiu uma manifestação ou diretriz do Presidente Lula sobre a questão, mas também pelo simbólico (60 anos) da comemoração (no sentido de rememorar, não de celebrar), nunca o tema da memória, da verdade e da justiça foram tão postos em debate.
E continua. Agora mesmo, no dia 25 de abril, faço a conferência inaugural – Direitos Humanos na Ditadura – em simpósio organizado na Universidade de Brasília (CEAM e Departamento de História), sob o tema interpelante: Há 60 Anos – Um Golpe! Laceração da Democracia & Ditadura no Brasil.
Laceração diz bem sobre as inquietações que nos convocam e nos posicionamentos que nos mobilizam. Voltando ao meu texto no Jornal Brasil Popular, cuidei desses fundamentos e interpelações ao co-organizar o livro O direito achado na rua: introdução crítica à Justiça de Transição na América Latina, que pode ser conferido em https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf.E não posso deixar de considerá-los em face da grande mobilização, tanto de ativistas quanto de personalidades, no transcurso dos dramáticos acontecimentos que atentaram contra a Constituição, as instituições e a democracia brasileiras.
Coloquei em relevo os quatro pilares da Justiça de Transição – direito à memória e à verdade; reparação; responsabilização penal; e reforma das instituições democráticas e de segurança. Para, à luz desses elementos, salientar o que não se pode perder de vista é que a Justiça Transicional admite, sim, reconciliação, mas implica necessariamente não só processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre os delitos, conceder reparações, materiais e simbólicas às vítimas, mas também reformar e ressignificar as instituições responsáveis pelos abusos e educar para a democracia, a cidadania, os direitos humanos e para a não repetição desses atentados.
Agora, quero ainda mergulhar nesse verdadeiro punctumdolens a partir do que me pareceu o mais notável registro entre todos os eventos programados desde o 31 de março, ou antes, quando a USP outorgou post mortemdiplomas a estudantes vitimados pela ação cruenta da ditadura, o que se seguirá em 21 de abril, junto com a celebração do aniversário da UnB, medida igual, para repor o projeto de vida de Honestino Guimarães, brutalmente interrompido (https://brasilpopular.com/unb-diploma-honestino-ato-de-reparacao-por-dano-a-projeto-de-vida-2/).
Refiro-me ao ato marcante da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) em conceder, no dia 2 de abril, reconhecimento aos primeiros pedidos de anistia coletiva da história do País, às comunidades indígenas Krenak, do norte de Minas Gerais; e Guyraroká, do Mato Grosso do Sul, que tiveram, assim, a reparação coletiva formalizada e receberam o pedido de desculpas do Estado brasileiro.
Com efeito, em sessão com alto simbolismo, a comissão revisou a negativa dada aos Krenak e Kaiowá no governo anterior e reconheceu as violações de direitos humanos sofridas por eles durante a ditadura militar. Ajoelhada, a presidente do colegiado, Enéa de Stutz e Ameida, minha colega na Faculdade de Direito da UnB, pediu desculpas ao povo Krenak pelas violências cometidas pelos não indígenas nos últimos 524 anos. Logo em seguida, a comissão declarou como anistiada a comunidade Guyraroká, do povo Kaiowá. A liderança da comissão, então, repetiu o gesto com um pedido de desculpas em nome do Estado brasileiro.
Recorro ao voto da relatora do processo da comunidade Guyraroká, a conselheira (primeira conselheira indígena) Maíra Pankararu:
O caso que hoje analisamos carrega consigo um caráter emblemático e simbólico, representando um marco de reconhecimento cultural e histórico das violações perpetradas contra grupos que compartilham identidades afins. Tal reconhecimento não apenas valida as experiências desses grupos marginalizados, mas também serve como fundamento sólido para a adoção de medidas eficazes de não repetição.
Por isso, a decisão de aprovar este voto não se limita apenas ao cumprimento de formalidades legais, mas também constitui um passo significativo em direção à construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, onde as violações do passado são reconhecidas e enfrentadas de maneira responsável e comprometida com a promoção dos direitos humanos e da dignidade de todos os cidadãos.
Como tive a oportunidade de defender em minha dissertação de mestrado apresentada perante a Universidade de Brasília,
A Organização das Nações Unidas (ONU) discutiu a aplicação dos princípios da justiça de transição aos povos indígenas. Em julho de 2013, o Mecanismo de Peritos em Direitos dos Povos Indígenas da Comissão de Direitos Humanos (EMRIP/HCR), em sua sigla em inglês) apresentou um estudo sobre o acesso à justiça na promoção e proteção dos direitos dos povos indígenas. A parte final desse estudo foi dedicada à análise da capacidade dos processos de verdade e reconciliação em promover o acesso dos povos indígenas à justiça. O estudo considera os mecanismos ligados à justiça transicional como possibilidade de garantir o acesso dos povos indígenas à justiça, com relação ao legado das violações de direitos humanos nas sociedades que passaram por conflitos ou regimes repressivos (ONU, A/HRC/EMRIP/2013/2).
Os processos de justiça de transição envolvendo povos indígenas, de acordo com os peritos da ONU, devem ser coerentes com as expectativas desses povos e devem considerar sua visão de como a justiça e a paz serão alcançadas. Suas experiências coletivas de colonização e as causas fundamentais dos conflitos devem ser abordadas e todas as violações de direitos humanos devem ser remediadas, incluindo a perda de sua soberania, de suas terras, territórios e recursos e as violações de tratados, acordos e outros arranjos estabelecidos entre eles e o Estado (ONU, A/HRC/EMRIP/2013/2).
Os Princípios Atualizados para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos através da Ação de Combate à Impunidade (E/CN.4/2005/102/Add.1) e os Princípios Básicos e Diretrizes sobre o Direito à Recurso e Reparação para Vítimas de Violações Graves do Direito Internacional dos Direitos Humanos (Resolução 60/147 da Assembleia Geral) compõem o quadro normativo internacional e operacional para a abordagem da justiça transicional baseada nos direitos humanos da ONU. Esses documentos normativos preveem um sistema de justiça abrangente apoiado no direito à verdade, direito à justiça, direito à reparação e na garantia de não-repetição (ONU, A/HRC/EMRIP/2013/2, p. 19-20).
Há outros enunciados no voto de Maíra. Eles não são novidade para mim que li sua dissertação de mestrado na UnB – “Nossa história não começa em 1988”: o direito dos povos indígenas à luz da justiça de transição. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2023 – e sobre ela escrevi uma recensão (https://estadodedireito.com.br/nossa-historia-nao-comeca-em-1988-o-direito-dos-povos-indigenas-a-luz-da-justica-de-transicao/).
No voto Maíra recupera questões candentes que fazem parte da agenda de debates do Grupo de Pesquisa coordenado por sua Orientadora e que aparecem por exemplo, no livro organizado por Eneá de Stutz e Almeida, a atual presidenta da Comissão de Anistia – http://justicadetransicao.org/a-transicao-brasileira-memoria-verdade-reparacao-e-justica-1979-2021/ (A transição brasileira: memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021), Salvador: Soffia10 Editora, uma publicação do Grupo de Pesquisa Justiça de Transição, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília).
O livro, dizem os organizadores (Eneá de Stutz e Almeida) “atualiza, complementa e sistematiza ideias e conceitos iniciados em textos anteriores. A autora analisa a anistia política implementada a partir de 1979 no Brasil: uma anistia da memória, que não impede a responsabilização dos violadores de direitos humanos. Estuda os mecanismos da justiça de transição brasileira até o ano de 2021, concluindo que o País vive uma justiça de transição reversa”.
Para contribuir para estancar essa reversidade, Maíra agora com assento na Comissão e de sua dissertação, como se fora uma carta de intenções, cujos termos já se podia divisar na Introdução de sua Dissertação porque ali, com linguagem elegante e profundamente encarnada a Autora fixa o seu pressuposto que é fundamentar-se em “políticas de memória, justiça e reparação [que] são necessárias para permitir a transição democrática após regimes ditatoriais, conflitos armados ou outras situações de graves violações de direitos humanos, por permitirem a assimilação do significado dessas violências, a devida responsabilização dos envolvidos, a justa reparação às vítimas e a conscientização ampla acerca do ocorrido, a fim de que não haja nem esquecimento, nem repetição”, porém, na medida em que “identificam e tratam de casos de violência contra os Povos Indígenas”, e que permitam organizar estratégias como justiça de transição, embora conforme ela designe – pág. 18 – “a justiça transicional [que] não se reduz a uma cartilha de mecanismos para tratar de violações sistêmicas dos direitos humanos: é também o reconhecimento de que uma nação está passando por uma mudança monumental ou que precisa fazê-lo. Por isso, para o novo governo, a justiça de transição para os Povos Indígenas deve ser uma prioridade”.
Ela, de fato, considera esse processo necessário ao “momento histórico da política brasileira, descrevendo o processo de aldeamento da política como uma estratégia de sobrevivência dos povos indígenas” (pág, 19), embora constate que “os estudos de justiça de transição são um campo novo e em processo de maturação. A literatura especializada não se dedicou às questões da justiça de transição para os povos indígenas e desconhece a temática dos direitos indígenas. O meu interesse com esse trabalho é contribuir com o debate e avançar na conquista dos direitos transicionais para os povos indígenas” (pág. 17).
É nesse ponto que Maíra define seu tema de estudo. Segundo ela, desenvolvido para responder duas perguntas: “1) como a ausência de implementação dos mecanismos de justiça de transição para os povos originários do Brasil legitima a continuidade de graves violações dos direitos humanos? 2) Quais são os obstáculos para a implementação dos mecanismos da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil?”, a partir das quais formula o “objetivo geral da pesquisa [que] consistiu em avaliar a transição brasileira desde 1988, uma vez que pouco avançou na efetivação de mecanismos de reparação e não-repetição em relação às violências sofridas pelos povos originários durante a ditadura militar, mostrando as insuficiências da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil e criticando o caminho que a reparação brasileira percorreu”.
Questões bem postas e que confrontam a Autora com duas perspectivas. A primeira, originária de sua posição político-epistemológica – ser indígena e querer contribuir de modo teórico para a disputa hermenêutica que o tema comporta. A segunda, circunstancial. Entre a admissão no Mestrado e a conjuntura atual de retomada democrática da governança com um projeto de sociedade emancipatório e descolonizador, com a contenção do autoritarismo de modelo fascista (ao menos na acepção de Umberto Eco que o caracteriza numa perenidade que não se isola no passado factual que conturbou o mundo ocidental na segunda metade do século XX), que promove a exceção e que nega titularidade subjetiva de direitos aos povos indígenas e na exceção realiza verdadeira necropolítica no limite do genocídio, a condição peculiar de que Maíra passa a se investir da qualidade de membro integrante indígena da Comissão Nacional de Anistia.
Há uma questão que a interpela no duplo plano com o qual essas perspectivas se confrontam. Diz a própria Maíra (pág. 17-18): “A anistia brasileira após o fim do regime ditatorial civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985, da forma como foi feita, não deu conta de reparar os povos indígenas Para que isso acontecesse seria necessário ampliar ou mesmo criar nova legislação e novas formas de reparações coletivas. Insuficiente para os povos indígenas, a justiça de transição gera como consequência violências bastantes claras, a exemplo da tese do marco temporal, que propõe que só sejam reconhecidos os direitos aos territórios que estivessem ocupados na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, desconsiderando as expulsões e os esbulhos praticados contra os povos indígenas, inclusive durante o período da ditadura”.
Ou seja, como ela, diz, não deu conta nem no sentido estrito da anistia propriamente dita, atribuída a uma Comissão especial para conferi-la às situações inscritas no estatuto que a institucionalizou; nem no sentido ampliado de memória, verdade e justiça, que permitiria um alcance expandido de seus enunciados (pág. 15):
O processo de superação dos erros e traumas do passado apenas começou com o trabalho realizado pelas comissões da verdade, mas a reconciliação com o passado não se esgota com os esforços de uma comissão que funciona por um tempo limitado e sob um mandato específico. O dano associado às injustiças históricas continua hoje. Infelizmente, os crimes cometidos contra os povos indígenas nas Américas não pertencem apenas ao passado.
É preciso reconhecer que muitos dos desafios contemporâneos enfrentados pelos povos indígenas estão enraizados em erros do passado e que as injustiças e violências históricas de longa data, inclusive em relação à colonização, à invasão e à apropriação das terras, territórios e recursos dos povos indígenas que permanecem sem solução, constituem uma afronta contínua à nossa dignidade.
No contexto atual, os povos indígenas enfrentam uma série de desafios não apenas para lidar com o legado e a continuidade das violações de seus direitos humanos, mas também para promover o acerto de contas, a busca da verdade, a reparação e a construção de instituições confiáveis recomendadas pelas CVR. Mesmo tendo as CVR reconhecido, em seus relatórios finais, a responsabilidade dos Estados pelos crimes cometidos e tendo afirmado o direito à memória, verdade, justiça, reparação individual e coletiva e à garantia de não-repetição como parte da reparação integral a que têm direito os povos indígenas, as condições sociais, políticas e econômicas dos povos indígenas não mudaram muito e muitos povos continuam sendo alvos de violências.
É ao influxo desse entendimento que Maíra vem adensar os fundamentos de seu voto:
Não podemos abordar a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva sem considerar a necessidade de defender de maneira intransigente as terras ancestrais indígenas. Essa resistência, levada a cabo de forma heróica pelos Guarani e Kaiowá, ocorre apesar das condições desumanas que enfrentam.
É imperativo registrar que o Estado brasileiro tem falhado de maneira flagrante na garantia dos direitos dos Guarani e Kaiowá. Desde pelo menos a década de 1940, eles têm sido expulsos de suas terras, relegados a pequenas reservas criadas pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), para permitir a livre distribuição dessas terras a particulares pelo governo federal. Com o golpe de estado de 1964 e a posterior criação da FUNAI em 1967, a situação deles se deteriorou, sendo a agência governamental indigenista, na verdade, um instrumento estatal para favorecer a implementação de projetos agropecuários na região, em detrimento das terras indígenas.
Apesar da promessa da Constituição Cidadã de 1988 de demarcar todas as terras indígenas em cinco anos, conforme previsto pelo artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, isso nunca se concretizou. Pelo contrário, os Guarani e Kaiowá vivenciaram a anulação das demarcações de suas terras, com base na aplicação da esdrúxula tese dos marco temporal, sem que fossem incluídos no processo como parte.
São eles que testemunham suas casas de reza serem queimadas como uma verdadeira epidemia. De janeiro de 2020 a fevereiro de 2024 foram 16, em ataques organizados e criminosos. São eles que veem hnadesys e nhaderus perseguidos e assassinados. A taxa de suicídios entre eles é uma das mais elevadas entre os povos indígenas. Continuamente, são expostos a pesticidas, o agronegócio vem sistematicamente envenenando essas pessoas com agrotóxico.
O processo, instruído cuidadosamente pelo MPF, com base na consulta prévia à comunidade Guyraroká, como manda a Convenção 169 da OIT, deixa claro qual voto deve ser emitido hoje. É crucial ressaltar que isso representa o mínimo que o Estado brasileiro pode fazer.
Maíra, no voto, resgata as treze recomendações formuladas pela Comissão Nacional da Verdade para a efetivação da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil, para assimilá-las às conclusões de seu voto, integralmente aprovadas ao final do julgamento:
- a) que seja declarada a Anistia Política Coletiva do Povo Indígena Guarani e Kaiowá, da comunidade Guyraroká, nos termos do art. 1º, inciso I, da Lei n. 10.559/2002, combinadamente com o art. 16 do Regimento Interno da Comissão de Anistia;
- b) recomendar à Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai/MS):
b.1) assistência médica semanal por EMSI (Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena);
b.2) efetivação de estudo epidemiológico para verificação de agravos à saúde em decorrência de exposição a resíduos de agrotóxicos;
b.3) assistência médica na área de Saúde Mental, especialmente para a redução de agravos derivados de traumas intergeracionais ocasionadas pelo processo de remoção;
b.4) Construção de um posto de saúde com a disponibilização de remédios pelo SUS.
- c) recomendar à União:
c.1) O reconhecimento da área como terra indígena.
- d) recomendar ao Ministério de Minas e Energia (MME):
d.1) o acesso à energia elétrica para todos os moradores da comunidade.
- e) recomendar ao governo do Estado de Mato Grosso do Sul:
e.1) construção de casas populares para todas as famílias, tendo em vista que a maioria vive em barracas de lonas;
e.2) a devida sinalização e construção de lombadas ou instalação de radares na MS – 278, que passa em frente a aldeia;
e.3) instalação de torre de internet, e recomende-se também este item ao Ministério das Comunicações;
e.4) reforma e ampliação da casa de reza, bem como a construção de um barracão social para eventos e reuniões;
e.5) a disponibilização de transporte público até a cidade de Caarapó
- f) recomendar à prefeitura de Caarapó:
f.1) a troca de reservatório de água da comunidade;
f.2) 01 (uma) quadra de esporte para o lazer da comunidade;
f.3) construção de viveiros para o reflorestamento das áreas degradadas, bem como 01 (uma) câmara fria para guardar sementes;
f.4) cascalhamento das estradas principais e vicinais e construção de um ponto de ônibus coberta para os alunos se acomodarem em segurança;
f.5) construção de espaço/barracas às margens da rodovia para a comercialização dos produtos que a comunidade vier a produzir;
f.6) a ampliação da escola e a construção de uma biblioteca com livros de conteúdos referenciados à população indígena.
O voto de Maíra e o julgamento, no contexto de 60 anos passados desde o Golpe, representam bem possibilidades efetivas para um agir, não só na Comissão de Anistia,mas no sistema de governo, para a criação de políticas com o recém criado Ministério dos Povos Indígenas ou para a atuação emponderada do Movimento Indígena para avançar nesse campo. O voto é também um voto de confiança. Eu também sou confiante, na medida de conquistas que vençam o pessimismo da razão com o entusiasmo da vontade.
Mas confesso que me preocupam mais os aliados que os adversários. O juiz Cançado Trindade, por duas vezes Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, exemplar em seus votos de valorização das exigências de reparação para restaurar a dignidade de projetos de vida e projetos sociais, lembrava que o principal obstáculo para integrar os direitos humanos nos sistemas nacionais de direito é o obstáculo do positivismo – o científico e o jurídico – que reduzem o humano na hierarquia da evolução (será o indígena gente como nós?) e o direito ao legal que desconsidera a dimensão antropológica de outras sociabilidades em dinâmica de pluralismo jurídico (aliás, já acolhidas no voto do relator Ministro Fachin no exame da ADPF que discutiu e rejeitou a tese esdrúxula do chamado marco temporal. Com a sua repristinação pelo Senado Federal (embora na iminência de novo rechaço pelo STF), ainda permanece a preocupação: será o direito positivo, legal, capaz de abrir-se a esse reconhecimento?
(*) Por José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
Certas circunstâncias que as tensões da conjuntura tornaram candentes, acabaram trazendo muita vivacidade para os eventos ligados aos 60 anos do Golpe Civil-Militar de 1964. Mostrei a repercussão dessas tensões em artigo da Coluna O Direito Achado na Rua, aqui no Jornal Brasil Popular, 60 anos do Golpe de 1964: Memória, Verdade mas também Justiça. Razões para o Nunca Mais(https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/).
Talvez por isso, e pelas razões que indico no meu artigo ligadas ao modo como repercutiu uma manifestação ou diretriz do Presidente Lula sobre a questão, mas também pelo simbólico (60 anos) da comemoração (no sentido de rememorar, não de celebrar), nunca o tema da memória, da verdade e da justiça foram tão postos em debate.
E continua. Agora mesmo, no dia 25 de abril, faço a conferência inaugural – Direitos Humanos na Ditadura – em simpósio organizado na Universidade de Brasília (CEAM e Departamento de História), sob o tema interpelante: Há 60 Anos – Um Golpe! Laceração da Democracia & Ditadura no Brasil.
Laceração diz bem sobre as inquietações que nos convocam e nos posicionamentos que nos mobilizam. Voltando ao meu texto no Jornal Brasil Popular, cuidei desses fundamentos e interpelações ao co-organizar o livro O direito achado na rua: introdução crítica à Justiça de Transição na América Latina, que pode ser conferido em https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf.E não posso deixar de considerá-los em face da grande mobilização, tanto de ativistas quanto de personalidades, no transcurso dos dramáticos acontecimentos que atentaram contra a Constituição, as instituições e a democracia brasileiras.
Coloquei em relevo os quatro pilares da Justiça de Transição – direito à memória e à verdade; reparação; responsabilização penal; e reforma das instituições democráticas e de segurança. Para, à luz desses elementos, salientar o que não se pode perder de vista é que a Justiça Transicional admite, sim, reconciliação, mas implica necessariamente não só processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre os delitos, conceder reparações, materiais e simbólicas às vítimas, mas também reformar e ressignificar as instituições responsáveis pelos abusos e educar para a democracia, a cidadania, os direitos humanos e para a não repetição desses atentados.
Agora, quero ainda mergulhar nesse verdadeiro punctumdolens a partir do que me pareceu o mais notável registro entre todos os eventos programados desde o 31 de março, ou antes, quando a USP outorgou post mortemdiplomas a estudantes vitimados pela ação cruenta da ditadura, o que se seguirá em 21 de abril, junto com a celebração do aniversário da UnB, medida igual, para repor o projeto de vida de Honestino Guimarães, brutalmente interrompido (https://brasilpopular.com/unb-diploma-honestino-ato-de-reparacao-por-dano-a-projeto-de-vida-2/).
Refiro-me ao ato marcante da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) em conceder, no dia 2 de abril, reconhecimento aos primeiros pedidos de anistia coletiva da história do País, às comunidades indígenas Krenak, do norte de Minas Gerais; e Guyraroká, do Mato Grosso do Sul, que tiveram, assim, a reparação coletiva formalizada e receberam o pedido de desculpas do Estado brasileiro.
Com efeito, em sessão com alto simbolismo, a comissão revisou a negativa dada aos Krenak e Kaiowá no governo anterior e reconheceu as violações de direitos humanos sofridas por eles durante a ditadura militar. Ajoelhada, a presidente do colegiado, Enéa de Stutz e Ameida, minha colega na Faculdade de Direito da UnB, pediu desculpas ao povo Krenak pelas violências cometidas pelos não indígenas nos últimos 524 anos. Logo em seguida, a comissão declarou como anistiada a comunidade Guyraroká, do povo Kaiowá. A liderança da comissão, então, repetiu o gesto com um pedido de desculpas em nome do Estado brasileiro.
Recorro ao voto da relatora do processo da comunidade Guyraroká, a conselheira (primeira conselheira indígena) Maíra Pankararu:
O caso que hoje analisamos carrega consigo um caráter emblemático e simbólico, representando um marco de reconhecimento cultural e histórico das violações perpetradas contra grupos que compartilham identidades afins. Tal reconhecimento não apenas valida as experiências desses grupos marginalizados, mas também serve como fundamento sólido para a adoção de medidas eficazes de não repetição.
Por isso, a decisão de aprovar este voto não se limita apenas ao cumprimento de formalidades legais, mas também constitui um passo significativo em direção à construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, onde as violações do passado são reconhecidas e enfrentadas de maneira responsável e comprometida com a promoção dos direitos humanos e da dignidade de todos os cidadãos.
Como tive a oportunidade de defender em minha dissertação de mestrado apresentada perante a Universidade de Brasília,
A Organização das Nações Unidas (ONU) discutiu a aplicação dos princípios da justiça de transição aos povos indígenas. Em julho de 2013, o Mecanismo de Peritos em Direitos dos Povos Indígenas da Comissão de Direitos Humanos (EMRIP/HCR), em sua sigla em inglês) apresentou um estudo sobre o acesso à justiça na promoção e proteção dos direitos dos povos indígenas. A parte final desse estudo foi dedicada à análise da capacidade dos processos de verdade e reconciliação em promover o acesso dos povos indígenas à justiça. O estudo considera os mecanismos ligados à justiça transicional como possibilidade de garantir o acesso dos povos indígenas à justiça, com relação ao legado das violações de direitos humanos nas sociedades que passaram por conflitos ou regimes repressivos (ONU, A/HRC/EMRIP/2013/2).
Os processos de justiça de transição envolvendo povos indígenas, de acordo com os peritos da ONU, devem ser coerentes com as expectativas desses povos e devem considerar sua visão de como a justiça e a paz serão alcançadas. Suas experiências coletivas de colonização e as causas fundamentais dos conflitos devem ser abordadas e todas as violações de direitos humanos devem ser remediadas, incluindo a perda de sua soberania, de suas terras, territórios e recursos e as violações de tratados, acordos e outros arranjos estabelecidos entre eles e o Estado (ONU, A/HRC/EMRIP/2013/2).
Os Princípios Atualizados para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos através da Ação de Combate à Impunidade (E/CN.4/2005/102/Add.1) e os Princípios Básicos e Diretrizes sobre o Direito à Recurso e Reparação para Vítimas de Violações Graves do Direito Internacional dos Direitos Humanos (Resolução 60/147 da Assembleia Geral) compõem o quadro normativo internacional e operacional para a abordagem da justiça transicional baseada nos direitos humanos da ONU. Esses documentos normativos preveem um sistema de justiça abrangente apoiado no direito à verdade, direito à justiça, direito à reparação e na garantia de não-repetição (ONU, A/HRC/EMRIP/2013/2, p. 19-20).
Há outros enunciados no voto de Maíra. Eles não são novidade para mim que li sua dissertação de mestrado na UnB – “Nossa história não começa em 1988”: o direito dos povos indígenas à luz da justiça de transição. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2023 – e sobre ela escrevi uma recensão (https://estadodedireito.com.br/nossa-historia-nao-comeca-em-1988-o-direito-dos-povos-indigenas-a-luz-da-justica-de-transicao/).
No voto Maíra recupera questões candentes que fazem parte da agenda de debates do Grupo de Pesquisa coordenado por sua Orientadora e que aparecem por exemplo, no livro organizado por Eneá de Stutz e Almeida, a atual presidenta da Comissão de Anistia – http://justicadetransicao.org/a-transicao-brasileira-memoria-verdade-reparacao-e-justica-1979-2021/ (A transição brasileira: memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021), Salvador: Soffia10 Editora, uma publicação do Grupo de Pesquisa Justiça de Transição, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília).
O livro, dizem os organizadores (Eneá de Stutz e Almeida) “atualiza, complementa e sistematiza ideias e conceitos iniciados em textos anteriores. A autora analisa a anistia política implementada a partir de 1979 no Brasil: uma anistia da memória, que não impede a responsabilização dos violadores de direitos humanos. Estuda os mecanismos da justiça de transição brasileira até o ano de 2021, concluindo que o País vive uma justiça de transição reversa”.
Para contribuir para estancar essa reversidade, Maíra agora com assento na Comissão e de sua dissertação, como se fora uma carta de intenções, cujos termos já se podia divisar na Introdução de sua Dissertação porque ali, com linguagem elegante e profundamente encarnada a Autora fixa o seu pressuposto que é fundamentar-se em “políticas de memória, justiça e reparação [que] são necessárias para permitir a transição democrática após regimes ditatoriais, conflitos armados ou outras situações de graves violações de direitos humanos, por permitirem a assimilação do significado dessas violências, a devida responsabilização dos envolvidos, a justa reparação às vítimas e a conscientização ampla acerca do ocorrido, a fim de que não haja nem esquecimento, nem repetição”, porém, na medida em que “identificam e tratam de casos de violência contra os Povos Indígenas”, e que permitam organizar estratégias como justiça de transição, embora conforme ela designe – pág. 18 – “a justiça transicional [que] não se reduz a uma cartilha de mecanismos para tratar de violações sistêmicas dos direitos humanos: é também o reconhecimento de que uma nação está passando por uma mudança monumental ou que precisa fazê-lo. Por isso, para o novo governo, a justiça de transição para os Povos Indígenas deve ser uma prioridade”.
Ela, de fato, considera esse processo necessário ao “momento histórico da política brasileira, descrevendo o processo de aldeamento da política como uma estratégia de sobrevivência dos povos indígenas” (pág, 19), embora constate que “os estudos de justiça de transição são um campo novo e em processo de maturação. A literatura especializada não se dedicou às questões da justiça de transição para os povos indígenas e desconhece a temática dos direitos indígenas. O meu interesse com esse trabalho é contribuir com o debate e avançar na conquista dos direitos transicionais para os povos indígenas” (pág. 17).
É nesse ponto que Maíra define seu tema de estudo. Segundo ela, desenvolvido para responder duas perguntas: “1) como a ausência de implementação dos mecanismos de justiça de transição para os povos originários do Brasil legitima a continuidade de graves violações dos direitos humanos? 2) Quais são os obstáculos para a implementação dos mecanismos da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil?”, a partir das quais formula o “objetivo geral da pesquisa [que] consistiu em avaliar a transição brasileira desde 1988, uma vez que pouco avançou na efetivação de mecanismos de reparação e não-repetição em relação às violências sofridas pelos povos originários durante a ditadura militar, mostrando as insuficiências da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil e criticando o caminho que a reparação brasileira percorreu”.
Questões bem postas e que confrontam a Autora com duas perspectivas. A primeira, originária de sua posição político-epistemológica – ser indígena e querer contribuir de modo teórico para a disputa hermenêutica que o tema comporta. A segunda, circunstancial. Entre a admissão no Mestrado e a conjuntura atual de retomada democrática da governança com um projeto de sociedade emancipatório e descolonizador, com a contenção do autoritarismo de modelo fascista (ao menos na acepção de Umberto Eco que o caracteriza numa perenidade que não se isola no passado factual que conturbou o mundo ocidental na segunda metade do século XX), que promove a exceção e que nega titularidade subjetiva de direitos aos povos indígenas e na exceção realiza verdadeira necropolítica no limite do genocídio, a condição peculiar de que Maíra passa a se investir da qualidade de membro integrante indígena da Comissão Nacional de Anistia.
Há uma questão que a interpela no duplo plano com o qual essas perspectivas se confrontam. Diz a própria Maíra (pág. 17-18): “A anistia brasileira após o fim do regime ditatorial civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985, da forma como foi feita, não deu conta de reparar os povos indígenas Para que isso acontecesse seria necessário ampliar ou mesmo criar nova legislação e novas formas de reparações coletivas. Insuficiente para os povos indígenas, a justiça de transição gera como consequência violências bastantes claras, a exemplo da tese do marco temporal, que propõe que só sejam reconhecidos os direitos aos territórios que estivessem ocupados na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, desconsiderando as expulsões e os esbulhos praticados contra os povos indígenas, inclusive durante o período da ditadura”.
Ou seja, como ela, diz, não deu conta nem no sentido estrito da anistia propriamente dita, atribuída a uma Comissão especial para conferi-la às situações inscritas no estatuto que a institucionalizou; nem no sentido ampliado de memória, verdade e justiça, que permitiria um alcance expandido de seus enunciados (pág. 15):
O processo de superação dos erros e traumas do passado apenas começou com o trabalho realizado pelas comissões da verdade, mas a reconciliação com o passado não se esgota com os esforços de uma comissão que funciona por um tempo limitado e sob um mandato específico. O dano associado às injustiças históricas continua hoje. Infelizmente, os crimes cometidos contra os povos indígenas nas Américas não pertencem apenas ao passado.
É preciso reconhecer que muitos dos desafios contemporâneos enfrentados pelos povos indígenas estão enraizados em erros do passado e que as injustiças e violências históricas de longa data, inclusive em relação à colonização, à invasão e à apropriação das terras, territórios e recursos dos povos indígenas que permanecem sem solução, constituem uma afronta contínua à nossa dignidade.
No contexto atual, os povos indígenas enfrentam uma série de desafios não apenas para lidar com o legado e a continuidade das violações de seus direitos humanos, mas também para promover o acerto de contas, a busca da verdade, a reparação e a construção de instituições confiáveis recomendadas pelas CVR. Mesmo tendo as CVR reconhecido, em seus relatórios finais, a responsabilidade dos Estados pelos crimes cometidos e tendo afirmado o direito à memória, verdade, justiça, reparação individual e coletiva e à garantia de não-repetição como parte da reparação integral a que têm direito os povos indígenas, as condições sociais, políticas e econômicas dos povos indígenas não mudaram muito e muitos povos continuam sendo alvos de violências.
É ao influxo desse entendimento que Maíra vem adensar os fundamentos de seu voto:
Não podemos abordar a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva sem considerar a necessidade de defender de maneira intransigente as terras ancestrais indígenas. Essa resistência, levada a cabo de forma heróica pelos Guarani e Kaiowá, ocorre apesar das condições desumanas que enfrentam.
É imperativo registrar que o Estado brasileiro tem falhado de maneira flagrante na garantia dos direitos dos Guarani e Kaiowá. Desde pelo menos a década de 1940, eles têm sido expulsos de suas terras, relegados a pequenas reservas criadas pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), para permitir a livre distribuição dessas terras a particulares pelo governo federal. Com o golpe de estado de 1964 e a posterior criação da FUNAI em 1967, a situação deles se deteriorou, sendo a agência governamental indigenista, na verdade, um instrumento estatal para favorecer a implementação de projetos agropecuários na região, em detrimento das terras indígenas.
Apesar da promessa da Constituição Cidadã de 1988 de demarcar todas as terras indígenas em cinco anos, conforme previsto pelo artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, isso nunca se concretizou. Pelo contrário, os Guarani e Kaiowá vivenciaram a anulação das demarcações de suas terras, com base na aplicação da esdrúxula tese dos marco temporal, sem que fossem incluídos no processo como parte.
São eles que testemunham suas casas de reza serem queimadas como uma verdadeira epidemia. De janeiro de 2020 a fevereiro de 2024 foram 16, em ataques organizados e criminosos. São eles que veem hnadesys e nhaderus perseguidos e assassinados. A taxa de suicídios entre eles é uma das mais elevadas entre os povos indígenas. Continuamente, são expostos a pesticidas, o agronegócio vem sistematicamente envenenando essas pessoas com agrotóxico.
O processo, instruído cuidadosamente pelo MPF, com base na consulta prévia à comunidade Guyraroká, como manda a Convenção 169 da OIT, deixa claro qual voto deve ser emitido hoje. É crucial ressaltar que isso representa o mínimo que o Estado brasileiro pode fazer.
Maíra, no voto, resgata as treze recomendações formuladas pela Comissão Nacional da Verdade para a efetivação da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil, para assimilá-las às conclusões de seu voto, integralmente aprovadas ao final do julgamento:
- a) que seja declarada a Anistia Política Coletiva do Povo Indígena Guarani e Kaiowá, da comunidade Guyraroká, nos termos do art. 1º, inciso I, da Lei n. 10.559/2002, combinadamente com o art. 16 do Regimento Interno da Comissão de Anistia;
- b) recomendar à Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai/MS):
b.1) assistência médica semanal por EMSI (Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena);
b.2) efetivação de estudo epidemiológico para verificação de agravos à saúde em decorrência de exposição a resíduos de agrotóxicos;
b.3) assistência médica na área de Saúde Mental, especialmente para a redução de agravos derivados de traumas intergeracionais ocasionadas pelo processo de remoção;
b.4) Construção de um posto de saúde com a disponibilização de remédios pelo SUS.
- c) recomendar à União:
c.1) O reconhecimento da área como terra indígena.
- d) recomendar ao Ministério de Minas e Energia (MME):
d.1) o acesso à energia elétrica para todos os moradores da comunidade.
- e) recomendar ao governo do Estado de Mato Grosso do Sul:
e.1) construção de casas populares para todas as famílias, tendo em vista que a maioria vive em barracas de lonas;
e.2) a devida sinalização e construção de lombadas ou instalação de radares na MS – 278, que passa em frente a aldeia;
e.3) instalação de torre de internet, e recomende-se também este item ao Ministério das Comunicações;
e.4) reforma e ampliação da casa de reza, bem como a construção de um barracão social para eventos e reuniões;
e.5) a disponibilização de transporte público até a cidade de Caarapó
- f) recomendar à prefeitura de Caarapó:
f.1) a troca de reservatório de água da comunidade;
f.2) 01 (uma) quadra de esporte para o lazer da comunidade;
f.3) construção de viveiros para o reflorestamento das áreas degradadas, bem como 01 (uma) câmara fria para guardar sementes;
f.4) cascalhamento das estradas principais e vicinais e construção de um ponto de ônibus coberta para os alunos se acomodarem em segurança;
f.5) construção de espaço/barracas às margens da rodovia para a comercialização dos produtos que a comunidade vier a produzir;
f.6) a ampliação da escola e a construção de uma biblioteca com livros de conteúdos referenciados à população indígena.
O voto de Maíra e o julgamento, no contexto de 60 anos passados desde o Golpe, representam bem possibilidades efetivas para um agir, não só na Comissão de Anistia,mas no sistema de governo, para a criação de políticas com o recém criado Ministério dos Povos Indígenas ou para a atuação emponderada do Movimento Indígena para avançar nesse campo. O voto é também um voto de confiança. Eu também sou confiante, na medida de conquistas que vençam o pessimismo da razão com o entusiasmo da vontade.
Mas confesso que me preocupam mais os aliados que os adversários. O juiz Cançado Trindade, por duas vezes Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, exemplar em seus votos de valorização das exigências de reparação para restaurar a dignidade de projetos de vida e projetos sociais, lembrava que o principal obstáculo para integrar os direitos humanos nos sistemas nacionais de direito é o obstáculo do positivismo – o científico e o jurídico – que reduzem o humano na hierarquia da evolução (será o indígena gente como nós?) e o direito ao legal que desconsidera a dimensão antropológica de outras sociabilidades em dinâmica de pluralismo jurídico (aliás, já acolhidas no voto do relator Ministro Fachin no exame da ADPF que discutiu e rejeitou a tese esdrúxula do chamado marco temporal. Com a sua repristinação pelo Senado Federal (embora na iminência de novo rechaço pelo STF), ainda permanece a preocupação: será o direito positivo, legal, capaz de abrir-se a esse reconhecimento?
(*) Por José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
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