CPI contra Padre Júlio faz caridade virar crime na cidade com 25% da população de rua do país
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O título da matéria é o da chamada de um entre dezenas de vídeos e outro tanto de notícias que não escondem a perplexidade diante de uma CPI, iniciativa de vereador do União Brasil, que obteve assinaturas suficientes para a instalar em fevereiro na Câmara Municipal de São Paulotendo como principal alvo a atuação do padre Júlio Lancellotti na região central da capital, mais especificamente na cracolândia, e a relação dele com entidades (ONGs) que atuam em defesa da população de rua, na capital paulista.
Felizmente, o teor das primeiras manifestações no plano do social é de forte solidariedade ao trabalho pastoral do padre Júlio. Solidariedade não apenas política, mas também material, mobilizada para dar sustentabilidade ao serviço fraterno e misericordioso, para usar linguagem missionária, ao serviço que promove.
Eu próprio, principalmente aqui neste espaço do Jornal Brasil Popular, em coluna que assino – O Direito Achado na Rua – tenho dado atenção a seu admirável trabalho, conforme seguidas manifestações de testemunho: https://www.brasilpopular.com/o-stf-e-a-acao-consciente-contra-a-aporofobia-oasco-a-pobreza/; https://www.brasilpopular.com/populacao-em-situacao-de-rua-estado-de-coisas-inconstitucional/; https://www.brasilpopular.com/lei-padre-julio-lancellotti-e-a-proibicao-de-obstaculos-contra-pessoas-em-situacao-de-rua/; https://www.brasilpopular.com/humanizar-se-estando-ao-lado-dos-pobres/, que inclui o registro do significado de sua atuação e de reconhecimentos, até do parlamento paulista que distinguem a obra de mérito do paroco devoto do santo negro amigo dos pobres Martinho de Porres, ou Martinho de Lima.
Com meu colega Daniel Seidel, da Comissão Justiçae Paz de Brasília, recebemos por duas vezes o padre Júlio Lancellotti, em nosso programa Conversa de Justiça e Paz. Em ambos os encontros a motivação foi o lançamento das mensagens do Papa Francisco, para o Dia Mundial dos Pobres, marcando nessas conversas que pensar nos pobres com disponibilidade sensível, é ter em mente o modo como o Padre Lancelotti exercita a sua vocação pastoral, na mais espontânea e misericordiosa disposição de fraternidade: “Sinto-me humanizado. Eu sinto que estou do lado que Jesus gostaria que eu estivesse”.
Ainda nesse ano de 2023, que findou, no espaço agora dos Diálogos de Justiça e Paz que a Comissão de Justiça e Paz de Brasília (CJP), a Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP) e o OLMA – Observatório de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (Jesuítas), a conversa teve como tema Os pobres e o futuro da humanidade: o pedido de reconexão do Papa Francisco (https://www.youtube.com/watch?v=UhGl3e2Gzmw&t=99s), num diálogo compartilhado por Gilberto Carvalho, Secretário Nacional de Economia Popular e Solidária, o Padre Miguel Martins, responsável pelo Centro Cultural Brasília e Ana Paula Inglez Barbalho,vice-presidenta da Comissão de Justiça e Paz de Brasília, responsável por mediar o encontro, que teve grande repercussão.
Matéria de Tatiana Py Dutra, publicada neste 3 de janeiro – https://movimentorevista.com.br/2024/01/camara-de-sp-instalara-cpi-para-investigar-padre-julio/, aventa a hipótese de que a CPI “proposta por ex-integrante do MBL, investigação visa buscar irregularidades na atuação do religioso para associá-las a pré-candidato do PSOL à prefeitura”.
Segundo o teor da matéria “É notório o histórico de perseguição de ex-integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL) contra o padre Júlio Lancellotti. Em 2020, o ex-deputado paulista Arthur do Val alardeou uma suposta troca de mensagens entre o religioso e um menor de idade, o que sugeria o crime de pedofilia. Tudo não passava de uma armação. Mas o expediente persecutório e calunioso contra o padre segue vivo e ganha novas formas”. No fundo, pois, diz a jornalista, “a intenção da investigação é encontrar alguma informação desabonadora sobre o padre para relacioná-la com Guilherme Boulos (PSOL), pré-candidato à prefeitura de São Paulo”, para “beneficiar a campanha para reeleição e pré-candidaturas que o União Brasil apoia”.
Ora, Comissões Parlamentares de Inquérito constitucionalmente devem ser criadaspara apurar fato determinado, especificamente apontado no momento de sua criação; não se pode criar CPIs para investigações genéricas, abstratas; sendo certo, não obstante a esfera de autonomia e de reserva de poderes, que essa importante função de investigação legislativa, fique imune ao controle de legitimidade de seus atos pelo Poder Judiciário e ao dever de motivar e de estabelecer a justa causa de sua instalação e de suas decisões, quando afetem direitos e garantias fundamentais.
De acordo com a seção Painel da Folha de S.Paulo, os principais alvos de investigação da CPI das ONGs serão o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (Bompar) e o coletivo Craco Resiste. Ambas as organizações dedicam-se ao apoio à população em situação de rua e dependentes químicos. O Bompar, uma entidade filantrópica associada à igreja católica, tem ligações anteriores com o padre Júlio, que já foi conselheiro da instituição. O Craco Resiste, por sua vez, atua na luta contra a violência policial na região conhecida como Cracolândia.Em dezembro, o padredeclarou à coluna que não possui qualquer influência sobre essas organizações e não colabora em projetos conjuntos com elas. Ele enfatizou a autonomia das entidades, destacando que possuem diretorias, técnicos e funcionários independentes:‘A Câmara tem direito de fazer uma CPI, mas vai investigar e não vai me encontrar em nenhuma das duas’”.
Ainda conforme a seção Painel, “vereadores denunciam bolsonarista por perseguição a padre Júlio Lancellotti”, uma vez que “a primeira é uma entidade filantrópica ligada à igreja católica da qual o padre Júlio já foi conselheiro. A segunda atua contra a violência policial na região da cracolândia”.E que “o padre Júlio afirmou em dezembro ao Painel, da Folha, que não tem qualquer incidência sobre as entidades e não atua em projetos conjuntos com elas”.
Homem de Igreja, o padre Júlio segue a diretriz pastoral a que exorta o Papa, que em suas mensagens sobre a necessidade “de um sério e eficaz compromisso político e legislativo”. Segundo ele,“não obstante os limites e por vezes as lacunas da política para ver e servir o bem comum, possa desenvolver-se a solidariedade e a subsidiariedade de muitos cidadãos que acreditam no valor do compromisso voluntário de dedicação aos pobres. Isto, naturalmente sem deixar de estimular e fazer pressão para que as instituições públicas cumpram do melhor modo possível o seu dever. Mas não adianta ficar passivamente à espera de receber tudo «do alto». Quem vive em condição de pobreza, seja também envolvido e apoiado num processo de mudança e responsabilização”.
Tarefa árdua. Missionariamente abraçada pelo padre Julio Lancellotti. Apesar de muito reconhecimento – só em 2021, o padre Júlio recebeu pelo menos três reconhecimentos: o prêmio Zilda Arns, criado pela Câmara dos Deputados em 2017 para reconhecer pessoas e instituições que trabalham ativamente em defesa dos direitos das pessoas idosas; o 7º Prêmio Dom Paulo Evaristo Arns, da Prefeitura de São Paulo, tendo alcançado um número recorde de indicações – 15.598 de um total de 16.643, seguindo um processo de escolha feito por meio de um edital de chamamento público, com um formulário online aberto à sociedade civil; e agora em novembro, o Colar de Honra ao Mérito, a mais alta honraria da Assembleia de SP por sua ação em face da pandemia de Covid-19 e pela defesa de direitos humanos. E mais recentemente, a sanção de uma lei federal que leva seu nome, porque veda o emprego de técnicas construtivas hostis em espaços livres de uso público.
Daí que ele, com o Papa, ponham em causa, para além da mobilização das consciências, “o desfio que os governos e as instituições mundiais precisam de perfilhar, com um modelo social clarividente, capaz de enfrentar as novas formas de pobreza que invadem o mundo” pois “se os pobres são colocados à margem, como se fossem culpados da sua condição, então o próprio conceito de democracia é posto em crise e fracassa toda e qualquer política social”. Por isso o Padre Júlio, em sessão convocada pela Câmara dos Deputados para marcar a Fraternidade e Amizade Social: 1 Ano da Carta Encíclica Fratelli, tenha reivindicado a taxação de grandes fortunas e garantia de água (potável) para os pobres e carentes.
Para essa convocação deveria estar mobilizado o parlamento municipal paulista. Para confrontar os desafios da emancipação, da inclusão e da cidadania. Não para criminalizar o Padre Júlio e fazer “caridade virar crime na cidade com 25% da população de rua do país”. Aliás, foi o que eu propugnei na Câmara Federal, em meu depoimento na CPI que intentava criminalizar o MST – um autêntico movimento social – https://www.brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/.
Sabemos o resultado. O social reagiu a essa disposição e revelou que a justiça e o legislativo não devem agir como serpentes que picam pés descalços (a quem diga que a frase original é de Eduardo Galeano). A CPI do MST esvaziou-se melancolicamente e teve efeito paradoxal. Revelou o que pode e faz a cidadania, quando o institucional colapsa e se apequena.
No fim, virá do padre Júlio um carão nos indiferentes, artífices do descarte das periferias sobrantes, com a sobranceira autoridade dos que não arredam do compromisso de manter-se sempre junto dos pobres para humanizar-se com eles.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
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