Carta do Mondego (Cartas de Portugal, Gabriela Jardon)
Queridísimo Professor Zé Geraldo,
Essa carta tem, no
mínimo, nove meses de atraso. Uma gestação, percebo agora. Na verdade, acho que
mais; me perdi nas contas. Terei perdido também o timing? Bíblico[1], esse
timing, é verdade, impregnado em tudo: se quiser, tudo bem,
olha-pro-céu-meu-amor, mas cuida pra não perder os bondes da vida! Ou aqui no
caso seriam os comboios?
Olhar pro céu foi
um pouco culpa sua, professor – essa coisa de ensinar as pessoas a se desgrudarem
do chão. Nessa temporada Coimbra/Porto, olhei mais ainda. Não de janelas de
aviões, como Renata e Ísis em suas cartas pontuais, mas pra me tapear na subida
das ladeiras, que não acabam nunca, o Mondengo e o Douro deitados lá embaixo.
Não só. Olhar pro céu também era muito necessário, pois só o seu não-limite pra
comportar as dores de aprender e desaprender, da mudança de lógica, dos golpes
do crescimento. Foram muitos, e disso o senhor entende.
Mas perder o comboio,
que me lembre, só umas duas vezes – e sem maiores consequências. Porque em Portugal,
no ar, uma certa autorização, não para perdas de timing ou de comboios,
mas pra se ir mais devagar. Privilégio de colonizador? Sem dúvida. Mas também talvez
efeito do tempo acumulado - tiro isso unicamente da minha cabeça (e você também
tem culpa nisso, professor; essa coisa de ensinar as pessoas a sustentarem seus
pensamentos). Como não é raro acontecer à gente mais velha, pode ter acontecido
também ao país mais antigo da Europa: a pressa, que não seja a de viver, termina
uma hora.
Fácil era errar a
estação – ou a paragem, como se diz por lá. Saindo do Porto, normalmente
prestava uma atenção exagerada em Aveiro (a gente não se cansa de olhar Aveiro).
Em Oia já estava distraída, o que me fazia passar batido por Oliveira, olhar sem
enxergar pra Mogofones, em Mealhada só pensar em leitões, nem ver Pampilhosa, esquecer
completamente que Souselas era a imediatamente anterior e, pimba, estar de cabeça
baixa, enfiada quase sempre no celular, num texto ou só nos meus botões, ao
passar por Coimbra, só me dando conta lá por Pombal. O jeito era descer e pegar
o comboio de volta.
Pego aqui também o
comboio de volta e te envio essa carta, nascida um pouco a fórceps ainda, o que
me leva, não sei por que, a pensar na forma como nos conhecemos: brigando. Isso,
sim, foi culpa foi toda minha. E não foi briga, mas umas farpas que não duraram
nada. Primeiro semestre de 2018 e Rosa Weber nega habeas corpus a Lula fundamentada
no princípio da colegiabilidade, lembra? Em sala-de-aula defendo seu voto e
você me diz: mas então você está querendo saber mais que o rei?
Achei graça, até
hoje não sei que rei é esse, mas acho mesmo que estava errada. E o Direito
Achado na Rua, do qual eu começava então a tomar os primeiros goles, se tornou caminho
sem volta pra mim no deixar cair as coroas e destronar a lei-só-lei. Mais que
culpa sua, agora era o seu dna intelectual sendo passado adiante, e eu não
parando mais de me embebedar disso tudo. Lá se vão cinco anos e eu ainda sem ressaca,
só alegrias.
Com ele (dna) hoje
na corrente sanguínea, ontem mesmo dizia em uma audiência de conciliação das
mais sensíveis, com uma família partida ao meio, mãe e duas filhas de um lado
da mesa, o irmão e filho do outro. Dr., a gente sabe o que a lei diz, mas
antes dela vem a justiça. Ao invés de a gente ficar aqui falando de artigo e
inciso pra essas pessoas, confundindo-as, eu quero que seu cliente me responda,
ele, Dr., o senhor ainda não, qual a solução mais justa pro problema na opinião
dele. Não precisa ser formado em direito pra entender de justiça, Dr. Seu
cliente, essas pessoas aqui, é que são os donos do problema, Dr., vamos deixar
eles falarem. Agora o senhor e eu vamos ouvir, por favor.
Ouvimos, sob os
protestos do advogado que me pedia mais atenção ao rito. Também ele queria saber
mais que o rei, professor? Talvez saber mais até que o reino - no caso, as
pessoas comuns para quem o sistema de justiça existe, mas que as objetifica,
desempodera e desgraça sistematicamente, se perdendo. Haja comboio de volta.
Num desses, mas de ida,
fui mais uma vez do Porto a Coimbra a caminho de uma aula magna do professor
Boaventura na Faculdade de Economia. Ele falava da linha abissal. Abrindo pra
perguntas no final de uma tarde daquelas que desenham nas pessoas também linhas
abissais, mas das que constroem e não que engolem gente, ousei: E o que
seria, professor Boaventura, para o senhor, uma juíza que tenta não reproduzir no
seu trabalho a linha abissal? Ele disse muitas coisas, mas a primeira? Não
ande só.
Mal sabia ele que
Rosa Weber tinha dado um voto, eu era aluna especial, encontrei o professor da minha
vida, achei meu dna acadêmico, me apaixonei pelo Direito Achado na Rua, aprendi
a sustentar melhor as ideias da minha cabeça, aprender e desaprender se
preciso, deixar doer o crescimento. Aprendi, principalmente, a olhar mais pro
céu e desgrudar, sem medo, os pés do chão. Não ando só.
Com muito amor e
felicidade, profunda gratidão e vontade de ressonância,
Gabriela J.
[1]
“Tudo tem seu tempo determinado e há tempo para todo propósito debaixo do
céu; tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e de se arrancar o que
se plantou; tempo de matar, e tempo de curar; tempo de tempo de derrubar, e
tempo de edificar; tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo
de dançar; tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de
abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; tempo de buscar, e tempo de perder;
tempo de gaurdar, e tempo de lançar fora; tempo de rastar, e tempo de coser;
tempo de estar calado, e tempo de falar; tempo de amar, e tempo de odiar; tempo
de guerra, e tempo de paz.” (Eclesiastes 3:1)
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