O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta
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quinta-feira, 31 de agosto de 2023
Carta do Mondego (Cartas de Portugal, Gabriela Jardon)
Queridísimo Professor Zé Geraldo,
Essa carta tem, no
mínimo, nove meses de atraso. Uma gestação, percebo agora. Na verdade, acho que
mais; me perdi nas contas. Terei perdido também o timing? Bíblico[1], esse
timing, é verdade, impregnado em tudo: se quiser, tudo bem,
olha-pro-céu-meu-amor, mas cuida pra não perder os bondes da vida! Ou aqui no
caso seriam os comboios?
Olhar pro céu foi
um pouco culpa sua, professor – essa coisa de ensinar as pessoas a se desgrudarem
do chão. Nessa temporada Coimbra/Porto, olhei mais ainda. Não de janelas de
aviões, como Renata e Ísis em suas cartas pontuais, mas pra me tapear na subida
das ladeiras, que não acabam nunca, o Mondengo e o Douro deitados lá embaixo.
Não só. Olhar pro céu também era muito necessário, pois só o seu não-limite pra
comportar as dores de aprender e desaprender, da mudança de lógica, dos golpes
do crescimento. Foram muitos, e disso o senhor entende.
Mas perder o comboio,
que me lembre, só umas duas vezes – e sem maiores consequências. Porque em Portugal,
no ar, uma certa autorização, não para perdas de timing ou de comboios,
mas pra se ir mais devagar. Privilégio de colonizador? Sem dúvida. Mas também talvez
efeito do tempo acumulado - tiro isso unicamente da minha cabeça (e você também
tem culpa nisso, professor; essa coisa de ensinar as pessoas a sustentarem seus
pensamentos). Como não é raro acontecer à gente mais velha, pode ter acontecido
também ao país mais antigo da Europa: a pressa, que não seja a de viver, termina
uma hora.
Fácil era errar a
estação – ou a paragem, como se diz por lá. Saindo do Porto, normalmente
prestava uma atenção exagerada em Aveiro (a gente não se cansa de olhar Aveiro).
Em Oia já estava distraída, o que me fazia passar batido por Oliveira, olhar sem
enxergar pra Mogofones, em Mealhada só pensar em leitões, nem ver Pampilhosa, esquecer
completamente que Souselas era a imediatamente anterior e, pimba, estar de cabeça
baixa, enfiada quase sempre no celular, num texto ou só nos meus botões, ao
passar por Coimbra, só me dando conta lá por Pombal. O jeito era descer e pegar
o comboio de volta.
Pego aqui também o
comboio de volta e te envio essa carta, nascida um pouco a fórceps ainda, o que
me leva, não sei por que, a pensar na forma como nos conhecemos: brigando. Isso,
sim, foi culpa foi toda minha. E não foi briga, mas umas farpas que não duraram
nada. Primeiro semestre de 2018 e Rosa Weber nega habeas corpus a Lula fundamentada
no princípio da colegiabilidade, lembra? Em sala-de-aula defendo seu voto e
você me diz: mas então você está querendo saber mais que o rei?
Achei graça, até
hoje não sei que rei é esse, mas acho mesmo que estava errada. E o Direito
Achado na Rua, do qual eu começava então a tomar os primeiros goles, se tornou caminho
sem volta pra mim no deixar cair as coroas e destronar a lei-só-lei. Mais que
culpa sua, agora era o seu dna intelectual sendo passado adiante, e eu não
parando mais de me embebedar disso tudo. Lá se vão cinco anos e eu ainda sem ressaca,
só alegrias.
Com ele (dna) hoje
na corrente sanguínea, ontem mesmo dizia em uma audiência de conciliação das
mais sensíveis, com uma família partida ao meio, mãe e duas filhas de um lado
da mesa, o irmão e filho do outro. Dr., a gente sabe o que a lei diz, mas
antes dela vem a justiça. Ao invés de a gente ficar aqui falando de artigo e
inciso pra essas pessoas, confundindo-as, eu quero que seu cliente me responda,
ele, Dr., o senhor ainda não, qual a solução mais justa pro problema na opinião
dele. Não precisa ser formado em direito pra entender de justiça, Dr. Seu
cliente, essas pessoas aqui, é que são os donos do problema, Dr., vamos deixar
eles falarem. Agora o senhor e eu vamos ouvir, por favor.
Ouvimos, sob os
protestos do advogado que me pedia mais atenção ao rito. Também ele queria saber
mais que o rei, professor? Talvez saber mais até que o reino - no caso, as
pessoas comuns para quem o sistema de justiça existe, mas que as objetifica,
desempodera e desgraça sistematicamente, se perdendo. Haja comboio de volta.
Num desses, mas de ida,
fui mais uma vez do Porto a Coimbra a caminho de uma aula magna do professor
Boaventura na Faculdade de Economia. Ele falava da linha abissal. Abrindo pra
perguntas no final de uma tarde daquelas que desenham nas pessoas também linhas
abissais, mas das que constroem e não que engolem gente, ousei: E o que
seria, professor Boaventura, para o senhor, uma juíza que tenta não reproduzir no
seu trabalho a linha abissal? Ele disse muitas coisas, mas a primeira? Não
ande só.
Mal sabia ele que
Rosa Weber tinha dado um voto, eu era aluna especial, encontrei o professor da minha
vida, achei meu dna acadêmico, me apaixonei pelo Direito Achado na Rua, aprendi
a sustentar melhor as ideias da minha cabeça, aprender e desaprender se
preciso, deixar doer o crescimento. Aprendi, principalmente, a olhar mais pro
céu e desgrudar, sem medo, os pés do chão. Não ando só.
Com muito amor e
felicidade, profunda gratidão e vontade de ressonância,
Gabriela J.
[1]
“Tudo tem seu tempo determinado e há tempo para todo propósito debaixo do
céu; tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e de se arrancar o que
se plantou; tempo de matar, e tempo de curar; tempo de tempo de derrubar, e
tempo de edificar; tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo
de dançar; tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de
abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; tempo de buscar, e tempo de perder;
tempo de gaurdar, e tempo de lançar fora; tempo de rastar, e tempo de coser;
tempo de estar calado, e tempo de falar; tempo de amar, e tempo de odiar; tempo
de guerra, e tempo de paz.” (Eclesiastes 3:1)
O “Direito achado” nas
ruas pela Defensoria Pública precisa fazer parte do STF
Mônica de Melo
Faz-se necessária a
possibilidade tornar visíveis os milhares de vulneráveis, contribuindo para uma
visão crítica e emancipatória do Direito e da Justiça.
30/8/2023
Vai Maria cansada de
apanhar
Não sou pedra, mas
posso endurecer
Vai José se arrastar
pela cidade
Não sou lenha, mas eu
incendeio
(...)
Já sei pra onde vou
Eu vou sentir o calor
da rua
Já sei pra onde vou
Eu vou sentir o calor
da rua
Já sei pra onde vou
Eu vou sentir o calor
da rua
(letra da música Calor
da Rua de Francisco, El Hombre)
No sistema de Justiça
brasileiro são as Defensorias Públicas que “acham o Direito”1 pelas ruas, nas
quebradas, nas comunidades, nas encruzilhadas. Não, não se trata de uma
metáfora. A Defensoria Pública é a instituição responsável por garantir o
direito constitucional fundamental de acesso à Justiça da população vulnerável
brasileira. A Constituição Federal de 1988 optou por um modelo público de
assistência jurídica integral. Desde então as Defensorias Públicas Federais e
estaduais foram sendo instituídas nos moldes constitucionais e buscam seu
fortalecimento e expansão de modo que o direito tenha cobertura universal, como
ocorre com a saúde e a educação, pois são essas instituições que concretizam o direito
de garantir todos os demais direitos. As Defensorias Públicas foram criadas sob
a ótica da assistência jurídica integral, o que significa ir além do acesso ao
Poder Judiciário, para prever, dentre suas atribuições, orientação jurídica,
atendimento extrajudicial, mediação de conflitos, Justiça restaurativa,
educação em direitos, atendimento multidisciplinar, defesa individual e
coletiva de direitos humanos interna e internacionalmente. Essas jovens
instituições do Sistema de Justiça são as mais democráticas, com ouvidorias
externas e forte participação popular em seus planejamentos de atuação.
O II mapa das
Defensorias Públicas Estaduais e Distrital no Brasil2 mostra que em 2019/2020
há presença das Defensorias Públicas em cerca de 42% do total de comarcas no
Brasil, ou seja, presença em menos da metade. Locais em que estão presentes
juízes e promotores, mas não defensores públicos. Segundo a pesquisa há 9.043
cargos existentes e 6.027 providos. Considerando população de baixa renda como
aquela que recebe até 3 salários-mínimos observa-se que praticamente todas as
unidades da federação apresentam déficit de defensores, considerada a proporção
de 1 para cada 10 mil ou 1 para cada 15 mil necessitados. A pesquisa nacional
da defensoria pública 2023 realizada pelo Condege - Conselho Nacional de
Defensoras e Defensores Públicos-Gerais3 corrobora o déficit encontrado, pois
revela que considerando o quantitativo de Defensores (as) Públicos (as), no
Brasil há um defensor(a) público(a) para cada 31.140 habitantes. Levando em
consideração exclusivamente a população economicamente vulnerável, no país há
um defensor(a) público(a) para cada 27.401 habitantes com renda de até três
salários-mínimos. Esses dados se revelam importantes na medida em que
demonstram, ao lado de outros dados de desigualdade social, no Brasil, que a
exclusão social também alcança o acesso à Justiça. É o contato permanente com
essa realidade que faz com que os (as) defensores(as) públicos levem e defendam
no Supremo Tribunal questões que afetam especificamente a população vulnerável.
No HC 208.240,
impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo, em que houve condenação de 7
anos, 11 meses e 8 dias, em regime fechado, por acusação de tráfico de drogas,
discute-se além do princípio da insignificância em razão da quantidade
irrisória de droga apreendida (1,53 gramas), a ilicitude e necessidade de
anulação da prova obtida por tratar-se de mais um caso em que ocorreu o que se
chama de “perfilamento racial”.4 Pesquisas comprovam que o racismo estrutural e
institucional leva a polícia brasileira a abordar, revistar e verificar, de
forma desproporcional, por vezes abusiva, pessoas pretas e pardas. Trata-se da
“pele alva” de um sistema de Justiça majoritariamente branco e masculino
selecionando a “pele alvo” de milhares de jovens negros. Encarceramento em
massa da juventude negra, uma das facetas perversas da “guerra às drogas”. Uma
das formas contemporâneas da escravização que segrega a população negra jovem
nos presídios brasileiros retirando-lhes qualquer perspectiva de futuro. No
caso concreto ambos os policiais, que resolveram abordar e realizar a revista
pessoal, ressaltaram, primeiramente, a cor negra do indivíduo, sem que nenhuma
outra característica pessoal fosse levada em consideração em seus depoimentos.
Não houve ainda o término do julgamento.
Outra discussão
importante no STF, se considerarmos o percentual de pessoas encarceradas em
razão da lei 11.343/06 (lei de drogas), em sua maioria pretas, pobres e de
baixa escolarização, é a que se trava no âmbito do RE 635659, apresentado
também pela Defensoria Pública de São Paulo, ao buscar que seja considerado
inconstitucional o art. 28 da lei 11.343/06 que se refere ao porte de drogas
para consumo próprio. Nesse caso concreto foi encontrado com um preso, no
estabelecimento prisional, 3 gramas de maconha. Os presos por tráfico
representariam cerca de 28% da população carcerária e muitos presos com
pequenas quantidades e classificados como traficantes e não usuários poderiam
ser beneficiados. Mais uma vez os beneficiados seriam as pessoas negras que
constituem a maior parte da população carcerária. Por ora há cinco votos pela
inconstitucionalidade da criminalização do porte de maconha para consumo
próprio e um voto que considera válida a previsão do art. 28 da lei de drogas
(lei 11.343/06).
Decisão histórica foi a
obtida pela Defensoria Pública do Espírito Santo no habeas corpus coletivo
143.988 em favor de adolescentes privados de liberdade em uma unidade
socioeducativa na cidade de Linhares/ES. A superlotação de presídios de adultos
já é algo corrente no Brasil e tido por “um estado de coisas inconstitucional”.
Não podemos compactuar com a mesma situação para pessoas ainda em
desenvolvimento e que por força da Constituição tem prioridade absoluta e proteção
integral. Na decisão se impediu que as unidades funcionem com mais de 100% de
lotação máxima, de modo que para entrar um adolescente no sistema outro
necessariamente tem que sair.
São alguns poucos
exemplos de atuação das Defensorias Públicas, diante de milhares, em prol de
pessoas à margem da sociedade, dos indesejáveis, dos subalternos, daquelas e
daqueles que desafiam diariamente os defensores públicos a repensar o Direito,
os códigos, as leis a partir das dores e sofrimentos dos que não costumam ter voz.
Tampouco há quem os queira ouvir e admitir sua existência. É um Direito à
serviço da existência e resistência de vidas que costuma ser descartadas pela
maioria da sociedade.
A invisibilidade das
populações subalternizadas por um sistema social e econômico que privilegia a
existência das camadas mais privilegiadas da sociedade se reflete nas decisões
tomadas pelo STF e no posicionamento de seus ministros. Caso paradigmático
neste sentido é o que envolve as multas decorrentes de condenações criminais. Desde
1996 houve alteração no art. 51 do CP para que o não pagamento de multa penal
não implicasse em prisão, tornando-a dívida de valor. Disputa de anos em torno
da configuração jurídica das multas penais em torno de sua natureza penal ou de
dívida de valor, da competência para sua cobrança e execução, se do ministério
público ou procuradoria da fazenda e do rito processual a ser seguido tomou
outros contornos a partir de casos criminais notórios de competência originária
do STF como o “mensalão”.
No julgamento da ADI
3150 que teve por foco o pedido de interpretação conforme à Constituição do
art. 51 do CP para reafirmar o caráter penal das multas e a competência do
ministério público para sua execução, observa-se que a decisão que se tomou ali
tinha como preocupação central a chamada “criminalidade econômica”, os “crimes
de colarinho branco”, além da pretensão de “arrumar” o sistema punitivo. Como
disse nos autos um dos ministros, “como tenho sustentado em diversas
manifestações, o sistema punitivo no Brasil encontra-se desarrumado. E cabe ao
Supremo Tribunal Federal, nos limites de sua competência, contribuir para sua
rearrumação. (...). Em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa há
de desempenhar papel proeminente. Mais até do que a pena de prisão – que, nas
condições atuais, é relativamente breve e não é capaz de promover a
ressocialização –, cabe à multa o papel retributivo e preventivo geral da pena,
desestimulando, no próprio infrator ou em infratores potenciais, a conduta
estigmatizada pela legislação penal. Por essa razão, sustentei no julgamento da
Ação Penal 470 que a multa deveria ser fixada com seriedade, em parâmetros
razoáveis, e que seu pagamento fosse efetivamente exigido”.
Ou seja, mirou-se uma
determinada classe social na decisão, não obstante, a eficácia erga omnes das
decisões em controle concentrado, mas os atingidos em cheio pela decisão foram
e estão sendo outros: os do “andar de baixo”. Aqueles que lotam os presídios
brasileiros, aqueles que devem multas altíssimas em face da lei de drogas de
2006, aqueles que devendo, muitas vezes, valores até bem baixos, mas que
passaram a ser executados pelo Ministério Público de forma massiva nas varas de
execução penal, com penhora indiscriminada de valores encontrados em conta
corrente, que por vezes são oriundos do trabalho informal, dos “bicos”, de
auxílios do governo Federal, com consequências que impossibilitam a
documentação dos egressos, pois tem havido implicações na obtenção do título de
eleitor e regularização na Justiça Eleitoral.
Enquanto sociedade
almejamos que os egressos do sistema penal saiam “ressocializados” e procurem
emprego e trabalho lícitos. Mas, ao mesmo tempo impedimos a regularização de
sua documentação pelo não pagamento de multa penal, sendo que já cumpriram a privação
de liberdade. É o que podemos chamar de “pena perpetua de fato”, já que a de
direito estaria vedada pela Constituição Federal de 1988. Há um percentual
substancial de egressos do sistema penal na população em situação de rua, da
qual foi subtraída todos os direitos de condições mínimas de sobrevivência.
Parece que a intenção é que assim continuem ao se colocar mais um obstáculo na
possibilidade, já remota, de conseguirem trabalho.
Começamos falando das
ruas e terminamos nelas. As ruas não costumam ser frequentadas pelas demais
instituições do sistema de Justiça. A inafastabilidade do controle
jurisdicional depende de provocação daquelas e daqueles que tem seus direitos
violados. As Defensorias Públicas têm buscado cumprir seu papel de levar e defender
esse Direito achado nas ruas no STF. Faz-se necessária a possibilidade de lá
estar, compondo a Corte, tornando visíveis os milhares de vulneráveis,
contribuindo para uma visão crítica e emancipatória do Direito e da Justiça.
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1 O “Direito Achado na
Rua” surge em Brasília a partir de projeto idealizado pelos professores Roberto
Lyra Filho, José Geraldo Sousa Junior e Alexandre Bernardino Costa na década de
80. Alia teoria, prática e militância no Direito na busca de emancipação
social. Dialoga diretamente com os problemas enfrentados pelos grupos em
situação de vulnerabilidade.
2 Disponível em ,
acesso em 24 ago. 2023.
3 Disponível em ,
acesso em 24 ago. 2023.
4 Ver a esse respeito
documento do Alto Comissariado das Nações Unidas da ONU: “Prevenindo e
combatendo o perfilamento racial de pessoas afrodescendentes: boas práticas e
desafios”. Disponível em , acesso em 25 ago. 2023.
Mônica de Melo
Mônica de Melo
Defensora Pública do
Estado de São Paulo. Professora Doutora de Direito Constitucional da PUC-SP
onde integra o Grupo de Pesquisa "Direito, Discriminação de Gênero e
Igualdade". Integrante da Coalizão Nacional de Mulheres, da ColetivA
Mulheres Defensoras Públicas do Brasil e do Estado de São Paulo, da Associação
de Mulheres de Carreira Jurídica de São Paulo e do Fórum Justiça.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Na sala da justiça. Contos. Gabriela Jardon. Belo Horizonte: Caravana, 2023, 52 p.
Conforme a descrição da obra, na página da editora, Na sala da justiça, de Gabriela Jardon, traz os meandros da literatura e o dia a dia dos tribunais, a condição humana posta ao seu limite. É uma vibrante série de contos, escritos por uma juíza de direito cuja inteligência e sensibilidade não cabem no enquadramento asséptico dos processos e das audiências judiciais.
Mas mesmo nesse espaço contido que é o procedimento judicial, Gabriela já se revelara por inteiro, trazendo sutileza e elegância ao seu ofício e, nesse ofício, na expressão de uma justiça poética para aludir à caracterização proposta por Martha Nussbaun, para designar o juiz sensível, aquele que sabe se colocar no lugar do outro. Deixei essa condição mais detidamente assinalada em recensão sobre a obra da filósofa do direito da Universidade de Chicago – Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica. Martha Nussbaun. Barcelona, Buenos Aires, Mexico DF, Santiago: Editorial Andrés Bello, 1997 – publicada aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/justicia-poetica-la-imaginacion-literaria-y-la-vida-publica/).
Essa perspectiva em Gabriela pode ser localizada em sua dissertação de mestrado que tive a satisfação de orientar – O Direito de Escuta das Partes Processuais, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares. Brasília: Universidade de Brasília, 2021. Confira-se minha resenha em http://estadodedireito.com.br/o-direito-de-escuta-das-partes-processuais/. Numa atitude judicante que embala com sutileza, elegância e ritmo a sua escrita já se mostra marcantemente literária além de metafórica para tornar disponíveis à cognição mediações raras nesse ofício.
Tudo para vencer o obstáculo de um sistema e de um agente (o juiz), inaptos para o escutar: “provas de fatos, seguidas da subsunção silogística fato-norma-jurisprudência, são, pois, o centro insistente das práticas de trabalho da magistratura – e não deixa de ser curioso como, assim, vão se derretendo os sentidos originários da audiência e da sentença, etimologicamente, “atenção dada a quem fala” e “ato de sentir”, respectivamente. O juiz e a juíza brasileiros/as do século XXI, realizam centenas de audiências e exaram milhares de sentenças ao ano, mas, na maioria das vezes, fazem audiências sem ouvir e, por isso, acabam emitindo sentenças sem sentir” (p. 178, da Dissertação).
Na resenha, sob essa perspectiva, chego a supor que a Autora ensaia um manual de uso atenta a não permanecer no plano abstrato do desejo, mas a formular desenhos operativos que institucionalizem a escuta. Ela projeta procedimentos e diretrizes de formação. Tem educação esmerada para conhecer os entraves funcionais, burocráticos, regulamentares e até subjetivos. Leu Anatole France, leu Tolstoi, lei Proust, leu Balzac. Transcreveu páginas dramáticas dos três primeiros. Pensa como Balzac:
“Quando um homem cai nas mãos da Justiça, deixa de ser um ser moral, mas apenas uma questão de direito ou de fato, como aos olhos dos estatísticos se transforma um número” (BALZAC, Honoré de. O Coronel Chabert, Otto Pierre, Anatole France, pensou no juiz. Poderia também fazê-lo quando o grande escritor olha com os olhos do jurisdicionado (Da Submissão de Crainquebille às Leis da República. Crainquebille in FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens, Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1978): “Crainquebille sentou-se na sua banqueta acorrentada, cheio de espanto e admiração. Ele mesmo não estava bem certo de que os juízes se houvessem enganado. O tribunal escondera-lhe as suas íntimas fraquezas sob a majestade das formas. Ele não podia acreditar que pudesse ter razão contra magistrados cujas razões não compreendera: era-lhe impossível conceber que alguma coisa claudicasse numa tão bela cerimônia”.
É instigante surpreender esse trânsito epistemológico enredado na interseção de linguagens, da arte, da ciência, da filosofia, do direito tão natural em Gabriela. Confirmando o que propõe o professor Eduardo Lourenço de Coimbra (A Mitologia da Saudade), que real pode ser apreendido por muitas linguagens. Aliás, tomando uma das referências de Gabriela – Anatole France – que vai lhe emprestar o tema de uma de suas crônicas – A lei é morta, o juiz é vivo – pode-se imediatamente configurar o Carrefour de suas múltiplas manifestações de sua potência de expressão.
Penso em Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem. Textos Danielle Martins, Gabriela Jardon, Mariana Carvalho. Fotografias Wanessa Montoril. Brasília: Edição das Autoras/Athalai Gráfica e Editora, 2019, obra que reúne contos de mulheres que atuam no mundo do Direito. Ali vai aparecer Gabriela Jardon e suas crônicas, dando vida a leis inanimadas: “Pela primeira vez na vida, fiz uma inspeção judicial. Inspeção judicial é um meio de prova previsto no Código de Processo Civil e praticamente morto. Este nosso novo mundo de números, estatísticas, massificação de processos, pressas e agonias não deixou mais espaço para que um juiz, na dúvida sobre alguma coisa, pegue seu bocadinho de tempo, desloque-se, vá até o local do problema, veja com seus próprios olhos, roce sua pele e sinta o cheiro das controvérsias, não se contentando só com as suas tão desconfiáveis narrativas. Pois outro dia fui. Dois prédios geminados de quitinetes nas setecentos da Asa Norte. Os moradores, com os anos, foram invadindo aqui, deixando o vizinho entrar ali, mudando as paredes internas, de modo que existe lá hoje o estranhíssimo fenômeno arquitetônico de haver quitinetes localizadas metade em um prédio e metade em outro. Um dos edifícios foi a leilão e arrematado. O arrematante quer que os moradores saiam do imóvel adquirido por ele. Devemos precisar então, exatamente, onde cada quitinete se localiza. Nomeei um perito engenheiro civil e ele orçou alto a perícia. As quitinetes são simplórias, as pessoas envolvidas não têm o dinheiro e estávamos nesse impasse. Sabe de uma coisa? Vou lá com minha trena – eu sempre gostei de uma reforma. Em 15 minutos, tive todas as respostas que precisava e voltei para a vara com uma noção do que estava em jogo poucas vezes alcançada por mim em outro processo”.
É esta juíza sensível que chega à pós-graduação em direitos humanos na UnB, depois de já ter completado um máster sobre o tema em Essex (Reino Unido) para abrir os debates sobre a escuta profunda tão necessária nos espaços de mediação institucional: “Não há dúvida de que o Judiciário tradicional, calcado quase que apenas na operação pretensamente matemática da subsunção do fato à norma estatal, dá conta, se é mesmo que dá, de uma parcela ínfima do que pode se entender por direito e distribuição de justiça. É urgente que se alarguem as possibilidades, que se trabalhe com outras racionalidades e caminhos de formação de decisão. Não se está falando, necessariamente, de direito alternativo ou de ativismo judicial. Sem descartá-los, a apologia a estas inclinações também seria encerrar o fenômeno do direito e da justiça em quadrantes menores do que sua real natureza. O Judiciário precisa se fazer permeável aos fenômenos sociais de uma maneira ampla, aguçando sua escuta e levando em consideração em seus processos decisórios argumentos que não sejam estritamente os do direito positivado”. (Gabriela Jardon, Um “tribunal achado na rua”: seria possível? Seria útil? Ou não passa de uma quimera?. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, v. 1 n. 2 (2019): Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras).
Aqui vemos os contos selecionados como expressão literária. Não é um acontecimento inédito como mostrei acima. Gabriela já debutara em coluna de um jornal de Brasília – https://www.metropoles.com/author/gabriela-jardon. Mas os que a conhecemos sabemos que ela é cronista em tempo integral, literalizando o seu alredor. Toda a sua estada recente em Portugal onde finaliza doutoramento é comunicada nessa forma literária. É um verdadeiro diário de viagem (ainda espero uma carta de viagem para a seção Cartas de Viagem do Blog Diários Lyrianos, cartas do Douro ou do Mondego). Mas seu próprio cotidiano é assim vivenciado. Quem passear em seu perfil no facebook poderá encontrar perolas de seu modo de perceber o mundo e o outro. Como essa que colhi deslumbrado:
Ela me pediu pra passar batom. “Mas vai melecar a chupeta”, disse eu. Olhou pra mim, olhou pra chupeta, resolveu: “não vou mais usar chupeta”.
Varada pelo tiro do tempo (como ocorre de sentir tanto), fiquei ali, de mão boba no ar, abanando chupetas, fraldas, mamadeiras e infinitos objetos e desobjetos passados.
E aí corri, corri depressa, tentando não olhar muito pra trás, a colocar os meus bebês no berço úmido das memórias sagradas da vida da gente. Nesse baú, o mais antigo, doce e doído de todos. E ali passar a niná-los ao me ninar também (como ocorre de precisar tanto).
Esse poderia ser um conto de um livro futuro: No meu berçário. Assim como agora ela nos brinda com esse Na Sala de Espera. Além de A lei é morta, o juiz é vivo, vamos encontrar: Quer voe, quer julgue; Dona Carlota; Kátia; Bola de Cristal; Seu Daniel; Getúlio; Lindo é pouco; Mais pai, impossível; Revéillon; Seu Jarbas; Rotina, só que não.
Com este último conto, fecho a resenha, e pareço compreender tudo. Talvez como o juiz de Tostói (A morte de Iván Ilitch): “Não sabia como eu o sei agora”. Com Gabriela, simplesmente Gabriela, também se possa dizer, “É trabalho.É rotina. Mas às vezes não é nada disso”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.5
domingo, 27 de agosto de 2023
Participação Popular Consultiva no Conselho de Defensoria Pública
por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DFem
Chama a atenção no debate público hoje no Brasil, a intensa mobilização de opinião pública para discutir critérios, perfis e mentalidades que venham a constituir a composição dos órgãos e instituições que formam o sistema de justiça brasileiro. Nesse momento, o debate se concentra na mobilização para vaga no STF em face de aposentadoria próxima de uma de suas duas ministras.
É natural esse debate tendo em vista o momento de retomada democrática, depois de um surto desdemocrático e desconstituinte, de feição fascista (o termo alargado conforme Umberto Eco que fala de fascismo eterno em seguida a caracterizar essa forma de exercício autoritário de governo e eu diria, de organização social, na modelagem, conforme Boaventura de Sousa Santos de fascismo societal), durante o qual, por conta de uma intervenção desastrosa do aparato jurídico, se generalizou a expressão lawfare, para designar o uso jurídico do sistema de justiça numa ação política para conter e vencer inimigos.
Ocorre que esse debate, até quando se dá por meio de mobilizações progressistas, democráticas, civilizadas, se reveste, no Brasil, ainda enredado nas recalcitrâncias decoloniais, em meio as injunções racistas, patriarcais e patrimonialistas que afetam a nossa formação econômico-social-política e jurídica.
Por isso é ainda um debate embalado em questões de classe, de raça, de gênero, corporativas, alusivo a elementos corporativos, seccionais, estamentais. Pode até ser avançado sobre orientar as escolhas de gênero, raça, ou de classe; elaborar critérios sociais de desempenho, biografias marcadas por lealdade a temas emancipatórios, socialmente relevantes, porém, fundamentalmente à luz de um debate conduzido por representações de elites intelectuais, profissionais, funcionais e políticas no sentido liberal dos termos.
Não há ressonância para um debate aberto no espaço público do social no sentido do protagonismo participativo que foi desenhado pelo esforço constituinte que levou à elaboração da Constituição Cidadã, a partir de 1988, que remete à participação plena da sociedade aberta e horizontalmente ativa.
Nesse espaço sistêmico da Justiça, apenas a Defensoria Pública pensada nos termos da Constituição de 1988, é a instituição que mais avançou nessa direção, teórica, política e funcionalmente.
Em entrevista que concedi ao Boletim Forum DPU da Escola Superior da Defensoria Pública, visando a incutir esse fundamento na formação dos quadros da instituição, como projeto e como programa, acentuei esse carisma (Defensoria Pública e Acesso à Justiça – Forum DPU V.3 N.11 ISSN: 2526-9828 Ano: 2017 – https://www.dpu.def.br/enadpu/forumdpu/edicao-11)
À pergunta sobre o potencial da DPU como instituição voltada para a garantia do acesso à justiça e quais os principais desafios a serem enfrentados pela DPU para a concretização deste potencial? Respondi não ser por acaso que, nas mobilizações para a institucionalização de defensorias, o social organizado tenha sido um fator determinante para a sua criação. Pense-se, por exemplo, o caso da Defensoria de Sâo Paulo para cuja institucionalização muito contribuiu a mobilização da sociedade civil. Por isso mesmo, em sua estrutura, é muito pertinente a atividade de sua Ouvidoria Externa, eleita, que traduz de alguma maneira o sentido de participação que nesse sistema o princípio democrático alcançou. Veja-se a esse respeito, a belíssima tese de doutoramento de Élida Lauris dos Santos, defendida em Coimbra, sob orientação de Boaventura de Sousa Santos (tive o privilégio de aprendizado ao participar da banca): “Acesso para quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece: dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas do acesso à justiça no Brasil e em Portugal. Coimbra: [s.n.], 2013 ”.
Logo, na sequência, a questão sobre o potencial do processo de coletivização judicial para a garantia do acesso à justiça e quais riscos este processo pode apresentar? Minha resposta: já não se trata de potencial, mas de constatação de seu valor para a ampliação de acessos à Justiça se considerarmos as formas coletivas de abreviar esse acesso e de coletivizar as pretensões. Pense-se nas estratégias ampliadas de subjetivação ativa das ações de inconstitucionalidade, na formação de juízos de convencimento a partir da dinâmica de audiências públicas, de admissibilidade de terceiros não diretamente parte em causas (amicuscuriae), nas gestões para construção de ajustes de conduta e outras modalidades de pactuação para constituir obrigações e responsabilidades mediadas pela estrutura administrativo-judicial. O risco é o da judicialização da política e do ativismo decisionista, não confundidos com a competência alargada de aplicação construtiva de soluções judiciais, situações que têm revelado uma indevida substituição de razões do mediador (juízes, cortes judiciais, órgãos do sistema de justiça e do ministério público) em lugar das disposições legítimas de entendimentos razoáveis construídos pela participação ativa de coletividades e sujeitos coletivos (mecanismos de consulta prévia e informada, expertises sociais etc).
Assim, considero que a institucionalização das ouvidorias externas no corpo das defensorias é uma resposta contundente na direção da democratização do acesso à justiça e do debate que não pode ficar restrito corporativamente aos juristas. Por isso deve ser saudada a Lei Federal de 2009 que determina este formato de Ouvidoria Externa de Defensoria, mas só 17 das 27 defensorias cumprem a lei, que são: Acre, Rondônia, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco, Paraíba, Bahia, Mato Grosso, Distrito Federal, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Tratei em argumentos largos sobre esse processo ao participar da edição do livro “Defensoria Pública e a Tutela Estratégica dos Coletivamente Vulnerabilizados. (Orgs): Lucas Diz Simões, Flávia Marcelle Torres Ferreira de Morais, Diego Escobar Francisquini. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019” (sobre esse trabalho ver a minha recensão em http://estadodedireito.com.br/defensoria-publica-e-a-tutela-estrategica-dos-coletivamente-vulnerabilizados/.
Numa síntese apertada, o que sustento é que como uma espécie de apanhado histórico entre as estratégias de luta social e a opacidade da institucionalidade de justiça, sobretudo em relação às violações e à agenda política de direitos carregada e instituída na práxis dos movimentos sociais populares, surge no Brasil o que viria a ser reconhecida como a assessoria jurídica e advocacia popular, uma espécie de subcampo político-jurídico no interior da advocacia brasileira, orientado por princípios humanitários, pedagógicos e políticos de compromisso e o diálogo com comunidades e movimentos de base organizados em torno da luta por direitos (como sindicatos, comunidades e movimentos de luta pela terra), e incumbidos de uma tarefa histórica de tradução jurídica da luta política por direitos .
Quando se analisa o desenho institucional conferido à Defensoria, verifica-se a presença de fortes elementos democratizantes, que aproximam a instituição e sua prática a esse subcampo político-jurídico. Presença esta que é notada desde a constitucionalização de sua função essencial à justiça, passando pela natureza dos direitos e sujeitos que tutela e serve, até alcançar a sua arquitetura institucional.
A Defensoria Pública é uma instituição que figura como um dos principais atores para o alargamento e a democratização do acesso à justiça no Brasil. Comumente associada ao exercício de uma de suas funções constitucionais, a saber, a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (CF/88, artigo 5º, inciso LXXIV) – ou, atualmente, na tutela de grupos socialmente vulneráveis –, suas funções institucionais não se reduzem à dimensão da assistência judicial, mas, antes, a projetam como ator qualificado para a democratização da justiça no Brasil.
Isso advém, principalmente, do processo de institucionalização do órgão, que inova ao ser introduzido em texto constitucional – atuação de constituinte originário que, posteriormente, será agregada por diversos outros países latino-americanos – como “verdadeiro modelo organizacional” a ser “assumido efetivamente pelo Estado”, prestigiando uma concepção ampla de acesso à justiça, que situa seus esforços na diminuição das desigualdades sociais, concretizadas em contundentes e rotineiras violações interpenetrantes de estruturas monetárias, raciais, sexuais, locais, identitárias, culturais, enfim, de um complexo de variantes discriminatórios que, na realidade fática, complexificam as dificuldades de efetivar acesso à proteção de direitos essenciais para o exercício básico da cidadania.
Por isso é notável a iniciativa da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, por promoção de sua Ouvidora Externa Marina Ramos Dermann – (o Ouvidor atual Rodrigo de Medeiros, originado dos quadros da advocacia popular de movimentos sociais, foi nomeado depois de escrutínio do Conselho do órgão, avalisado pornota de apoio de 155 professores/as e acadêmicos/as de todo o país, carta de apoio de movimentos e entidades com 183 movimentos/entidades sendo mais de 120 do RS https://mst.org.br/wp-content/uploads/2023/03/Carta-Aberta-Apoio-a-Rodrigo-de-Medeiros-Para-Ouvidoria-da-DPE_RS-3.pdf, traduzindo a melhor forma de corresponder a um dever funcional tão democraticamente legitimado) – de constituição de um Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, como já realizado por outras Defensorias Públicas no País (SP, PR, BA e AC) e Defensoria Pública da União.
A promoção, que precisa ainda ser pautada para deliberação – já com alguma demora – do Conselho Superior da Defensoria, corresponde às expectativas de inúmeras expressões do social que já enviaram apoio, no sentido de que“a criação de um conselho consultivo pela ouvidoria da DPE/RS semostra como um importante espaço de interlocução permanente entre a referidainstituição e a sociedade civil, sobretudo nas temáticas envolvendo o campo da saúde, assistência, educação edireitos humanos”.
Do que se trata, em suma, é tornar possível a aproximação do direito à realidade social, proporcionando o apoio à efetivação dos direitos dos grupos subalternizados, seja através de mecanismos institucionais, judiciais ou por mecanismos extrajudiciais, políticos e de conscientização. A aposta ultrapassa aspectos formais, do repertório jurídico tradicional e tenta compreender a realidade diante de sua complexidade, buscando, assim, ofertar respostas também complexas e abrangentes.
Conforme os pressupostos de O Direito Achado na Rua, a Defensoria Pública, em sua expressão popular, torna-se estratégia importante para garantir o acesso ao direito e à justiça das cidadãs e dos cidadãos, especialmente os subalternizados, na medida em que atua para que estes conheçam seus direitos e não se resignem em relação às suas violações, bem como tenham condições de superar os obstáculos econômicos, sociais e culturais a esse acesso.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
quarta-feira, 23 de agosto de 2023
Violência de gênero – aportes conceituais e estratégias de enfrentamento
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Violência de gênero – aportes conceituais e estratégias de enfrentamento / Leônia Cavalcante Teixeira, Leonardo José Barreira Danziato, Danielle Maia Cruz, Jerzuí Mendes Tôrres Tomaz, Jean-Luc Gaspard (organizadores.). – Curitiba : CRV, 2022. 248 p. – https://drive.google.com/file/d/1-HOOJXZMViHywizjhbEzPBpD9V41Z5Rr/view
Na apresentação da obra os seus organizadores e organizadoras caracterizam o material nela reunido como Enfrentamentos à Violência de Gênero como uma Ética do Cuidado.
Conforme pode ser encontrado na página da Editora: a obra que contempla as vicissitudes da violência de gênero no coletivo e no singular. Com aportes teóricos multidisciplinares, a psicanálise nos seus litorais ratifica o compromisso ético e político no enfrentamento da violência no cenário contemporâneo a partir da consideração da história da construção das subjetividades no Brasil. Também na página é possível baixar livremente o livro.
Explicam os organizadores e as organizadoras: a “obra é mais um produto oriundo de uma pesquisa intitulada “Violência de gênero no contexto da pandemia do covid-19: uma proposta de intervenção em urgência subjetiva com mulheres em situação de vulnerabilidade e risco” realizada pelo Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividades (LAEpCUS), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR)”.
São apresentadas experiências de enfrentamento à violência de gênero, recuperadas por pesquisas acadêmicas e registros de práticas institucionais. “Obviamente que – esclarecem – os saberes envolvidos e produzidos por essas experiências devem servir como aportes conceituais que nos permitam pensar, enfrentar e dissolver as práticas e os discursos que sustentam esse fenômeno devastador que é a violência de gênero”.
O livro está organizado em capítulos e seções, de modo que a obra compreende, conforme o Sumário com o seguinte conteúdo:
APRESENTAÇÃO
ENFRENTAMENTOS À VIOLÊNCIA DE GÊNERO COMO UMA ÉTICA DO CUIDADO
Leônia Cavalcante Teixeira
Leonardo José Barreira Danziato
Danielle Maia Cruz
Jerzuí Mendes Tôrres Tomaz
Jean-Luc Gaspard
1a SEÇÃO
VIOLÊNCIA DE GÊNERO E INSTITUIÇÕES
CAPÍTULO 1
DECLINAÇÕES DAS VIOLÊNCIAS E SEUS ENFRENTAMENTOS: crônica de um (des)caso Cristina Moreira Marcos
Edwiges de Oliveira Neves
Bruna Hallak
CAPÍTULO 2
PARADOXOS NA ESCUTA PSICANALÍTICA DE MULHERES EM SITUAÇÃO DERUA
Sandra Djambolakdjian Torossian
Luísa Susin dos Santos
Daniel Araujo dos Santos
CAPÍTULO 3
PSICANÁLISE E JUSTIÇA: articulações sobre uma práxis que se ocupa do imundo
Aline Lima Tavares
Sonia Alberti
2a SEÇÃO
ESTRATÉGIAS SUBJETIVAS, SOCIOCULTURAIS E POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO
CAPÍTULO 4
A CONSTRUÇÃO DE UM COLETIVO DE MULHERES QUE SOFREM VIOLÊNCIA DE GÊNERO: uma escolha política pela vida Cláudia Maria Perrone
Rose Gurski
Gabriela Gomes da Silva
Flávia Tridapalli Buechler
CAPÍTULO 5
RECONHECIMENTO COMO CATEGORIA DE COIBIÇÃO DA VIOLÊNCIA
Rafael Kalaf Cossi
CAPÍTULO 6
COMO A VIOLÊNCIA DE GÊNERO APARECE NO MATERIAL ONÍRICO E NOS PROCESSOS ASSOCIATIVOS EM UM GRUPO DE PARTILHA DE SONHOS
Jaquelina Maria Imbrizi
Jussara de Souza Silva
Gabriela Corrêa Ramos
Luísa Segalla de Carvalho
Juliana Teixeira Gomes
Raquel Baptista Spaziani
CAPÍTULO 7
INSCRIÇÕES SINGULARES E O ESPAÇO DE ESCUTA COMO FORMA DE ELUCIDAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER
Leonardo Danziato
Gabriela Ferreira Barbosa
Victor Temoteo Pinto
Luciana Ribeiro Lira
Ana Gabriela Braga Gonçalves Torres
João Pedro Almeida Bezerra
Bruna Estrela Andrade Braga Rocha
3a SEÇÃO
VIOLÊNCIAS DE GÊNERO, SEXUALIDADE E PATRIARCALISMO
CAPÍTULO 8
A OUTRA: o sujeito não universal do liberalismo
Ecila Meneses
CAPÍTULO 9
“GÊNERO LOCAL”: retratos da história das mulheres no Ceará e sua alta intensidade patriarcal
Daniele Ribeiro Alves
Antônio Cristian Saraiva Paiva
CAPÍTULO 10
“A VIOLÊNCIA CONTRA A VAGINA É DISSEMINADA NO
COTIDIANO”: uma análise dos impactos da violência de gênero na autopercepção corporal e sexual de mulheres cis
Marcelle Jacinto da Silva
Antônio Cristian Saraiva Paiva
CAPÍTULO 11
“DORMINDO COM O INIMIGO”: violência de gênero e disponibilidade psíquica materna
Ângela Sousa de Carvalho
Karla Patrícia Holanda Martins
4a SEÇÃO
RACISMO, VIOLÊNCIAS DE GÊNERO E PERSPECTIVAS DECOLONIAIS
CAPÍTULO 12
VICISSITUDES DOS ESTUDOS DECOLONIAIS E DE GÊNERO NA CLÍNICA DE URGÊNCIA SUBJETIVA
Jerzuí Mendes Tôrres Tomaz
Danielle Maia Cruz
Leônia Cavalcante Teixeira
Janara Pinheiro Lopes
Luciana Ribeiro Lira
CAPÍTULO 13
O SUJEITO DAS RELAÇÕES ABUSIVAS E SUAS SUJEIÇÕES
Ana Carolina B. Leão Martins
Anne Beatriz Nogueira Saraiva
Vanessa Cunha Santiago
CAPÍTULO 14
MULHERES E TRABALHO DOMÉSTICO NA PANDEMIA RACIALIZADA “À BRASILEIRA”: (re)encontros narrativos Luciana Martins Quixadá
Jaileila de Araújo Menezes
Lisandra Espíndula Moreira
ÍNDICE REMISSIVO SOBRE AS/OS AUTORAS/ES
Entre tantos e tão qualificados ensaios do livro me detenho muito interessado no estudo “A outra: o sujeito não universal do liberalismo” de Ecila Meneses. Nas referências autorais Ecila vem biografada modestamente “atriz, professora e feminista”. Os que a conhecem sabem que essas designações não traduzem a intensidade de seu protagonismo impulsionado pela vis atractiva dessa tripla expressão de seu perfil intelectual, profissional e existencial.
Ativista da articulação de juristas pela democratização do sistema de justiça que se formou para a instalação de um Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia, que depois de se realizar em Porto Alegre, em abril de 2022, permanece em pauta propositiva para radicalizar esse tema fundacional, Ecila se destaca como formuladora e mais que isso, como autora de uma narrativa cultural que proporciona o Carrefour das inteligibilidades necessárias ao mais cabal discernimento dessa questão central no debate atual em curso na sociedade brasileira.
Anote-se, a propósito, a convocação para a Semana Universitária da Universidade de Brasília, em setembro próximo (dia 25), da mesa-redonda “Diálogo para um Novo Sistema de Justiça”, na verdade, mais uma roda-de-conversa com múltiplos participantes, mas que se colocarão em interlocução conduzidos pelo fio condutor da narrativa artístico-cultural, coordenada por Ecila, num evento universitário marcado pelo reconhecimento de que “o futuro é feminino”, já que a temática geral da Semana “está relacionada ao protagonismo feminino na construção de um futuro melhor para o país e para o mundo”.
Também me detive no ensaio de Ecila porque tenho me dedicado ao estudo da titularidade subjetiva dos sujeitos coletivos inscritos nos movimentos sociais, protagonistas do processo instituinte de direitos. Confira-se nesse sentido ao livro que co-organizei O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023. E sobre essa obra a Coluna Lido para Você (Jornal Estado de Direito) http://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/.
No livro Ecila apresenta, em seu capítulo, pontos centrais de debate quando se pensa a luta de mulheres diante do cenário de enfrentamento do avanço do projeto anticivilizatório do Capitalismo Tardio. Chama a atenção sobre a imprecisão da face do novo sujeito histórico-político que surge no século XXI, pois este pode ter diversas orientações sexuais e ser de diversas etnias. Aponta para a importância do olhar atento que se precisa ter para a periferia do mundo, pois este desvela a feição não universal de um sistema que, mesmo diante de crises e calamidades, sempre se portou de forma insensível diante dos vulneráveis. Argumenta, portanto, que o Estado Moderno Liberal Burguês traz, em suas linhas institucionais, uma interdição da mulher como sujeito, sedimentando e perpetuando séculos de desigualdade, de enclausuramento e de hostilidade.
O texto encaminha, desta forma, tal como consta de seu resumo para a edição, “uma discussão que questiona sobre os caminhos de alcance da igualdade universal e a inclusão de todas, todos e todes no sentido de que sejam pessoas vistas como sujeitos detentores de direitos, no qual o respeito ao meio ambiente seja também entendido como um respeito a si mesmo e à condição de um ser da natureza”.
Penso que a contribuição de Ecila para esse tema interpelante constituído pela mediação da categoria sujeito coletivo de de direito, colabora para esclarecer o alcance de uma capacidade instituinte, que se faz apta, como no caso estudado por Ecila as mulheres, a vencer “as interdições perpetuadas por formas seculares de desigualdade, de enclausuramento e de hostilidade” redutoras de um protagonismo transformador.
Essa contribuição se enquadra naquele conjunto de formulações, lembram os meus alunos de graduação da disciplina Pesquisa Jurídica, que preparam um verbete com essa designação para a wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito) no qual eles afirmam com convicção que o sujeito coletivo de direito, por meio dos movimentos sociais, ocupa ambientes antes restritos a classes dominantes, transforma a rua em um novo espaço político, capaz de expressar a vontade popular, e permite a reivindicação e concretização de novos direitos.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.