O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

 

Direitos Humanos e interconstitucionalidade: processos de abertura

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Direitos Humanos e interconstitucionalidade: processos de abertura. Isabella Faustino Alves. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022, 182 p.

 

                           

 

Valho-me da Descrição preparada pela Editora para o lançamento do livro tema deste Lido para Você:

Estamos em diálogo, a Autora e os pesquisadores que formam o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua. Conforme ela diz no fecho de seu livro, observa-se que o diálogo pressuposto tanto pelos direitos humanos, como processos de abertura e interação com outros processos culturais, quanto pela estatalidade aberta postulada pela interconstitucionalidade, entabula-se e renova-se diariamente, em distintas sedes – e ainda que enquanto potencialidade nalgumas searas–, nas quais se instauram demandas por reconhecimento, redistribuição, representação e inclusão, sem as quais não se pode falar em legitimidade democrática.”

A Autora do presente Livro, Isabella Faustino, Defensora Pública do Estado do Tocantins, completa a sua orientadora em Portugal, Paula Veiga, Professora de Direito Constitucional e Direito Internacional Público da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que se incumbiu também do Prefácio, “é uma mulher doce. Conhecemo-la na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal, quando foi nossa Estudante de Mestrado, no ano letivo 2018/19. Mas, tivemos oportunidade de mais de perto privar aquando da orientação da Dissertação de Mestrado, precisamente com o texto, embora pontualmente revisto, que agora o Leitor tem em suas mãos”.

Ela destaca:

Em Direitos Humanos e Interconstitucionalidade: Processos de Abertura, Isabella expressa toda a sua inclinação entre o direito, a sociologia e a filosofia, tentando construir pontes entre estas várias áreas do saber. Dialogando com vários autores, tenta refletir na forma de combate à «segregação social», que resulta, na sua visão, na «divisão do espaço» entre «zonas selvagens» e «zonas civilizadas».

O cosmopolitismo da autora é expresso nas análises que faz da interculturalidade e da interconstitucionalidade e na intransigente defesa de uma cultura de direitos humanos através dos «processos de abertura».

Este é um texto que deve ler-se como uma tentativa esmerada e séria de, neste mundo desigual e complexo, nos focarmos na gramática dos Direitos Humanos. O conjunto diversificado de reflexões que ele contém merecerem, pois, a maior atenção do Leitor num momento em que o mundo se vê confrontado com grandes preocupações, de diversa ordem, sejam as resultantes da pandemia de Covid, sejam as derivadas de um conflito armado ainda sem fim à vista.

 

Remeto ao Sumário da Obra:

INTRODUÇÃO       

CAPÍTULO I – DIREITOS HUMANOS: A ÚLTIMA UTOPIA OU PROCESSOS DE ABERTURA? 

I.1 A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DOS DIREITOS HUMANOS: UMA PROPOSTA DA MODERNIDADE OCIDENTAL    

I.2 A AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: DA FILOSOFIA ÀS CONSTITUIÇÕES 

I.3 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: UMA (TENTATIVA DE) RESPOSTA À INSUFICIÊNCIA   

I.4 DIREITOS HUMANOS COMO PROCESSOS DE ABERTURA: A(S) PERSPECTIVA(S) DA TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS

CAPÍTULO II – DIREITOS HUMANOS E CONSTITUIÇÃO: O ESTADO NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO   

II.1 O ESTADO E A SOBERANIA: UM PARADIGMA EM QUESTÃO

II.2 A INTERAÇÃO ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DIREITO CONSTITUCIONAL NO SÉCULO XX

II.3 ESTADO, CONSTITUIÇÃO E DIREITOS HUMANOS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO

II.4 GLOBALIZAÇÃO E DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI: UM PLANETA SOCIAL?     

CAPÍTULO III – INTERCONSTITUCIONALIDADE E DIREITOS HUMANOS: PROCESSOS DE ABERTURA 

III.1 DESTERRITORIALIZAÇÕES E “SOBREPOSIÇÕES DE ESCALA”: À GUISA DE INTRODUÇÃO       

III.2 INTERCONSTITUCIONALIDADE: CONSTITUIÇÕES E ESPAÇOS COMPARTILHADOS   

III.3 INTERCULTURALIDADE: PLURALISMOS, PLURIVERSALISMO E PLURIDIVERSIDADE           

III.4 PROCESSOS DE ABERTURA: OS DIREITOS HUMANOS COMO FUNDAMENTO DA INTERCONSTITUCIONALIDADE          

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS        

 

            Para a Autora, como está na Introdução:

 

A tríade direito humanos, interconstitucionalidade e teoria da Constituição como ciência da cultura postula uma abordagem do direito e da cultura desde os planos ontológico, axiológico e epistemológico, enquanto operações de mediação, ao passo em que se reporta ao pluralismo como princípio, como dinâmica e como finalidade. É de se acentuar que atua fortemente, na análise, ainda que de modo subjacente, a tensão entre a importância do “conhecimento emancipatório do Estado” para a articulação do binômio realidade/possibilidade e a insuficiência “das construções constitucionais introvertidas assentes no paradigma estatal-nacional” . Na mesma medida, repercute sobre a reflexão a percepção de uma orientação neoliberal no chamado constitucionalismo global – assim como na integração interestatal  (lembrando-se que o atual estágio da União Europeia não encontra semelhanças em outras partes do mundo), ao forçar mudanças nas Constituições estaduais em favor de um “prudencialismo constitucional parafinanceiro” .

Uma vez que a universalidade pretendida pelos direitos humanos tem relação com os ideais modernos de universalização, homogeneização, e racionalização, opta-se por iniciar com uma digressão que contempla a narrativa tida por hegemônica dos direitos humanos, para, na sequência, colacionar a(s) perspectiva(s) da teoria crítica dos direitos humanos. Ressalta-se, neste ponto, que a proposta da interconstitucionalidade como instrumento/modalidade de uma “globalização contra-hegemônica” não importa em menosprezar a importância das instituições modernas, nem em romantizar saberes e práticas não “ocidentalocêntricas” .

Cumpre anotar, quanto à metodologia, a preferência por uma tradução livre das referências oriundas de textos em língua estrangeira, sem deixar de se atentar ao risco de deturpação das palavras do(a) autor(a). A propósito, há, por vezes, em razão do recurso aos termos originais, a utilização do masculino tido por neutro, diante do que se contrapõe, desde já, à sobrerrepresentação do(s) homem(ns) “como um sinônimo do próprio humano” .

Desta feita, contextualizando-se as significativas implicações do processo de globalização sobre o ideal do Estado Social, assim como as circunstâncias que atualmente tensionam a “ordem internacional” construída no pós Segunda Guerra , convida-se, com Canotilho, a “um regresso do direito constitucional à filosofia” e às “estradas da política” , a desafiar um compromisso renovado com  o ideal dos direitos humanos, por meio da “construção dinâmica, conflitiva e constante” de uma “universalidade estendida” a todos/as .

 

A convite de Isabella Faustino escrevi um posfácio a seu livro, fortemente mobilizado pelo seu conteúdo e pela solidariedade ao pensamento engajado da Autora. Nas suas Considerações Finais isso se confirma:

Observa-se que o diálogo pressuposto tanto pelos direitos humanos, como processos de abertura e interação com outros processos culturais, quanto pela estatalidade aberta postulada pela interconstitucionalidade, entabula-se e renova-se diariamente, em distintas sedes – e ainda que enquanto potencialidade nalgumas searas–, nas quais se instauram demandas por reconhecimento, redistribuição, representação  e inclusão, sem as quais não se pode falar em legitimidade democrática .

Enquanto globalização contra-hegemônica – numa acepção de direitos humanos para a qual a transformação e a mudança contemplam tudo o que “social e individualmente somos”  –, a lógica interconstitucional não pode descuidar da “natureza interligada da opressão” e do decorrente reconhecimento de que os indivíduos são afetados por múltiplos sistemas de dominação . Deve emergir, então, como uma racionalidade atenta à relação entre as desigualdades sociais e globais, e às interseções do racismo, da exploração de classe, do sexismo, do nacionalismo e do heterossexismo, dentre outras matrizes de opressão .

Assim, sabendo-se que, quanto mais pluralista for uma sociedade, mais a estima social cria relações simétricas entre seus membros , a interculturalidade e o pluralismo que possibilitam, ao tempo em que são fomentados, pelo diálogo interconstitucional tendem a favorecer uma maior horizontalidade nas relações. E, logo, a cooperar para a realização do direito como “modelo avançado de legítima organização social da liberdade” , indispensável à criação de uma “comunidade política viável”, que tem na solidariedade a “condição necessária e a contribuição coletiva essencial para o bem-estar da liberdade e da diferença” .

No meu posfácio, em conformidade ao que diz a professora Paula Veiga no prefácio, tenho que em Direitos Humanos e Interconstitucionalidade: Processos de Abertura, Isabella expressa toda a sua inclinação entre o direito, a sociologia e a filosofia, tentando construir pontes entre estas várias áreas do saber. Dialogando com vários autores, tenta refletir na forma de combate à «segregação social», que resulta, na sua visão, na «divisão do espaço» entre «zonas selvagens» e «zonas civilizadas». O seu cosmopolitismo é expresso nas análises que faz da interculturalidade e da interconstitucionalidade e na intransigente defesa de uma cultura de direitos humanos através dos «processos de abertura».

Tomando os pressupostos fixados pela Autora para armar a sua abordagem, partilho com ela e com a convocação autoral que sustenta a sua bibliografia, o entendimento de que “uma vez que a universalidade pretendida pelos direitos humanos tem relação com os ideais modernos de universalização, homogeneização, e racionalização”, faz-se necessária uma “narrativa tida por hegemônica dos direitos humanos, para, na sequência, colacionar a(s) perspectiva(s) da teoria crítica dos direitos humanos”, conduzindo, assim, a uma  “proposta da interconstitucionalidade como instrumento/modalidade de uma ‘globalização contra-hegemônica’ não importa em menosprezar a importância das instituições modernas, nem em romantizar saberes e práticas não ‘ocidentalocêntricas’”.

Com a Autora, nessa perspectiva de aberturas interconstitucionais para percorrer caminhos de futuro, entendo que os direitos são a utopia que vislumbra o estado de direito enquanto materialização de direitos humanos. Ainda que o debate sobre os direitos humanos suscite inúmeras controvérsias, somente posso considerá-lo na medida de um duplo desafio: primeiro, avançar para além da teoria liberal e das concepções de justiça e de sociedade aprisionadas nesse paradigma; segundo, conhecer-se e ser reconhecido no diálogo com as lutas sociais por emancipação e dignidade.

Assim, cogitar da teoria e da história dos direitos humanos, especialmente, a partir do Brasil, parece algo pertinente, sobretudo desde uma aproximação que encontra, na América Latina, novos horizontes epistêmicos; no Estado, um complexo agente de garantia e, simultaneamente, de violação de direitos; e nas lutas sociais, o compromisso ético-político que põe em movimento e dá fundamento a uma sociedade livre, justa e solidária.

Juntamente com um parceiro de pesquisa e em co-autoria – refiro-me ao professor Antonio Escrivão Filho, procuramos abrir um debate orientado por esses pressupostos, para interrogar os direitos humanos desde uma perspectiva política, teórica e conceitual, o que fizemos por meio do livro “Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos” (Editora D’Plácido, Belo Horizonte, 2016). Neste livro, aproveitamos uma reflexão por nós acumulada numa sequência de cursos e escritos que realizamos em conjunto em diferentes espaços e auditórios, construindo uma rica interlocução à base de algumas singularidades.

De um lado, recusar a abordagem linear segundo a qual os direitos humanos se manifestam por etapas, como se fossem um suceder de gerações, em espiral evolutiva,  de cujo evolver naturalizado derivassem os direitos individuais, civis e políticos, seguidos dos direitos econômicos, sociais e culturais. Em vez disso, buscar conferir os processos ou as dimensões, designadas num cotidiano de afirmação e de reconhecimento, do qual emergem de modo indivisível, interdependente e integralizados os direitos humanos, manifestados ontologicamente na realidade instituinte e deontologicamente, abrigados num plano de garantias institucionalizado.

De outra parte, rastrear a emergência dos direitos humanos como projeto de sociedade. Vale dizer, na consideração de que não se realizam enquanto expectativas de indivíduos, senão em perspectiva de coletividade, como tarefa cuja concretização se dá em ação de conjunto.

Assim sendo, partimos do debate conceitual dos direitos humanos, para esboçar o panorama do cenário internacional e de sua emergência histórica, no mundo e no Brasil. Para, desse modo, articular o seu percurso no contexto da conquista da democracia, assim designada enquanto protagonismo de movimentos sociais, ao mesmo tempo sujeitos de afirmação e de aquisição dos direitos humanos. Em relevo, pois, a historicidade latino-americana para acentuar a singularidade da questão pós-colonial forte na caracterização de um modo de desenvolvimento que abra ensejo para um constitucionalismo “Achado na Rua”. Problematiza-se, em conseqüência, os modos de conhecer e de realizar os direitos humanos, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos”.

Aliás, com os mesmo interlocutores, Canotilho, Avelãs Nunes, Boaventura de Sousa Santos, Herrera Flores e David Sanches Rubio, do que se trata, em suma, é compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”, referência que a Autora, a partir de outra fonte bibliográfica, insere em sua própria narrativa.

A Autora, consciente dos limites que se põem ao percurso do emancipatório, identifica com Avelãs Nunes, no neoliberalismo, o obstáculo a ultrapassar. Estou de acordo. Aludindo ao mesmo livro do estimado professor e amigo confirmo que ele carrega intrinsecamente as marcas desse sentido de contribuição que um homem de universidade imprime a sua docência e ao movimento de espírito que busca oferecer disposição de entendimento para as questões que desafiam a compreensão das comunidades de inteligência.

Por isso que, o seu livro, se inspira em diálogos inter-universitários, em atenção ao interesse acadêmico, para aferir o significado econômico da política de globalização que marca a fase atual do capitalismo em escala mundial. Isso se identifica bem ao analisar as relações entre neoliberalismo e direitos humanos, matéria de sua intervenção em workshop sobre políticas neoliberais e direitos fundamentais (Onãti, Instituto Internacional de Sociologia Jurídica, julho de 2002), cujas notas se revelam nos textos que compõem a obra Neoliberalismo & Direitos Humanos.

Ele próprio me confirmou essa linha condutora de seu pensamento que bem define sua leitura da realidade. Em entrevista que me concedeu para o Observatório da Constituição e da Democracia – C & D (sobre o C & D conferir minha Coluna Lido para Você: http://bit.ly/2unYJIg), ele demarca esse ângulo forte de sua reflexão e, mais do que isso, expõe a sua visão de Justiça sobre a crítica ao que representa o capitalismo hegemônico. De fato, eu lhe propus a seguinte questão:  uma linha significativa de sua produção científica tem se orientado pela busca de interligação entre economia, globalização e direito. É possível falar-se em justiça social ou em estratégias aceitáveis de desenvolvimento pela mediação das instituições e de políticas forjadas nos parâmetros do capitalismo ainda hegemônico no mundo atual?

Sua resposta não poderia ser mais contundente (C & D n. 21, abril de 2008, pp. 12-13):

É verdade que, sendo jurista de formação (a minha tese de mestrado é sobre um tema de direito societário), fiz o meu doutoramento e toda a subseqüente carreira universitária na área das ciências económicas. E acredito que é importante que se faça investigação e ensino das ciências económicas nas Faculdades de Direito. Na minha Faculdade (a Faculdade de Direito de Coimbra) ensina-se Finanças Públicas e Economia Política desde 1837. Nos dias de hoje, é para mim indiscutível que um bom jurista não pode desconhecer as instituições e os mecanismos da vida económica.

Nos últimos anos, tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática.

Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.

A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenómenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.

É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a actual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis desta civilização fim-da-história.

Assim como esta globalização não é um ‘produto técnico’ deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projecto político levado acabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, assim também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas ‘leis naturais’ do mercado ou da economia, pressupõe um espírito de resistência e um projecto político inspirado em valores e empenhado em objectivos que o ‘mercado’ não reconhece nem é capaz de prosseguir.

Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disto mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.

Pela mesma Editora D’Plácido que acolhe o livro de Isabella Faustino, publicamos, eu e meus colegas Talita Tatiana Dias Rampin, Alberto Carvalho Amaral, organizadores, dois volumes sobre Direitos Humanos & Covid-19. Ambos com Prefácio de Boaventura de Sousa Santos, abrimos uma abertura de interconstitucionalidade, por meio de uma  abordagem crítica da pandemia, a partir do contexto dos vulnerabilizados (vol. 1) e com o protagonismo social em face da pandemia, respostas de nós por nós (vol. 2), quando o governamental colapsa ou assume disposição negacionista, anti-povo, contra a vida, associada aos negócios em subordinação ao econômico e ao mercado.

No prefácio do segundo volume  Boaventura de Sousa Santos dá uma senha para a compreensão desse percurso: “Uma lição que a história pode nos ensinar se estivermos dispostos a aprender, nessa quadra em que a pandemia parece acentuar a deriva da participação da pertença, sobretudo no colapso que os governos autoritários e antipovo revelam, é a que encontramos nas respostas sociais, autogestionadas, comunitárias que os movimentos e organizações sociais estão a oferecer. Neste livro há uma boa mostra dessas respostas, que representam um alento para conter a deriva, extremamente dramática, na realidade brasileira”.

Para nós os Organizadores, a pandemia reforçou o nosso entendimento de que é necessário transformar a realidade a partir da revisão da forma como realizamos nossa reprodução social. Construir outro modelo de sociedade é tarefa imperativa, inclusive, enquanto espécie. E essa transformação, a nosso ver, vem sendo historicamente pautada por sujeitos coletivos de direitos, que formulam e vivenciam outras formas de construção do real, tendo em seu horizonte a preservação da vida.

O primeiro cenário, que inaugura a obra, destaca um importante ator no vetor histórico de transformação social: o sujeito coletivo de direitos. Com Canotilho, pensando outros modos de designar o Direito que se oriente por teorias de sociedade e de justiça, podemos vislumbrar como o social se expressa, atua (é instituinte) e constitui direitos.

Assim é que, por impulso de direitos humanos instituintes, tenho chamado a atenção para o que já é possível designar como “Constitucionalismo Achado na Rua”. Em artigo recente, publicado no volume 9, n. 2 (2022): Dossiê: “IPDMS, 10 anos de história e desafios”. Julho a dezembro de 2022. Organização do dossiê: Carla Benitez Martins, Diego Augusto Diehl, Luiz Otávio Ribas e Ricardo Prestes Pazello. DOI: https://doi.org/10.26512/revistainsurgncia.v8i2. Publicado: 31.07.2022, 535 p.) Leura Dalla Riva (p. 406-421) publica um texto que tem como título Bem viver e o “Constitucionalismo Achado na Rua”: um olhar a partir da teoria da ruptura metabólica.

A Autora parte de uma análise da crise ecológica hodierna como resultado da ruptura metabólica existente entre seres  humanos  e  natureza  e  suas  consequências,  este  artigo  focaliza  o desenvolvimento  do  novo  constitucionalismo  latino-americano  como  um  movimento “achado na rua”. A pesquisa tem como problema de pesquisa: em que medida o novo constitucionalismo   latino-americano   abre   caminhos   para   a   superação   da   ruptura metabólica ao consagrar a ideia de Bem Viver? Para tanto, utiliza-se abordagem dedutiva. Primeiramente,  aborda  a  categoria  “ruptura  metabólica”  com  especial  foco  na exploração da natureza na América Latina, o que envolve a abordagem de questões como capitalismo dependente no continente e o histórico extrativismo. Num segundo momento, analisa-se qual o papel das constituições da Bolívia e do Equador como construtoras de um  constitucionalismo  achado  na  rua  e  apresentam-se  as  origens,  conceitos  e  aspectos principais da ideia de “Bem Viver” a partir dos povos latino-americanos. Por fim, aborda-se em que aspectos essas constituições apontam para a superação da ruptura metabólica em prol da ideia de Bem Viver.

Esse texto vem se agregar a um bem constituído modo de pensar o constitucionalismo, enquanto constitucionalismo achado na rua, tal como temos os pesquisadores do Grupo de Pesquisa com a mesma denominação – O Direito Achado na Ria (certificado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), tal como o mais atualizado, até aqui, percurso dos estudos com essa concepção, conforme descrito a seguir.

 Desde logo, uma mais estendida e circunstanciada aproximação entre O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, foi apresentada pelo professor De la Torre Rangel, durante o Seminário Internacional O Direito como Liberdade 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, em sua contundente comunicação Constitucionalismo Achado na Rua en México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno (De la TORRE RANGEL, 2021).

As experiências registradas no México, tendo como base as lutas sociais por emancipação, têm o caráter de uma revisão crítica da historiografia do país, na percepção da insurgência e do processo instituinte de direitos, repondo o tema do constitucionalismo desde baixo, nas anotações de planos e acordos estabelecidos nos embates para estabelecer projetos de sociedade. Relevo para os acordos de San Andrés, pela conformação constitucional que os caracterizam.

Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo (YRIGOYEN, 2011), aferindo as experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.

Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo (YRIGOYEN, 2021), sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.

Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico, desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, (WOLKMER; WOLKMER, 2020), se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido: “Outro claro ejemplo de racionalidade jurídica diferente, resulta em palavras de Raquel Yrigoyen, la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente al robo y el abigeato se traduce finalmente, en prácticas sociales de auto administración de justicia” (SONZA, Bettina. 1993).

Tal como dissemos eu e meu colega Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019 op. cit.), mais que reconhecimento de direitos, tais ciclos tratam do grau de abertura à efetiva participação constituinte das distintas identidades, aliado à efetiva incorporação de seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais não apenas no ordenamento jurídico, mas no desempenho institucional dos poderes, entes e entidades públicas e sociais.

Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, com as novidades trazidas pela proposta de Constituição do Chile, aprofundam-se temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial, que para Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad Libre, 2022.

A novidade agora vem do Chile, e aponta para o que Wolkmer identifica como propostas de um constitucionalismo crítico na ótica do sul global referida a aportes do constitucionalismo transformador de que fala Boaventura de Sousa Santos, do constitucionalismo andino, pluralista, horizontal decolonial, comunitário da alteridade, ladino-amefricano e, ainda, do constitucionalismo achado na rua.

É a partir dessa perspectiva, algo que deixo como sugestão ao autor para suas pesquisas futuras considerando que o que vou dizer não se colocava quando o trabalho foi publicado. Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, aprofundar temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial.

Disso cuida Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad. Para Wolkmer, “la propuesta de un constitucionalismo crítico bajo la óptica del sur global puede ser contemplada en los aportes innovadores de la propuesta del consti tucionalismo transformador de Sousa Santos, B. de y de las variaciones presentes que tienen en cuenta las epistemologías del sur y, más directamente, del constitucionalismo andino, ya sea en la vertiente del constitucionalismo pluralista (Yrigoyen Fajardo, 2011; Wolkmer, 2013, p. 29; Brandão, 2015), del constitucionalismo horizontal descolonial (Médici, 2012), constitucionalismo comunitario de la alteridad (Radaelli, 2017), constitucionalismo crítico de la  liberación (Fagundes, 2020), constitucionalismo ladino-amefricano (Pires, 2019) o aún del constitucionalismo hallado en la calle (Leonel Júnior, 2018)”.

Realmente Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado – Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, (SILVA JUNIOR, 2018).

Na segunda edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bolívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Editora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate “O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então, o Constitucionalismo Achado na Rua.

O livro, aliás, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa dimensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional na UFF.  O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.ly/2NqaABn.

Resenhei esse percurso em http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.

Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone  and  GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966.  https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.

Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.

Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016, op. cit.), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).

Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisitações e travessias (SOUSA JUNIOR, 2021), um capítulo é dedicado ao tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os temas A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo, Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.

É sempre estimulante poder construir com os compromissos de engajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.

É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos níveis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, o texto de Antonio Carlos Bigonha (Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua:

A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica.

Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo achado na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carvalho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito” (Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras), também extraem consequências dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.

É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, realizado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma seção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos: Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descolonização desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, de Jesús Antonio de la Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucionalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques (SOUSA JUNIOR, 2021, op. cit.).

É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz de bate”.

Para o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo  e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real.  Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (CANOTILHO, 2008a).

Estamos em diálogo, a Autora e os pesquisadores que formam o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua. Conforme ela diz no fecho de seu livro, observa-se que o diálogo pressuposto tanto pelos direitos humanos, como processos de abertura e interação com outros processos culturais, quanto pela estatalidade aberta postulada pela interconstitucionalidade, entabula-se e renova-se diariamente, em distintas sedes – e ainda que enquanto potencialidade nalgumas searas–, nas quais se instauram demandas por reconhecimento, redistribuição, representação  e inclusão, sem as quais não se pode falar em legitimidade democrática …Assim, sabendo-se que, quanto mais pluralista for uma sociedade, mais a estima social cria relações simétricas entre seus membros , a interculturalidade e o pluralismo que possibilitam, ao tempo em que são fomentados, pelo diálogo interconstitucional tendem a favorecer uma maior horizontalidade nas relações. E, logo, a cooperar para a realização do direito como “modelo avançado de legítima organização social da liberdade”, indispensável à criação de uma “comunidade política viável”, que tem na solidariedade a “condição necessária e a contribuição coletiva essencial para o bem-estar da liberdade e da diferença”.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário