O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

 

Intervenções nas Instituições Federais de Ensino: reitoras e reitores eleitos e não empossados

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Marcel Fernando da Costa Parentoni e outros. Coletivo de Reitores e Reitoras. Intervenções nas Instituições Federais de Ensino: reitoras e reitores eleitos e não empossados. Nossa luta, nossa história (1ª edição. Campos dos Goytacazes, RJ: Encontrografia Editora, 2022, 336, p. Download gratuito da versão digital em: https://encontrografia.com/wpcontent/uploads/2022/12/ebook_Intervencoes-nas-instituicoes-federais.pdf)

                   

         Num novo governo, o novo deve ser o que o caracterize e distinga. Como fez em seu último mandato o Presidente Lula que se reunia quase periodicamente (em diálogo e não em pé para comunicados) com os Reitores para construir políticas universitárias (assim foi o REUNI), já abriu agenda para interlocução com Reitores e Reitoras, ainda na primeira quinzena de sua posse apesar das urgências provocadas pela intentona do dia 8 de janeiro. A reunião foi mediada pela Andifes. A força do simbolismo que traz o novo da nova governança, desperta enorme interesse. A gestão é educadora, e acompanhá-la, é parte dessa pedagogia. O encontro foi transmitido ao vivo e já é acervo para consultas (https://youtu.be/_M2V_Ca2C8Q). Eis a novidade, querer sair da bolha, pois só se conhece a ilha saindo da ilha (José Saramago. O Conto da Ilha Desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2016).

Ganhou forte repercussão, em seguida à posse do novo Ministro da Educação, a exoneração pelo ministro do Reitor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), nomeado no governo Bolsonaro. O Reitor exonerado havia assumido o cargo mesmo não tendo participado de nenhuma das fases de consulta pública e nem tendo seu nome na lista tríplice indicada pela comunidade acadêmica. O ato de exoneração saiu no Diário Oficial da União, de 16/01. O Ministro da Educação nomeou também professor da Univasf para o exercício reitoral pro-tempore da universidade.

Esse é um caso extremo – a nomeação em desacordo com a formação de lista conforme a disciplina da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, seguindo procedimento formal no âmbito das instâncias comunitárias e institucionais das IES.

Meus colegas ex-Reitores e meus amigos e amigas Reitores e Reitoras estão atentos a essa questão e ávidos de fundamentos para orientar seus posicionamentos e a defesa das universidades. Assim, logo cuidei de oferecer uma primeira reflexão sobre essa questão candente, para circular em nossas listas de discussão e o fiz aproveitando a minha coluna O Direito Achado na Rua publicada quinzenalmente pelo Jornal Brasil Popular. A publicação foi postada no dia 18/01, às vésperas do encontro com o Presidente. Dei o título Intervenções nas Universidades: Autonomia e Nomeação de Reitores (https://www.brasilpopular.com/intervencoes-nas-universidades-autonomia-e-nomeacao-de-reitores/). No texto faço referência ao livro tema deste Lido para Você, que me foi enviado pelo colega Rui Vicente Oppermann, ex-Reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, reeleito por sua comunidade e incluído na lista em primeiro lugar por ter sido o mais votado porém, preterido num atravessamento que revela o intuito de intervenção hostil à autonomia universitária. O caso é um dos relatos do livro, com a marcação muito expletiva Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A vontade de um deputado acima da vontade da comunidade (p. 161-169).

Com efeito, o livro organizado por Marcel Fernando da Costa Parentoni e outros, formando um Coletivo de Reitores e Reitoras – Intervenções nas Instituições Federais de Ensino: reitoras e reitores eleitos e não empossados. Nossa luta, nossa história (1ª edição. Campos dos Goytacazes, RJ: Encontrografia Editora, 2022. download gratuito da versão digital em: https://encontrografia.com/wp-content/uploads/2022/12/ebook_Intervencoes-nas-instituicoes-federais.pdf) – relaciona pelo menos 26 casos relativos a universidades e institutos federais devidamente registrados, com o recolhimento de “relatos de pessoas que presenciaram de perto o estrago que o vento oportunista e autoritário pode fazer em organizações estratégicas para o desenvolvimento regional, nacional e internacional” e que implicou na mais afrontosa violação do princípio constitucional e histórico da autonomia universitária expresso no fundamento da gestão democrática que se manifesta entre outros enunciados, no mecanismo de escolha de seus dirigentes.

O livro é um libelo. Para além do relato das pessoas todas as manifestações trazem elementos convincentes para forrar o lastro teórico-político que confere à institucionalidade universitária o alcance constitucional e convencional que lhe atribuiu especial singularidade. Conforme os organizadores “os relatos contêm a veracidade dos processos das consultas prévias e eleições nos Conselhos Universitários nas Instituições Federais de Ensino Superior e estão carregados de muitos sentimentos. Impossível não perceber o sofrimento coletivo, diante do total desrespeito à comunidade acadêmica que escolheu seus representantes, com base nos projetos de gestão democrática. Essa obra, representada por histórias de resistência, oferece também alguns caminhos de esperança por dias melhores. Paralelamente, ainda neste livro, há uma forte sustentação jurídica em defesa da autonomia universitária”.

Trago para esta resenha o núcleo argumentativo que esbocei no artigo publicado em minha coluna de 18/01. Mas em escritos anteriores venho de modo contínuo piqueteando o campo demarcável da construção do instituto da autonomia (https://www.brasilpopular.com/violacao-da-autonomia-universitaria-punicao-ao-abuso-de-poder/;https://www.brasilpopular.com/uso-do-direito-penal-para-restringir-a-liberdade-de-ensinar/), com menções a decisões recentes do Supremo tribunal Federal nesse âmbito. Assim que, nesse diapasão, ao julgar a ADPF 548, posicionaram-se os ministros mais uma vez, no sentido da afirmação irredutível do princípio da autonomia universitária, mantendo uma unanimidade que se traduz no substancioso voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, para quem a autonomia universitária está entre os princípios constitucionais que garantem toda a forma de liberdade: “Não há direito democrático sem respeito às liberdades. Não há pluralismo na unanimidade, pelo que contrapor-se ao diferente e à livre manifestação de todas as formas de apreender, aprender e manifestar a sua compreensão de mundo é algemar as liberdades, destruir o direito e exterminar a democracia”.

Desde o início do governo autoritário, instalado por um mecanismo golpista que interrompeu a continuidade de uma governança de alta intensidade democrática, o programa neoliberal a que ele serviu, no aspecto econômico e também no aspecto ideológico, identificou a cultura e a educação e, neste caso, o segmento universitário que anima o ensino, a pesquisa e a inovação tecnológica, como um alvo preferencial de toda a sua hostilidade e com estratégia de captura de sua infraestrutura e sua autonomia de produção crítica de conhecimento.

Mostrei isso em meu texto Fature-se: Ataque Privatizante à Universidade Pública, publicado em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/591360-fature-se-ataque-privatizante-a-universidade-publica e também em Future-se valoriza o privado e não acena para o ethos acadêmico, integrante do número especial IHU On-Line – Revista do Instituto Humanitas Unisinos, nº 539 – I Ano XIX, 2019 (https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/539), reunindo importantes depoimentos.

Na esfera ideológica o que se vê é o intuito de vencer o pensamento crítico, desmistificador da astúcia predadora da governança miliciana e entreguista, que se manifestou seguidamente em ações diretas agressivas e não só retóricas (há professoras e professores em programas de proteção no Brasil e no exterior) e em subterfúgios administrativos com o objetivo de criminalizar a liberdade de cátedra e a própria autonomia.

Anota o filósofo católico tomista Jacques Maritain, tão influente na elaboração dos artigos da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, para cujo texto conduziu algumas de suas ideias de seu livro Os direitos do homem (1943), que aquele processo obscurantista do nazi-fascio-franquista, no pensamento e na ação (causou-lhe muita impressão o ensaio genocida da guerra civil espanhola), empurrava as opções para as posições cada vez mais à direita dos conservadores autoritários, extremados no reacionarismo e à esquerda, dos liberais e socialistas, ao extremo da revolução.

Em Lettre sur l’independence, mostra o notável crítico literário e também filosofo da política Álvaro Lins (Cristianismo Político e a Questão-Maritain ante o Fascismo Espanhol, in A Glória de César e o Punhal de Brutus. Ensaios e Estudos. 2ª edição: Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1963), o perigo que a inteligência e a educação afrontam, uma vez que o intelectual, o pensador, o universitário (aqui Lins associa Maritain a outro pensador católico e humanista Bernanos, e poderíamos associar também a Unamuno, Reitor de Salamanca e até então simpatizante do franquismo mas que no limite da preservação do recinto universitário inviolável opôs-se ao apelo do fascio expresso no “Morra a intelectualidade traidora! Viva a morte!”). O intelectual e o acadêmico, longe de delirar na contemplação, lembra Maritain recuperado por Álvaro Lins (será um parente do estimado ex-Presidente da Andifes Amaro Lins?) devem passar à ação, porque “a vida cotidiana deve estar a seu serviço”, do modo que só possam “ser acusados de traição aqueles que têm capacidade para a ação, numa causa justa, e se afastam dela por medo ou conveniência”.

É para preservar esse espaço de serviço e de compromisso da universidade com causas justas, que se construiu civilizatoriamente, referindo-me somente ao Ocidente, os princípios da autonomia (auto-governo) e de liberdade de ensino, que legaram à modernidade esse espaço irredutível e intangível da instituição universitária.

No Brasil, ainda que a instituição seja retardatária (Século XX) quando já se instalara na América espanhola desde o século XVI, nem por isso foi menos radical a assimilação desses princípios, alcançando com a concepção de universidade necessária, leal à Sociedade mais que ao Estado, aquele ethos que Darcy Ribeiro canalizou para o projeto da UnB.

Em Universidade de Brasília: projeto de organização, pronunciamento de educadores e cientistas e Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961 / Darcy Ribeiro (org), – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2011, o nosso primeiro Reitor, em seguida à edição da Lei n. 3998, de 15 de dezembro de 1961, que autorizou o Poder Executivo a instituir a Fundação Universidade de Brasília, fez publicar em 1962 o seu texto, numa edição especial patrocinada pelo Ministério da Educação e Cultura, contendo pronunciamentos de educadores e cientistas sobre o texto da lei e o projeto de organização da nova universidade.

Para Darcy, não tinha o Brasil uma verdadeira tradição universitária a defender e preservar, porque a universidade brasileira, a rigor, diferentemente do que ocorrera em outros países das Américas nos quais elas foram criadas desde o século XVI, somente em 1920, já no século XX, será instituída.

Com a UnB, segundo ele, é que se dará mais propriamente, a instauração do que se poderia designar de universitário para conferir tal estatuto ao nosso ensino superior. Criar, pois, uma universidade em Brasília, constituiu-se numa dupla oportunidade. Primeiro, por reconhecer que, sendo Brasília um cidade criada no centro do país e nela instalado o governo da República, se tornaria inevitável nela instituir um núcleo cultural a que não poderia faltar uma universidade. Depois, para atender à urgência de dotar o país, na etapa de desenvolvimento em que se lançava, de uma universidade que tivesse “o inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como problema”.

Tratava-se de projetar, para atender a essas condições, a universidade necessária e esta era, dizia ele, a tarefa da Universidade de Brasília e para isso ela havia sido concebida e fora criada.

No prefácio que fiz à reedição comemorativa (jubileu da UnB), afirmei que, certamente, muito terá se perdido a partir das sucessivas interrupções e retomadas desse belo e generoso projeto, que nunca se deixou descolar de seu impulso utópico originário. Quando se examina o texto da lei que autoriza a instituição da fundação, incumbida de criar e de manter a Universidade de Brasília, melhor se afere esse movimento. Criado para ser autônomo, sustentável, público mas não estatal, o novo ente recebe a atribuição de inovar, no mais profundo sentido experencial, a ponto de poder organizar seu regime didático, inclusive de currículo de seus cursos sem restar adstrito às exigências da legislação geral do ensino superior (art. 14), incluindo poder escolher por seu próprio Conselho, seus dirigentes.

Não vi, nos elementos normativos de vinculação da Portaria assinada pelo Ministro da Educação para exonerar o Reitor da Unifasv, qual a base de legitimação do ato. Por mais reparador que ele seja, me acode uma preocupação. Constitucional e legalmente (LDB), a nomeação e a destituição de um Reitor não pode dar-se ao arrepio da manifestação das instâncias institucionais da universidade como ente autônomo.

Na redemocratização, em 1985, nos estertores da intervenção que impôs a UnB um agente militar do sistema de segurança nacional como Reitor, presente na Instituição por mais de 20 anos, o governo militar ainda insinuou na transição um reitor civil e acadêmico. A comunidade que sempre resistira em atos pelo fim da intervenção, rebelou-se, mas não aceitou a alternativa do ministério da Nova República, de responder à greve provocada pela recusa de nomeação de um Reitor eleito pela Comunidade (Cristovam Buarque), com a exoneração do nomeado. Não aceitou o risco de boa-fé de afastar uma nomeação ilegítima, para abrir um precedente de afastamentos de má-fé que pudesse ser produzido para afastar uma nomeação legítima. Conduziu a greve até a renúncia do nomeado, além de tudo um professor respeitado e digno.

Fiquei satisfeito com uma postagem em grupo de reitores e ex-reitores de colega que menciona situação atual em sua universidade, vivenciando condição equivalente, e ele diz: “aqui, na (…), estamos pensando em uma alternativa interna para reparar o golpe na nossa democracia de forma legal e moral, o que exigirá a concordância da comunidade acadêmica e, consequentemente, a aprovação no Conselho Universitário”.              Esse me parece um caminho coerente e firme. Esse tema precisa entrar na agenda que a Andifes atualiza permanentemente para seus encontros com o Presidente da República. Também há propostas hibernando nos escaninhos do processo legislativo. Consulte-se o Projeto de Lei nº 3.674, de 2004, que “Modifica a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, dispondo sobre eleições diretas para reitor e vice-reitor das instituições federais de ensino superior” de autoria da Deputada Alice Portugal.

A justificativa é precisa: “O presente Projeto de Lei tem o propósito de modificar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação dando conseqüência ao princípio da gestão democrática previsto no texto da lei. Ao estabelecer autonomia para que estas instituições decidam os critérios e o processo de escolha de seus dirigentes e a composição de seus órgãos colegiados, o projeto em apreço avança no sentido de assegurar às instituições públicas de ensino superior poder de decisão sobre sua organização. E, ao definir que a escolha do reitor, do vice-reitor e dos diretores de cada instituição deverá ser feita por meio de eleições diretas e secretas, com a participação de professores, alunos e técnico-administrativos, o presente Projeto de Lei, além de atender a uma aspiração da comunidade universitária de nosso país, é um passo decisivo para efetivar no âmbito da universidade pública brasileira a gestão verdadeiramente democrática”.

O projeto recebeu parecer da Relatora Deputada Fátima Bezerra, atualmente Governadora reeleita do meu querido Rio Grande do Norte.

Assenta Fátima:

“A gestão democrática é o processo que possibilita a participação e a responsabilização de todos os envolvidos em uma determinada atividade. Possibilita a intervenção direta ou por meio de representação nos processos de tomada de decisão e de avaliação e fiscalização das atividades desenvolvidas.

Isto ocorre na sociedade e pode ocorrer também na gestão da educação. Em especial na educação superior, onde os alunos já estão mais amadurecidos e podem se envolver diretamente no funcionamento da instituição educacional.

O Projeto de Lei n.º 3.674, de 2004, apresentado pela ilustre deputada Alice Portugal, assegura o respeito ao princípio da gestão democrática na educação pública, previsto no artigo 56 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, e o aperfeiçoa, mediante o acréscimo de dois parágrafos: o primeiro que estabelece a autonomia da instituição para a definição dos critérios e processos para escolha de dirigentes e composição dos órgãos colegiados; o segundo parágrafo propõe que a eleição seja direta, com a participação dos segmentos da comunidade acadêmica, e se encerre no âmbito da instituição.

É nossa convicção que a explicitação de procedimentos e a garantia da participação da comunidade acadêmica na gestão das instituições de educação superior virá a contribuir, efetivamente, para o seu melhor funcionamento, para uma gestão mais eficiente e para a concretização de seus compromissos com a melhoria da qualidade e o cumprimento de sua função social”.

Acalento a esperança de que também do Rio Grande do Norte, a deputada Natalia Bonavides, brilhante revelação no Parlamento brasileiro, ela que se formou no ethos de uma qualificação totalmente constituída no modelo da universidade necessária projetada por Darcy Ribeiro, abrace a promessa desse projeto e o retire do arquivo ou lhe dê nova formulação para imprimir em sua biografia rica em protagonismo emancipatório, essa causa da educação brasileira.

Por último, o tema é muito sensível e já ativou a atuação preocupada da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (confira em https://www.brasilpopular.com/principios-interamericanos-sobre-a-liberdade-academica/), que aprovou Princípios Interamericanos sobre a Liberdade Acadêmica, para prevenir “a constatação da ameaça crescente, no continente, de agressões, mobilizações e atitudes contra a autonomia universitária e a liberdade de ensino, sobre a desinstitucionalização e a desconstitucionalização desses fundamentos, caros aos enunciados dos direitos convencionais internacionais, assim como da própria ONU” (https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Principios_Libertad_Academica.pdf).

De resto, essas diretrizes estão afinadas com o Comentário Geral 13 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU), que deixou bem assentado o reconhecimento da liberdade acadêmica, cuja satisfação, assegurada em geral pelas constituições dos países: “é imprescindível à autonomia das instituições de ensino superior. A autonomia é o grau de auto governo necessário para que sejam eficazes as decisões adotadas pelas instituições de ensino superior no que respeita o seu trabalho acadêmico, normas, gestão e atividades relacionadas”.

Salvaguardar o espaço crítico autônomo da Universidade é dar concretude a uma categoria constitutiva dos direitos fundamentais, a liberdade de consciência e de expressão, de comunicação, sem falar daquelas ligadas ao sistema de proteção à educação, que estão tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto na Convenção Interamericana de Direitos, quanto nos protocolos derivados dela, como de São Salvador. E se não se fizer nada, daqui a pouco estaremos de novo com o censor dentro da sala, com o comissário verificando os títulos dos livros que são adquiridos para as bibliotecas, com as caracterizações das teses e dissertações que são defendidas, e da criminalização do pensamento e da crítica. Com algum energúmeno erigido a distinção de notável saber.

Esses princípios asseguram o fundamento convencional e a diretriz constitucional de autonomia universitária e de liberdade de ensino e não podem servir ao escrutínio censor, mesmo do Presidente da República, para acobertar numa elasticidade imprópria de que lhe cabe a direção geral da administração (ar. 84 da CF), para assim, transformar supervisão em subordinação, desconstitucionalizando o princípio da autonomia universitária, e na voragem autoritária, sufocar a crítica acadêmica e até, no limite, a dignidade e a vida, como agora vai se revelando no evento policial-judicial que sacrificou o Reitor Cancellier (MARKUN, Paulo. Recurso Final. A Investigação da Polícia Federal que Levou ao suicídio um Reitor em Santa Catarina. São Paulo: Cia das Letras, 2021) e tem forçado já verdadeiros exílios de professores em nossas universidades e o próprio atual Presidente, num desvio de lawfare impedido – o que o social mobilizado não permitiu – de retornar à Presidência da República, como agora, para um raro e inédito terceiro mandato.

Para todas as manifestações e tomadas de posição que a agenda da autonomia venha a requisitar e nessa agenda, é sensível o tema da forma de escolha e de designação dos dirigentes das IFES, e o livro que comento se constitui uma referência incontornável. O rol de organizadores responde pela lúcida e abalizada interpretação que sobressae dos relatos e cumpre o seu desiderato. Forma, conforme um desses organizadores – Anderson André Genro Alves Ribeiro – um registro histórico essencial, apto a atribuir conteúdo ao necessário engajamento para que “o princípio constitucional da autonomia universitária seja cumprido e materializado. Para ele, o livro “é, ao mesmo tempo, um registro da nossa história e um convite à nossa luta, à defesa da educação, da ciência e do ensino superior público de qualidade, gratuito e inclusivo”.

Esse é um percurso histórico sempre orientado pelo compromisso constitucional de fortalecer o instituto da autonomia universitária, constitucionalizado, e não porque represente um privilégio estamental ou corporativo (há outros entes com pretensões equivalentes e por razões menos universalizantes – Banco Central, Forças Armadas, Ordem dos Advogados, Ministério Público, Agências Reguladoras), mas por sua essencialidade aos objetivos institucionalizados da formação econômico-social.

A Ordem dos Advogados, uma corporação de ofício, tem reconhecimento constitucional da essencialidade da advocacia para a administração da Justiça e não está sujeita a controles estatais, é conceituada como uma autarquia sui generis e assim é a sua própria base que aprova as suas contas e define a sua direção, e o advogado tem a garantia de inviolabilidade de seus atos e manifestações (Constituição, artigo 133).

A Lei Complementar 179/2021 estabeleceu a autonomia do Banco Central. Observe-se a manifestação de seu Presidente, em seguida à sanção da Lei: “O Brasil deu um passo importante com a autonomia do Banco Central. Esta conquista é resultado de um longo processo de amadurecimento institucional, onde os benefícios de um banco central autônomo, transparente e responsável foram ficando claros para a sociedade”.

Curioso que o processo de amadurecimento na institucionalização do econômico seja recebido sem reservas, enquanto quando se trate de um adensamento institucional milenar, pré-estatal, portanto, universalmente social, como se dá com a institucionalização universitária, cuja autonomia, por sua essencialidade, está constitucionalizada (art. 207), se armem tantas reticências.

Para vencer essas reservas é que se instalou no âmbito da Andifes – Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, uma Comissão de Autonomia. Tive o privilégio de presidir essa Comissão ao tempo de meu mandato como Reitor da UnB (2008-2012), investido por meus pares que acolheram a indicação do então presidente Amaro Lins, Reitor da UFPE – Universidade Federal de Pernambuco, ousado em confiar nas minhas qualificações, não obstante o noviciado na Entidade.

Nesse quadrante, certamente pelo espaço de interlocução que um governo democrático abre, foi possível estabelecer uma agenda virtuosa para operar etapas de construção com variadas interfaces interinstitucionais um caminho empírico para pavimentar concretamente a prática da autonomia. Desde estabelecer matrizes para composição e distribuição orçamentária para o financiamento estatal das IFES (Matriz Andifes); da revogação do excesso de supervisão imobilizante em atos e regulamentos, no limite impertinentes, firmar o acordo de cavalheiros para respeitar a hierarquia da lista tríplice, até formular um horizonte de auto-gestão (constitucionalmente) que culminasse em modificação da LDB para que o processo de escolha de dirigentes tenha início e termo no espaço institucional autônomo das universidades.

Certamente, em seminários, reuniões e boa documentação que foram catalogados nesse período, sempre se teve em mira a historicidade, os princípios e as tensões que assinalam a autonomia universitária (a respeito conferir o meu artigo Autonomia universitária, historicidade, princípios e tensões. Adufg – Jornal do Professor. Goiânia: Publicação do Sindicato dos Docentes das Universidades Federais de Goiás – Ano III – nº 25, setembro de 2015, p. 2). Conferir também o meu artigo Territórios de conhecimentos e de intersubjetividades: um lugar social para a Universidade. In Existindo, Resistindo e Reinventando: Universidades Públicas no Brasil Atual. Brasília: Revista Humanidades. Editora UnB, nº 65, dezembro de 2021, p. 10-22).

O núcleo desse texto foi o meu pronunciamento em evento promovido pelo Instituto Latino-Americano e pela Adurfrgs/Sindical na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a convite do ex-Reitor Hélgio Trindade da UFRGS, também ex-Reitor da Unila, em ciclo de debates denominado A Universidade do Futuro. A motivação do encontro foi firmar posição em relação à objeção e postura do Ministério Público em ação civil pública contra a Universidade Federal da Integração Latino-Americana e contra a União, a primeira para anular dispositivo do Estatuto e Regimento da universidade que previam regra de paridade para a composição do Conselho Universitário e comissões, ao invés de adotar a proporcionalidade docente indicada na LDB; contra a União, para suspender o procedimento de credenciamento da própria universidade, enquanto não satisfeita a exigência de adequação legal de setenta por cento de assentos ocupados por docentes.

Estar no evento representava para mim trazer apoio a uma formulação universitária conduzida pelo professor Hélgio Trindade, na sua investidura de reitorados que se destacaram no desenvolvimento institucional no Brasil, não só por sua eloquente qualificação teórica, documentalmente estabelecida, mas por sua condição de formulador de políticas públicas no campo. Aliás, foi nesse ambiente que o conheci, quando estive investido como Diretor do Departamento de Política da Educação Superior, na SESu/MEC (2003, gestão do Ministro Cristovam Buarque, condição na qual participei como membro da Comissão Especial de Avaliação que resultou na criação do SINAES – Sistema Nacional de Educação Superior e logo, da CONAES – Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior, instalada e inicialmente presidida pelo professor Hélgio Trindade.

Ali, com Hélgio, José Dias Sobrinho e um plantel raro incluindo vários ex e futuros reitores e reitoras (SINAES – Sistema Nacional de Educação Superior. Bases para uma nova proposta de avaliação da educação superior brasileira. Brasília: MEC/SESu -Comissão Especial de Avaliação, setembro de 2003), foi possível criar um sistema condizente a princípios e critérios, por meio dos quais a regulação e o controle não delirem da referência constitucional e seus enunciados, de um lado, marcando a educação [como] um direito social e dever do Estado; de outro, guardando compromisso com os valores sociais historicamente determinados que validam a construção civilizatória do ente universidade.

Tomei esse último contexto para formar o fio orientador de minha conferência na sessão de encerramento da 9ª Conferência do Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países de Língua Portuguesa – FORGES, realizada de 20 a 22 de Novembro – 2019, Brasília, Brasil, na Universidade de Brasília, tendo como tema central “A integração do ensino superior dos países lusófonos para a promoção do desenvolvimento humano”.

A conferência foi publicada na forma de artigo na Revista Forges, nº Especial (2020): Número Comemorativo do 10º Aniversário da Forges, publicado em 2020-11-19 (https://revistaforges.pt/index.php/revista/issue/view/8). O título do artigo publicado é “Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória”.

Destaco que os pontos que formam o fio condutor de minha exposição correspondem, em seus fundamentos, às expectativas que defendem uma universidade aberta à cidadania, preocupada com a formação crítica dos acadêmicos e mais democrática. Uma universidade, como lembrava Boaventura de Sousa Santos em recente visita à UnB, consciente de que “o que lhe resta de hegemonia é o ser um espaço público onde o debate e a crítica sobre o longo prazo das sociedades se podem realizar com muito menos restrições do que é comum no resto da sociedade e que encontra no exercício da pluralidade tolerante a mediação apta a torná-la uma ‘incubadora de solidariedade e de cidadania ativa’”.

O que leva a um modelo que já se apresenta como proposição interpelante da universidade convencional, desde que ela se abra a, pelo menos, a uma condição. Dar-se conta da natureza social do processo que lhe cabe desenvolver. Não é condição trivial, porque ela implica opor-se à tentação de mercadorização do ensino e da pesquisa e conseqüente redução do sentido de indisponibilidade do bem Educação, constitucionalmente definido como um bem público, processo dramático e cruento em curso autoritário em muitos de nossos países, num projeto claramente hostil à ideia de universidade como valor social e ao conhecimento crítico como elemento nutriente de práticas e de pensamentos democrático e emancipatório.

Para isso a autonomia, expressa na autenticidade de sua direção, a qual se confia um projeto que a afirme como singularidade, que a faça paradigmática, em condições de responder aos desafios que testam sua condição de continuidade civilizatória. É o que me ofereceu em reflexão, mais uma vez Hélgio Trindade, quando lhe propus, para livro que organizei ao final de meu mandato na UnB (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Organizador. Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012). Na obra Hélgio contribuiu com um texto seminal, importante para o debate que nos convoca nesse momento (TRINDADE, Hélgio. Por um Novo Projeto Universitário: da ‘Universidade em Ruínas’ à ‘Universidade Emancipatória. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Organizador. Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012).

Do que se trata é realizar esse projeto e essa é a tarefa agora, fazer a universidade autônoma para, além de competente, ser igualmente democrática e socialmente inclusiva, e assim, emancipatória.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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