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sábado, 1 de outubro de 2022

 

O País que Sairá das Urnas

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Que País sairá das urnas ao final do dia 2 de outubro? Ao que indicam as pesquisas, pensando apenas a eleição para Presidente, numa variação que terá maior ou menor significação e projeção dependendo da definição em primeiro ou segundo turnos e da composição dos governos locais e das bancadas, será um País que exorcizou-se do clima político e social extremamente acirrado em que se encontra. Minha análise leva em conta, com base na convergência de números das pesquisas, a vitória do Presidente Lula.

 

 

Volto ao meu ponto de partida. O clima político e social no qual se desenrola o que já é considerado o“mais acirrado da história republicana brasileira” baliza a eleição que se consuma neste 2 de outubro. Para Marina Basso, autora do livro“O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro”, em depoimento publicado na página do IHU – https://www.ihu.unisinos.br/622567-as-polarizacoes-que-virao-estamos-vivendo-as-agonias-de-40-anos-de-neoliberalismo-entrevista-com-marina-basso – isso deriva da polarização provocada por 40 anos de neoliberalismo, cuja agonia expõe a tensão entre políticas de morte (direita) e política da vida (esquerda), para retomar conceitos que ajudam a discernir.

 

 

A vitória de Lula repercutirá como resgate de esperanças, para abrigar as expectativas, diz Basso“da ampla maioria de progressistas que habitam o Brasil”, todavia, aindanubladas pela inoculação na cultura e nas mentalidades, do fascismo (em qualquer de suas formas perenes como caracteriza Umberto Eco), simbolizado pelo bolsonarismo, que ainda vai permanecer, sem Bolsonaro.

 

 

Por isso, concordando com Marina Basso, tudo que se representou nesse “movimento global de engajamento de parcelas da população de negação dos valores consagrados pelo liberalismo político que hegemoniza o Ocidente há quase 250 anos”, manifestando-se nos antagonismos que nos dividem atualmente, permanecerá por um bom tempo como “polarizações que haverão de continuar fechadas as urnas no Brasil”.

 

 

As eleições, resgatando essas esperanças, abre enormes possibilidades para, tal como afirmou o Presidente Lula, poucos dias antes da votação, em encontro com economistas, personalidades e empresários, criar um ambiente político para a“reunião dos divergentes para vencer os antagônicos”. Lula voltou a se declarar contra o teto de gastos e defendeu a volta da “normalidade” no país.

 

 

Na mesma ocasião, o presidente foi enfático: “A fome não pode esperar. E não adianta dizer ‘não, primeiro nós temos que arrumar a casa, é preciso olhar a política fiscal, é preciso fazer tal coisa, porque se não você vai gastar dinheiro’. A fome não pode esperar. E nós vamos cuidar disso”, acrescentou Lula, ao lado de seu candidato a vice, o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB). “Quero que todo mundo saiba, eu sou contra o teto de gastos. E sou contra por uma única razão: o teto de gastos foi o aprisionamento que o sistema financeiro fez do governo. Porque na verdade quem tem responsabilidade não precisa de teto de gastos.”

 

 

Em boa medida, fechadas as urnas, esse será o desafio para a governança. Discernir no lusco-fusco das tensões políticas e das urgências angustiantes que vão galvanizar essas esperanças, sufocadas por uma política de morte, literalmente falando, se se toma a estatística monstruosa dos indicadores letais da pandemia, com quase 700 mil óbitos.

 

 

Volto a Marina Basso quando ela diz que “parte das pessoas pobres, desesperadas, sem poder, tendem a se agarrar a posições conservadoras, tradicionalistas, como um modo de proteção contra o desmoronamento da vida, a falta de oportunidades, de perspectivas. Portanto, eu vejo alguns aspectos das manifestações da ultradireita, sim, como um grito, mas não diante da redistribuição de forças no sistema geopolítico, e sim com a queda, de décadas, das políticas de bem-estar”.

 

 

Mas essas injunções não se dão apenas num contexto interno. Elas repercutem e incidem num sistema mundo igualmente tensionado, quase ao limite (guerra entre a Rússia e a OTAN) e colapso planetário.

 

 

Em matéria publicada na página do IHU (Instituto Humanitas, da Unisinos – Universidade do Vale do Rio dos Sinos) o ex-vice presidente boliviano Álvaro Garcia Linera tratando do tema da reversão do processo golpista e da derrotada extrema direita na Bolívia,vinculou esse processo ao concomitante enfrentamento dos desafios da crise climática e dos horizontes de luta que se abrem com a nova onda progressista latino-americana em um mundo cada dia mais conflagrado (https://www.ihu.unisinos.br/622546-nova-onda-progressista-na-america-latina-traz-ao-mundo-um-grito-de-esperanca).

 

 

As eleições no Brasil nos repõe na mesa de interlocução regional e global que baliza as possibilidades de retomada do protagonismo do Brasil, totalmente aviltado pelo desqualificado desempenho de Jair Bolsonaro, isolado e à margem de todas a agendas das relações internacionais.

 

 

Trata-se, como propôs o presidente Petro da Colômbia, em seu discurso na ONU, de mobilizar para o fim de todas as guerras: “Para que a guerra se o que nós necessitamos é salvar a espécie humana? A causa do desastre climático é o capital. A lógica de que temos de consumir cada vez mais, para produzir cada vez mais para que alguns poucos ganhem… o desastre climático produz isso. A acumulação de capital é uma acumulação ampliada da morte. Ao invés de caçar e encarcerar agricultores de uma planta da selva amazônica, os convido a acabar com a guerra e deter o desastre climático”.

 

 

Esse lugar de protagonismo se enuncia até pela resolução do Senado norte-americano, adotada 4 dias antes das eleições, a favor da garantia do respeito à democracia no Brasil. O documento foi aprovado por unanimidade e contou com a participação de nomes como os democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren e pede o reconhecimento automático do vencedor das eleições no Brasil: “É importante que o povo do Brasil saiba que estamos do lado deles, do lado da democracia”, disse Bernie Sanders.

 

 

Uma boa análise de Garcia Linera, na entrevista citada, é a de que, ao caracterizar o que chama de segunda onda de redemocratização na América Latina, cabe acentuar que o nosso patamar de partida não é um começo, mas um recomeço. Recuperamos nossa História sobre um construído político e social que o fascismo não logrou desmantelas. Basta ver, na pandemia, a arquitetura constitucional que permitiu, por exemplo, ao Supremo Tribunal Federal, limitar a voragem desconstituinte do modelo participativo de deliberação e de controle social das políticas públicas. O SUS, organizado sob esse conceito, permitiu a equidade e a universalidade de acesso ao sistema de saúde, especialmente na vacinação e ensejou ao social organizar-se por si mesmo para enfrentar a sindemia. O STF constatou a existência de “um estado de coisas inconstitucional” e abriu as condições para as iniciativas regionais (Consórcio Nordeste), municipais e institucionais (Prefeituras como Araraquara e instituições como a Fiocruz), e às comunidades e aos sujeitos coletivos de direito (Povos Indígenas, Quilombolas), para organizar suas próprias formas de proteção sanitária, escapar ao negacionismo e à corrupção de condutas de agentes governamentais (veja-se a CPI da Covid no Senado).

 

 

Para Garcia Linera, é importante considerar “que parte das reformas feitas na primeira onda já foram cumpridas. Tiramos 70 milhões de pessoas da pobreza na América Latina nesse período. Agora, ainda não está claro quais são as novas grandes reformas. Particularmente, a grande dívida dessa segunda onda progressista é não apenas redistribuir riqueza — algo que deve ser feito para acabar com tanta injustiça —, mas também um sistema produtivo que dê a redistribuição da riqueza, fôlego e sustentabilidade”.

 

 

Todavia, mesmo considerando a vitória do Presidente Lula, no primeiro ou no segundo turnos, ainda sobrevirá o lusco-fusco a que me referi e sombras se projetarão a partir das eleições.

 

 

Penso que é na política e na re-educação para a política, seu re-encantamento, que será possível iluminar os desvãos do modelo colonizador das instituições, a começar pelo Estado, que se transformaram em estruturas distribuidoras de favores e de restrição de direitos e a prosseguir no plano confessional, esprimido entre uma teologia de prosperidade alienadora das injustiças, carismática, neopentecostal e às vezes histriônica (como se viu no último debate), mas sempre ávida de postos, de meios e de dízimos; e uma teologia da libertação ou do povo, característica de uma Igreja pastoral e missionária, em saída, encarnada de na rua.  As eleições vão permitir lançar luzes sobre os subterrâneos e porões, alguns profundos, de uma organicidade clandestina e em muitos aspectos criminosa.

 

 

Theodore Roosevelt, presidente dos Estados Unidos da América, entre1901 a 1909 – revelou isso que tem sido chamado de “estado profundo” (“deepstate”): “por detrás do governo ostensivo acha-se um governo invisível, que não deve fidelidade nem reconhece qualquer responsabilidade perante o povo. Destruir este governo invisível, dissolver esta maligna aliança entre negócios corruptos e política corrupta, há que ser a primeira tarefa de Estado. Este país pertence ao povo. Seus recursos, seus negócios, suas leis, suas instituições, deveriam ser utilizadas, mantidas ou alteradas somente da maneira que melhor atendesse o interesse coletivo”. Hoje, uma estrutura global, que adota em seus fóruns e nos seus arranjos secretos, decisões econômicas, supraestatais e supra-nacionais, que desestabilizam países, e drenam direitos e aquisições dos trabalhadores e da sociedade, formando um percentual mínimo de usufruidores da riqueza socialmente produzida.

 

 

Será necessário incidir dentro desse “estado profundo”, que desloca para sua tessitura influente a competência e o agir dirigente, erodindo a democracia e a promessa legislativa de realização de direitos.

 

 

É claro ser inimaginável alcançar as raízes mais profundas dessa semeadura daninha, até porque elas se espalham para fora e para longe de nosso espaço de ação política. Mas é possível podar alguns de seus ramos.

 

 

A meu ver, o mais urgente e pedagógico é recuar da política de flexibilização do armamento da população brasileira. Aprofundar a análise da história do modo de elaboração das leis que favorecem a aquisição de armas de fogo, bem como colocar em pauta o agravo da situação e o risco que o governo corre em deslocar a segurança para as mãos de seus cidadãos.  Não se trata de aferir por sua gravidade, os casos de feminicídios, homicídios, suicídios e chacinas, mas a derivação, secundária mas não desimportante, em face da desigualdade social,de um tráfico de armamento favorecendo a ilegalidade.

 

 

Assim, não é só a questão da violência, de debater políticas públicas, direito de porte e posse de armas, do Direito Penalpunitivista; mas, dar-se conta de que o fascismo, o autoritarismo, liberam um discurso autorizativo da violação de direitos humanos, que serve ao milicianismo, à militarização da segurança, à criminalização dos movimentos sociais e da reivindicação por direitos, que bem se presta ainfiltrar, inviabilizando, uma tessitura de agências clandestinas para a ação paralela de apropriação possessiva no privado do que democraticamente deve ser a reserva de sustentação equânime da vida bem vivida, com direitos e com dignidade.

 

 

De qualquer modo, podemos projetar perspectivas de futuro a partir do resultado das urnas. Ainda apostando na vitória do Presidente Lula.

 

 

Neste caso, só o poder retomar a democracia, não só forma de governo, mas como forma de sociedade, como sugere Marilena Chauí, pensando o democrático como criação permanente de direitos, já é em si um horizonte para o qual se orientam todas as nossas energias e reservas utópicas.

 

 

Isso significa, pensando como militante que atua no campo da justiça e do direito que sou, confiança na disposição para construir o futuro em diálogos com os sujeitos coletivos de direito inscritos nos movimentos sociais, tal como o fez sempre o Presidente Lula (https://lula.com.br/confira-a-integra-do-discurso-de-lula-na-reuniao-anual-da-sbpc/), o que lhe dá autenticidade, num requisito em que seu discurso coincide com a sua prática.

 

 

De todo modo, reflito com Paulo Freire que demonstrou que a educação é um ato de conhecimento e conscientização, e é a partir de uma educação libertadora e transformadora, em que as pessoas assumem um papel ativo no seu processo de alfabetização de forma crítica, é possível libertá-las da alienação e conduzi-las ao desenvolvimento de um pensamento crítico.

 

 

Assim, Freire considera a conscientização como um compromisso histórico e, também, como consciência histórica e como inserção crítica na história, implicando que as pessoas assumam o papel de sujeito que fazem e refazem o mundo.

 

 

A experiência dos governos que se estabeleceram depois do golpe de 2016 e de como foi possível retirar do horizonte de discernimento do social a compreensão de seu papel de consciência histórica para realizar projetos políticos de sua própria emancipação, coloca novamente a questão da educação como um fator estratégico para a sua autonomia e humanização. Trata-se de educação para os direitos humanos e para a cidadania.

 

 

Portanto, um acréscimo de sentido sobre a exigência de uma pedagogia democrática como modo de educação para os direitos humanos e a cidadania, não como modo de doutrinação ideológica, mas como responsabilidade social de educação emancipadora.A política é, assim, também uma pedagogia e toda a ação política que se realize desde agora, para prevenir perdas das conquistas emancipadoras, precisa revestir-se de condição educadora e humanizadora, o que parece, uma lição que o eleitor oferece nesse 2 de outubro.

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 

 

Fotografia: Edneide Arruda, jornalista e membro da direção do Jornal Brasil Popular


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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