O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

terça-feira, 25 de outubro de 2022

 

Favelado Não É Bandido

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Num momento da campanha eleitoral, num debate, veio à tona o tema da periferia. Foi marcante ouvir da direita, por seu candidato, a afirmação convicta de que a periferia é o lugar da marginalidade, da criminalidade, do tráfico, um antro de bandidagem. Enquanto o presidente Lula, alvo da incriminação e que acabara de visitar uma comunidade no Rio de Janeiro, expressava toda a sua compreensão de reconhecimento às subjetividades organizadas em suas comunidades se expressando no ethos de que é o povo trabalhador, que aí vive, o protagonista de sua ação emancipadora que se constitui pela cidadania e por sua capacidade instituinte de direitos, conformando o sentido ativo da democracia, não só como forma de governo mas como projeto de sociedade.

 

A imagem escolhida para ilustrar este artigo, afirma em sua bela plasticidade, que “favelado não é bandido” e convoca a que, tal como o Presidente Lula, se “respeite a favela”.

 

Por coincidência, enquanto essa diferença de compreensão sobre o social se desenrolava na campanha, eu estava lendo para resenhar, um livro muito interessante, resultado de uma tese de doutoramento na USP:A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e política na periferia de São Paulo, de Tiaraju Pablo D’Andrea, São Paulo: Dandara Editora, 2022, 288 p.

 

O livro foi escrito “por um morador da periferia imerso em experiências coletivas, o livro apresenta como a organização política por meio da arte e da cultura nas periferias foi uma das maneiras como a classe trabalhadora se formou e resistiu aos ataques do neoliberalismo da década de 1990 até hoje. A obra ressalta a importância dos Racionais MC’s e de diversos coletivos culturais para a produção de intelectuais das periferias que formulam uma nova compreensão sobre as quebradas, propondo uma outra cidade e uma nova sociedade a partir das lutas antirracista, antipatriarcal e anticapitalista”.

 

De fato, não fosse um trabalho com a orientação firme de Vera Telles, o Autor numa narrativa escrevivente(mesmo sem aludir a Conceição Evaristo), é criterioso no emprego de categorias, não só a categoria periferia, mas todas que aplica, até culminar com a categoria sujeito/sujeita periféricos. Daí que segundo ele, “a intenção deste livro é contar uma história da desagregação da classe trabalhadora brasileira, paulatinamente derrotada pelo neoliberalismo”, mas que logo (daí que eu não concorde com a afirmação de derrota ou de refluxo para não desconsiderar o contínuo de lutas por emancipação que acumulam reservas democráticas utópicas ativadas no pleito presidencial concluído, revelando, eu disse ao se concluir o primeiro turno, conforme https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/622664-eleicoes-2022-uma-maioria-democratica-e-uma-direita-forte-e-resiliente-algumas-analises), “se reorganizou e produziu lutas principalmente em lugares sociais e geográficos intitulados periferias urbanas”, com o objetivo, ele finaliza, não só de “mudar a história, no sentido mais amplo, mas mudar a própria história”.

 

Com Tiaraju, nele ênfase ao protagonista que promove transformações por mediação da cultura, eu também tenho me ocupado com a construção do conceito de sujeito coletivo de direito, e se subjetividade ativa, para agir e transformar o mundo. Em Tiaraju, o objetivo é “caracterizar a emergência de um novo sujeito político (o cidadão organizado em movimentos territoriais e urbanos)…portadores da força necessária para mudar os rumos da política e denunciar a miséria vivida pela população”.

 

O Autor orienta sua reflexão numa epistemologia equilibrada entre duas matrizes teóricas: o marxismo e a antropologia. O inédito de sua formulação é chegar ao que chama de um marxismo favelado, valendo-se de um enunciado de Helena Silvestre, para operar uma “interpretação que coloca em primeiro plano a experiência vivida da classe trabalhadora em dado momento histórico, com suas contradições, dificuldades, erros, acertos, saberes e práticas organizativas”.

 

A resultante, na interpretação é poder sustentar uma novidade, a de que a produção da existência não opera somente pelo agir consciente da classe, mas também no existencial que não se reduza, como se fez seguidamente, no periférico da vivência confinada a um espaço de simples reprodução da existência social.

 

A obra, por sua autenticidade, contribuiu para robustecer meu argumento duplo, sobre o espaço ressignificado e sobre as subjetividades instituintes, algo que eu divisara quando participei de banca examinadora na UnB e logo, no prefácio feito a pedido do autor, sobre temática em que essas questões são alinhadas. Refiro-me (vou citar pelo livro já no prelo, pela Editora Lumen Juris), Na Calada da Noite: processos culturais e o Direito achado na noite em Brasília, de Willy da Cruz Moura, desdobrada da Dissertação de Mestrado Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o Direito achado na noite (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. CEAM/Universidade de Brasília, 2022).

 

No meu Prefácio aludo aos referenciais, encontrados no trabalho, que vão dar ao Autor, confiança para aventar categorias inéditas como “a noite como espaço”, nessa fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos.

 

No estudo de Tiaraju, essa ressignificação se dá no alcance que ele projeta ao tomar a formulação artística do Grupo Racionais MC’s, desde que entraram na cena pública, numa realização de impacto: “O impacto da obra se deve também ao fato dela ser enunciada em três dimensões diferentes: é uma produção artística, por motivos evidentes; é uma análise que confere inteligibilidade às vivências do mundo social, e; é uma pauta política, uma vez que se transformou também em uma formuladora de práticas sociais reproduzidas por grande número de jovens das periferias…os Racionais MC’s foram um elemento catalisador que propiciou a movimentação de uma engrenagem baseada no orgulho de ser periférico e na formação de sujeitas e sujeitos periféricos”. Anoto, com uma referência de reconhecimento, que o Autor se vale de uma oferta interpretativa, especialmente para caracterizar com a autenticidade da autoria para a “compreensão alargada e contemporânea da classe trabalhadora”, por meio da expressão cultural, valendo-se de um recorte analítico construído por GOG, meu amigo rapper. Forte na cena cultural brasiliense, GOG muito contribuiu com o meu reitorado na UnB, para alargar no social o imaginário dos jovens estudantes, nas aulas de inquietação dos períodos de acolhimento e abertura de cada semestre letivo (https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/03/09/interna_cidadesdf,86805/unb-recebe-2-7-mil-calouros-com-convite-a-ocupacao-dos-espacos.shtmlhttp://ideiaspaposebesteiras.blogspot.com/2009/03/teatro-de-arena-da-unb-vai-renascer-na.html);  GOG, aliás, juntamente com Renan Inquérito fizeram a inserção artística na cerimônia solene de outorga de doutoramento honoris causa a Boaventura de Sousa Santos. No evento foi entusiasmante assistir o arejamento do auditório acadêmico sisudo galvanizado pela performance dos artistas, na cadência de Brasil com P(GOG)eRap Global, letra do próprio Boaventura e performance de Renan Inquérito (https://www.youtube.com/watch?v=2JznnTsGmg8).

 

O cerne do trabalho de Tiaraju D’Andrea é conceituar as sujeitas e os sujeitos periféricos, um processo no qual ele desnovela o entrelaçamento “entre um contexto histórico, uma gama de relações sociais e espaciais e um arcabouço conceitual [que é] expressão de uma teia de relações sociais que envolvem e formam os indivíduos em seus espaços”. Esse entrelaçamento é constituído por vários enlaces, cada um deles examinados analiticamente incluindo seus referenciais, mas que são o alinhavo de “contribuições para a definição dos conceitos vivência, habitus (com os contornos que lhe atribui Bourdieu), experiência, subjetividade, identidade e consciência periférica”.

 

Na elaboração de Tiaraju, considerando a sutileza das muitas distinções que ele deslinda, “a produção de vivências e experiências, das quais o habitus e a subjetividade são resultantes, origina-se de relações sociais e contextos culturais e econômicos em dado espaço geográfico, conformando características próprias de determinado grupo social e tendo como desdobramento uma experiência social compartilhada internamente”, no seu estudo, à quebrada, à favela, à comunidade, ao bairro, em suma, à periferia, que com GOG e os Racionais MC’s, caracterizam o periférico em qualquer lugar.

 

A categoria sujeito coletivo de direito tal como eu a proponho, designa um construto reconhecidamente desenvolvido com certa anterioridade no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua. Há boa documentação confirmando o itinerário do desenvolvimento e de sua aplicação de um modo bem característico e próprio.

 

Até mesmo no âmbito da iniciação científica, na modelagem do protocolo acadêmico de pesquisa nesse tema, os acréscimos, assim como agora nessa denotação trazida por Tiaraju D’Andrea, com a formulação de sujeitas e sujeitos periféricos, a categoria tem sido rastreada em seus aportes políticos e epistemológicos.Basta ver, nessa perspectiva de iniciação científica, o verbete preparado pelos alunos e alunas da disciplina Pesquisa Jurídica (Curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB – Universidade de Brasília, alunos do primeiro semestre), certamente com supervisão de docentes e monitores e que passa a compor a autoria anônima do repositório com o enunciado sujeito coletivo de direito (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito).

 

Observe-se, nessa caracterização, em cuja representação se investem os sujeitos coletivos de direito, uma convergência dos elementos que Tiaraju articula para falar das sujeitas e dos sujeitos periféricos. A apropriação do periférico, nessa franja de ressignificações das configurações que formam o contexto que ainda sustenta a dimensão abrangente do sujeito na conformação de seu lugar numa classe que é delineada desde o mundo do trabalho por antagonismo com o sujeito que se apropria do capital, não ignora a complexidade das várias dimensões da espoliação e da opressão que lhe acicata a consciência do querer ser sujeito.

 

Com seu conceito de sujeitas e sujeitos periféricos, Tiaraju traz ao menos cinco pressupostos básicos, cuidadosamente explicados no livro, para sustentar o seu enunciado:  o assujeitamento(a condição ou a situação em que se dá a sua formação), a subjetividade (referidaa dimensão de elementos intangíveis que constituem o ser humano, entretanto derivada de experiências compartilhadas), os códigos culturais compartilhados (expressões de formas e modos de vida particulares em determinados espaços), a consciência de pertencimento (entendida como elaboração intelectual que permite a compreensão de uma posição compartilhada a partir de um determinado território) e o agir político (ato de apoderar-se da própria história, tornando-se protagonista político a partir da ação em prol do território).

 

A tese de Tiaraju Pablo D’Andrea, nesse seu A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e Política na Periferia de São Paulo, evidentemente, de uma experiência emancipatória. Sociologicamente sensível ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades, ele está também política e culturalmente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito e da sujeita periféricos emergentes deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de sociabilidades e direitos nomeando as novas categorias que as representam.

 

Eis, em síntese, o que se disputa na mais importante eleição já travada em nosso País. Contra um projeto necropolítico, que deixa morrer o povo sem proteção na cruel incidência de um vírus letal; que mercadoriza o social transformando o humano e a natureza em recursos para o processo de produção e de acumulação do capital; que aliena o humano do protagonismo político contendo a sua participação na realização de sua própria história e o canibaliza, numa antropofagia que não é apenas simbólica (“eu comeria sim um índio”), erotizando a infância, mercadejando a fé e criminalizando o protesto e a luta por direitos; a saída civilizatória só pode ser um projeto de vida, que confie na participação popular, que reconheça a subjetividade ativa das mulheres, das crianças, das singularidades identitárias, dos apenados enquanto disponham de reservas de dignidade não destituídas pelas sentenças condenatórias, dos povos e das comunidades, das sujeitas e dos sujeitos periféricos, em todos os espaços de esperança até transformá-los em territórios de cidadania.

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

 

 

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