Calígula, Incitato e o Escárnio da Bajulação: A Medalha do Mérito Indigenista a Bolsonaro et Caterva
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Segundo Suetônio na sua biografia de Calígula, Incitato, cavalo que o imperador fez Senador e pretendia fosse Cônsul, tinha criados pessoais, era enfeitado com um colar de pedras preciosas e dormia no meio de mantas de cor púrpura (a cor púrpura era destinada somente aos trajes imperiais, ou seja, era um monopólio real (cf https://pt.wikipedia.org/wiki/Incitato.
Não difere na observação o relato de Sêneca relativamente às idiossincrasias de um dos “Césares Loucos”, oferecendo bases para estudos, no contemporâneo, que desnudam o complexo e ambíguo sistema de comunicação entre os que exercem poderes despóticos e as coortes que os sustentam. No caso de Calígula e o incidente de honraria a seu cavalo, o permitir trazer à cena a questão central dessa comunicação que muitas vezes se mantêm por conta de adulação obsequiosa. De certo modo, expectativas de um contexto em que devem operar (“ao confirmar legalmente e honrar os respectivos titulares do poder, para sublinhar sua própria e contínua importância”) e, ao mesmo tempo reforçar sua impotência (cf. Aloys Winterling, Loucura imperial na Roma antiga – https://www.scielo.br/j/his/a/Zd63PVYJBWCx6tWMMR9jZSx/?lang=pt).
Representou-se assim, para a opinião mais crítica do País o ato do ministro da Justiça que concedeu a Medalha do Mérito Indigenista ao Presidente da República e a um rol de ministros e dirigentes de organismos ligados ao sistema de proteção aos povos indígenas “como reconhecimento pelos serviços relevantes em caráter altruísticos, relacionados com o bem-estar, a proteção e a defesa das comunidades indígenas“.
Para essa opinião crítica o ato soa a escárnio, pois, como é sabido, na pauta do Presidente da República está a defesa da exploração de minério em terras demarcadas; o incentivo à propagação de agrotóxicos na agricultura incluindo terras indígenas. Ele já foi denunciado duas vezes pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) por sua “política anti-indígena”.
Matéria do site UOL (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/03/16/ministerio-da-justica-concede-medalha-do-merito-indigenista-a-bolsonaro.htm?fbclid=IwAR1eNH8HSgyMHlxROu0hFXiB6mXjJeWtYqocMoIUTAiLfvSA05Jb9o357pY), a propósito dessa outorga, dá conta de ação direta de apoio a garimpeiros, quando o Presidente publicou decreto que cria o Pró-Mape. Na prática, uma ação para apoiar a lavra garimpeira, principalmente na região amazônica, uma prática que é majoritariamente marcada pela extração ilegal de ouro e pedras preciosas.
No ano passado a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil apresentou uma queixa ao TPI (Tribunal Penal Internacional) por crime de genocídio e crimes contra a humanidade contra os povos indígenas. Uma segunda denúncia foi submetida contra o Presidente após avanço do desmatamento e da invasão de terras indígenas por garimpeiros.
Na petição da APIB, a entidade e as organizações subscritoras da denúncia ainda apontam para a alta taxa de mortalidade entre os indígenas durante a pandemia da Covid-19, com base em fatos revelados pela CPI da Pandemia.
Por isso, as Organizações Indígenas e seus aliados, imediatamente se movimentaram para adotar medidas de recusa ao ato do ministro da Justiça caracterizado como verdadeiro escárnio e desvio de finalidade.
No campo da política, o que incumbe é manifestar a recusa e sempre, sempre, agir para romper com toda forma imoral de vitupério que afronte a dignidade civil. É o que os indígenas estão fazendo. Se, ao fim e ao cabo, baldas as suas impugnações, restará o raio fulminante da História e da Justiça.
Todos conhecemos o fim trágico dos césares insanos e de muitos de seus bajuladores. Baste a evidência da morte de Herodes Agripa I, feito tetrarca da Judéia, por Calígula, em gesto de resposta a sua descarada bajulação. Temos o registro histórico de Josefo (Antiguidades, XIX, 7.2), de sua morte em seguida aos eventos de louvação ao César, em “ímpia bajulação”. Como está também no fim do capítulo 12, do livro de Atos, no relato de Lucas: “Herodes, vestido de trajo real, assentado no trono, dirigindo-lhes a palavra; e o povo clamava: É voz de um deus e não de homem! No mesmo instante, um anjo do Senhor o feriu, por ele não haver dado glória a Deus; e, comido de vermes, expirou” (Atos 12:19-23).
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
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