Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua*
Antonio Carlos Bigonha
Darcy
Ribeiro nasceu em Montes Claros, Minas Gerais, em 26 de outubro de 1922.
Graduou-se pela Escola de Sociologia Política de São Paulo e especializou-se em
antropologia sob a orientação de Herbert Baldus. O seu centenário coincide com
os 60 anos da Universidade de Brasília, instituição que concebeu, ao lado de
Anísio Teixeira, durante o governo do presidente Juscelino Kubitschek. Foi o seu
primeiro reitor, desde a inauguração, em 1962, até junho de 1963. A UnB deveria, segundo seu traço original,
pensar o Brasil como problema, uma universidade-semente capaz de elaborar um
projeto de desenvolvimento para o País. A vocação da UnB, nesta perspectiva,
era romper o marasmo de nossa elite cultural, historicamente servil às classes
dominantes.
Veio o
Golpe de 1964, com a interdição da utopia, e todos sabem os seus
desdobramentos. Primeiramente, a prisão, o pernoite e a humilhação de
professores em uma delegacia de Brasília. Depois a perseguição de estudantes e
a destruição do Instituto de Teologia Católica. Criado por Darcy para vencer a
resistência da Igreja a uma universidade laica na Capital, sua instalação no
campus fora resultado das tratativas que empreendera diretamente com o Papa
João XXIII. O fechamento truculento pelos militares foi ao mesmo tempo físico e
simbólico: o prédio, uma das mais belas obras que Oscar Niemeyer desenhara para
o campus da UnB, foi brutalmente incendiado pelas forças da ditadura. Nada
poderia soar mais comunista do que católicos despertos para suas
responsabilidades sociais.
A
retomada democrática da UnB viria duas décadas mais tarde sob as mãos de
Cristovam Buarque, eleito pela comunidade acadêmica. Em agosto de 1985, presente na solenidade de
posse do novo reitor, Darcy, então vice-governador do Rio de Janeiro no governo
de Leonel Brizola, conclamava Cristovam ao retorno à utopia de uma universidade
experimental, livre para tentar novos caminhos na pesquisa e no ensino. Em
1995, senador pelo Rio de Janeiro, compareceria novamente à UnB, desta vez para
receber o título de doutor honoris causa e para ser homenageado com a
nova denominação do principal assento territorial da universidade, que passaria
a se chamar Campus Darcy Ribeiro. A gratidão levou-o a afirmar, em suas Confissões,
que, embora tivesse recebido títulos semelhantes de grandes instituições
pelo mundo, nada o comovera tanto quanto o batismo do próprio campus com o seu
nome, na gestão do reitor João Cláudio Todorov.
O
jurista baiano Antônio Luiz Machado Neto foi, na década de 1960, um dos
subscritores do projeto conceitual da UnB, ao lado de Darcy Ribeiro e Anísio
Teixeira. Coube-lhe a implementação didática da disciplina Teoria Geral do
Direito, com a missão de elevá-la aos padrões internacionais de cultura.
Crítico do pensamento jurídico tradicional, então identificado com o
positivismo lógico de Hans Kelsen, Machado Neto propunha uma nova abordagem
hermenêutica, menos centrada na objetividade da norma jurídica e mais focada na
conduta humana, em uma perspectiva intersubjetiva. Foi demitido dos quadros da
Universidade em outubro de 1965, junto a outros 14 professores, entre eles o
jovem Sepúlveda Pertence. Desencadeou-se uma onda de protestos que culminou com
o desligamento em massa de 223 dos 305 docentes: o dia da diáspora.
Quando
ingressei na Universidade de Brasília, no ano de 1983, o curso de Direito era
ainda um departamento da Faculdade de Estudos Sociais Aplicados. Nosso reitor
era o capitão-de-mar-e-guerra José Carlos de Almeida Azevedo. A dogmática
jurídica estava de tal modo arraigada em nosso currículo que não era raro, em
alguma aula de teoria geral, alguém exemplificar uma relação jurídica a partir
da cosmogonia de Adão e Eva. A noção kelseniana de Direito, como sistema de
normas dotado de sanção e coação pelo Estado, era repetida quase como um mantra
por professores e alunos. Neste contexto, a obra “O que é Direito”, de Roberto
Lyra Filho, professor do nosso Departamento, lançada em 1982 pela Editora
Brasiliense como parte da Coleção Primeiros Passos, repercutia na paisagem
acadêmica como um oásis a possibilitar uma reflexão crítica da teoria jurídica,
condizente com o ambiente universitário que não deveria restringir-se ao mero
adestramento técnico do corpo discente.
O
Direito Achado na Rua, fruto da virada conceitual anunciada há 40 anos por
Roberto Lyra Filho nesses Primeiros Passos, consolidou-se, a partir de então,
como espaço crítico indissociável do processo de redemocratização que culminaria
com a Constituição de 1988. Boaventura de Sousa Santos afirma que, nesta nova
perspectiva, o Direito é reconhecido não apenas como aquele que existe nos
tribunais, mas é também o que as populações cultivam, criam, produzem,
reproduzem nas suas comunidades, seja nas comunidades ribeirinhas, urbanas,
rurais, seja nas periferias, nos povos indígenas, no mundo Quilombola. O que
evidencia a proximidade entre a expressão cunhada por Lyra Filho e as
epistemologias do sul de que nos fala Sousa Santos.
Passados
trinta anos da publicação de “Introdução
Crítica ao Direito”, no primeiro volume da coleção O Direito Achado na Rua,
cuja apresentação coube a José Geraldo de Souza Júnior, esta nova escola
institucionalizou-se em programas de mestrado e doutorado da Faculdade de
Direito e do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares e em disciplinas na
graduação e na pós-graduação em Direito da UnB. Além de constituir linha de
pesquisa certificada pela Plataforma Lattes do CNPq. O Golpe de 64 não foi
capaz de deter a retomada da consciência jurídica nacional que, no caso da
Universidade de Brasília, brotou novamente como uma flor na pedra. Mas, como
dizem os poetas, nem tudo são flores.
As
academias de Direito, públicas e privadas, adotaram, desde o advento da nova
ordem democrática, uma visão do constitucionalismo
hodierno que se tornou uma forma aprimorada de positivismo, como alerta Luiz
Moreira, para o monopólio da normatividade e submissão das demais disciplinas à
sua formalização. Os critérios principiológicos abertos na interpretação
constitucional, segundo Moreira, conduziram praticamente ao esvaziamento dos
resultados obtidos pela atividade política e pela atividade parlamentar
constituinte, cuja legitimação proveio diretamente da soberania popular. Um truque
hermenêutico que possibilitou aos juízes e aos promotores subjugar a
democracia, malgrado sejam agentes públicos imunes ao sufrágio crítico das
urnas, instaurando em todo o sistema uma grave crise de legitimidade.
Em suas Confissões Darcy Ribeiro descreve em detalhes as
discussões que travou com o procurador da República “Manes” quando esteve preso
em um batalhão do Exército. Em longos interrogatórios realizados na presença de
seu advogado, Darcy apelava para o senso de Justiça de seu carrasco, na tentativa
de demovê-lo do compromisso com a acusação sistemática, formulada para agradar
ao governo ditatorial. Os militares,
entre as múltiplas imputações de subversão, não o perdoavam pelo que havia
feito na Universidade: seu crime maior era ter reunido na UnB intelectuais
capazes de pensar o Brasil com independência. O estatuto da magistratura foi
estendido ao Ministério Público pela Assembleia Nacional Constituinte para
evitar que cenas deploráveis como esta se repetissem na vigência da
Constituição de 1988.
A interpretação constitucional que setores retrógrados da
magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de
suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar
monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar
Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber
seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura
equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito
Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz
de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias
que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a
afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda
comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e
Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica.
*Artigo originalmente publicado em IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (https://iree.org.br/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/).
Antonio Carlos Bigonha
Compositor, pianista e Subprocurador-Geral da República
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