O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

 

Deu Nisso! Cláudio Almeida

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

Deu Nisso! Cláudio Almeida. Belo Horizonte: Edição do Autor. Gráfica Rede, Verão de 2021, 341 p.

 

 

Quando José Nunes, o editor do Sítio Como eu Escrevo?! – https://comoeuescrevo.com/arquivo/ -, pediu-me para eu explicar o meu processo de escrita (https://comoeuescrevo.com/jose-geraldo-de-sousa-junior/), acabei por sintetizá-lo na constatação de que a escrita é um diário do cotidiano, ainda que ao modo do camponês de Saramago. Antes de tudo, “uma disposição, um estar atento, um modo de olhar que surpreenda o que se exponha diante dos olhos, tal como o camponês de Saramago, que esculpe a madeira com a disposição de que a figura vai sair em face do talho, não porque ele a desenhou mentalmente, mas porque mentalmente ele estava disponível para reconhecê-la, no momento em que a madeira, na sua linguagem própria, a expressasse. Não sei se isso está escrito em seus livros, mas ouvi do próprio escritor, em seu discurso de agradecimento quando recebeu o honoris causa na UnB, em 1997 e descreveu o seu processo de escrita”.

Mas, eu acrescento, um cotidiano que é um ir e vir entre a existência e a consciência, entre o sentir e o agir, entre o filosofar e o fazer a crônica do mundo. Tratei desse trânsito em minha coluna Lido para Você, ao comentar a dissertação de Mestrado de Luiza de Andrade Penido (PENIDO, Luiza de Andrade, Direitos Humanos nas Entrelinhas das Crônicas de Carlos Drummond de Andrade (Publicadas no Caderno B do Jornal do Brasil, entre 1969-70 e 1983-84), Dissertação de Mestrado. Orientador Menelick de Carvalho Netto. Brasília: Universidade de Brasília/CEAM/PPGDH-Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, 2020), conforme http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-nas-entrelinhas-das-cronicas-de-carlos-drummond-de-andrade/: “É nesse processo que a Autora encarta, agora já armada para desentranhar de seus contextos as entrelinhas dessas emergências, o que faz a partir das crônicas de Carlos Drummond de Andrade, “o enlace entre direitos humanos e literatura”, que em seu narrador-autor-guia, é feito de sentimento do mundo, talvez porque, conforme ele próprio se revela, “de um modo geral falo em minhas crônicas do que me revolta” (p. 82). E a revolta, mostrou Albert Camus (O Homem Revoltado), é o núcleo onde se instala o sentimento de injustiça que, em Drummond, com as contradições de um pensamento forjado em seu tempo, diz a Autora, carrega uma proposta para “novos modos de ver, mostrando sua expectativa por uma experiência mais humanista” (p. 133)”.

Posso dizer que reconheço em Cláudio Almeida, essa disposição de trânsito, que enlaça mundo e sentimento de mundo, no seu agir político e nas suas muitas formas de o exprimir. Conforme li na orelha dessas crônicas Deu Nisso!, Claúdio nasceu e teceu os nós que formam o emaranhado de uma vida plena, rica em referências e chamados intersubjetivos, a partir de um percurso da família de origem à família que ele próprio lega, já rica em descendentes. Não por acaso reuniu os elementos para seus livros de poesia e os de crônicas, estes que aqui se destacam deixando de lado os escritos técnicos, profissionais, políticos e, em especial, aqueles que se integram a interpretar a memória e a história política brasileira e da Universidade de Brasília. O primeiro “Viu no que deu?” e este “Deu Nisso!”.

Para situar o Autor valho-me da orelha do livro. Nela há uma nota biobibliográfica que pode ser tomada como uma apresentação do escritor: Cláudio Almeida, nasceu em Belo Horizonte, de onde trouxe na bagagem a paixão pelo Galo (para sua alegria, o ano que publica o livro é o mesmo que marca a grande vitória do Galo como campeão brasileiro). Foi para Brasília, em 1960, por ocasião da transferência da Capital Federal, do Rio de Janeiro para o planalto, pois seu pai era Deputado Federal por Minas Gerais. Estudou nas principais instituições públicas do Distrito Federal, como o CASEB, Elefante Branco, CIEM, Universidade de Brasília e Universidade do Distrito Federal, esta privada, participando sempre das atividades políticas dos Diretórios e Centros Acadêmicos, com atuação marcante na luta contra a ditadura militar. Tem formação em economia, direito e história e especialização em Planejamento Regional, Global e Setorial, com pós-graduação em Planejamento Regional e Direito Legislativo. Trabalhou no Ministério dos Transportes, do Interior e Organismos Internacionais, como OEA, PNUD e ILPES. Aposentado pelo Senado Federal, como Consultor Legislativo e continua advogando. Fez parte da Comissão da Verdade Anísio Teixeira, da Universidade de Brasília, atuando também nas Comissões da Verdade de Minas Gerais e São Paulo. Pai de quatro filhos, Rafael, Raquel, Renata e Giovanna, seis netos e uma bisneta. Publicou o livro de crônicas, “Viu no que deu?”, de poesias, “Vácuo” e a ficção O Terapeuta – um grupo de terapia. 

Já na Apresentação do livro Cláudio se indaga: “Taí mais uma grande pretensão minha. Outro livro de crônicas. Quando me lembro dos cronistas contemporâneos de Minas Gerais, tenho que pedir uma licença literária especial, pois não estarei naquele rol, mas apenas agradecer seus ensinamentos, instrumentais fundamentais para me aproximar deste grupo tão seleto, formado por escritores. A primeira experiência possibilitou-me transpor esse tapume quase indevassável, que é o ato de publicar algo e ser objeto de crítica, tornar-se transparente. Pois bem, esse suporte veio com o “Viu no que deu?”, de crônicas, todas elas vivenciadas e adaptadas para publicação. A resposta foi positiva, principalmente por parte das pessoas que me procuraram para demonstrar seu impacto diante daquele trabalho”.

A narrativa deste belo livro, assim, de resto, em geral em livros de crônicas, deriva da memória do autor, não apenas sobre fatos ocorridos mas do modo como ele os recorda (Garcia Márquez, Viver para Contar). Tal como já o mencionei (http://estadodedireito.com.br/meninos-do-rio-vermelho/), não se trata artificializar, de inventar a vida, mas é uma experiência certamente recriada pela memória que descobre significados marcantes na vida, em reminiscências que deslumbraram, emocionaram, fizeram sofrer, e algumas enlutaram, no roldão das profundas transformações que alcançaram o itinerário, sendo as crônicas como que fragmentos, fios, entrelinhas que se desenrolam entretecendo a existência.

Presente no livro com texto prefacial, nosso documentarista maior Vladimir Carvalho, preciso nas imagens e nos seus roteiros, apreende o movimento fluente das crônicas: “Falando de si e de terceiros, o cronista soube tratá-los com ternura e tocante solidariedade, e até com romântico lirismo, que, sem dúvida, atenua a impressão de que a caudal da vida passa como um rio desenfreado, que por vezes emana da força dessas crônicas”.

Na mesma condição prefacial – a seu pedido escrevi para o livro, que terá suas sessões de lançamento a partir de março, o texto de abertura Então, a Vida Deu Nisso!. Prefácio, mas podia ser também Posfácio. Nele digo que Claúdio traz com este livro, nas suas crônicas, seguindo Lobo Antunes, a densidade de seus personagens, encarnando humanamente as figuras de sua memória, não fosse a memória em sentido filosófico o outro campo de desvendamento a que o autor se dedica, como membro da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília (http://estadodedireito.com.br/relatorio-da-comissao-anisio-teixeira-de-memoria-e-verdade-da-universidade-de-brasilia/).

O próprio Claúdio o diz: “Como no primeiro livro, todas as crônicas já estavam prontas em minha cabeça, faltando apenas um empurrão para escrevê-las. E deu nisso! Nelas estão consolidadas as circunstâncias e meus momentos de vida”.    Em Deu Nisso!, assim como, antes, em Viu no que Deu!, Claúdio mostra que não só sabe lidar  com a matéria do escritor, mas dominar o ofício. Explico-me. Há algum tempo li, na Folha de São Paulo, uma entrevista com o escritor português Lobo Antunes, que rivaliza hoje com Saramago em Portugal. Lobo Antunes, discorrendo sobre o seu ofício salienta que todos os seus livros (e eu diria, todos os livros) estão carregados de autobiografia.  O livro de Claúdio está também carregado de autobiografia mas, como diz o escritor português, revelando a condição de verdadeiro escritor exatamente para ser mais ainda profundamente autobiográfico porque começa a “se libertar desta carga” de autobiografia. Quer dizer, para além da autobiografia e das ideias que organiza, ele mostra saber lidar com o único que faz o escritor de verdade escritor, as palavras. E o faz como poucos, com delicadeza, com sensibilidade, com sentido de humanidade

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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