EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: entre as Diretrizes Curriculares Nacionais e o Exame de Ordem.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Thiago Fernando Cardoso Nalesso. EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: entre as Diretrizes Curriculares Nacionais e o Exame de Ordem. Doutorado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021, 305 p
A obra aqui lida é a Tese de Doutorado, defendida perante a Banca Examinadora formada pelos professores e professoras Dr. Márcio Pugliesi (Orientador) – PUC-SP, Dr. Álvaro Luiz Travassos de Azevedo Gonzaga – PUC-SP, Dra. Maria Vital da Rocha – UFC, Dra. Regina Vera Villas Bôas – PUC-SP, Dr. Caio Gracco Pinheiro Dias (Suplente) – FDRB-USP, Dr. Willis Santiago Guerra Filho (Suplente) – PUC-SP.
Tive a honra de integrar a Banca Examinadora, vivenciando o impacto de dupla sensibilização, de um lado como que ser transportado para um tempo de viva interpelação provocada pelo maior movimento de crítica ao jurídico no campo do conhecimento e do ensino do Direito; de outro, na condição de examinador, me surpreender na condição, de certo modo, de integrar o objeto de estudo, já que, em seu âmbito, direta ou indiretamente participei como protagonista de todos os processos, articulações e eventos ativados nessa conjuntura, no MEC (Comissão de Especialistas de Direito, Exame Nacional de Cursos, ENADE, Secretaria de Educação Superior/Diretoria de Educação do Ensino Superior, SINAES), no Conselho Federal da Ordem dos Advogados (Comissão de Ciência e Ensino do Direito, depois Comissão de Ensino Jurídico, logo Comissão de Educação Jurídica, Conferências Nacionais da OAB), no Conselho Nacional de Educação (Sistema de Avaliação de Cursos) e na Universidade, professor, Diretor da Faculdade de Direito, Reitor, da Universidade de Brasília.
O escopo do trabalho pode ser apreendido do bom resumo preparado pelo Autor:
“Neste trabalho avaliam-se os efeitos das Diretrizes Curriculares Nacionais do MEC e da atuação da OAB, por meio da Comissão Nacional de Educação Jurídica e do Exame de Ordem, em relação à qualidade da educação jurídica brasileira, com ênfase na questão curricular. Além disso, analisam-se o desenvolvimento histórico e a fundamentação político-ideológica e epistemológica dos cursos de Direito no Brasil, seguidos pela descrição e interpretação do direito regulatório educacional e o surgimento e desenvolvimento das Diretrizes Curriculares Nacionais. Verificou-se que o Exame de Ordem, criado para atestar a capacidade mínima para o exercício da advocacia, se converteu em instrumento de aferição de qualidade da educação jurídica ofertada por instituições de ensino superior no Brasil, além de ser utilizado como insumo principal para a concessão do “selo de qualidade OAB Recomenda”. A utilização do Exame de Ordem como parâmetro de qualidade de serviços educacionais, sem a devida adequação metodológica, influencia um processo de padronização curricular com resultados negativos na inovação, especialização, regionalização e flexibilização dos currículos jurídicos, e, em certa medida, contradiz esforços realizados pela Comissão Nacional de Educação Jurídica da OAB. Por outro lado, no processo de análise e avaliação, ficou evidenciada a importância e a necessidade social do exame, que cumpre função de proteger os direitos e liberdades dos cidadãos, o que levou à conclusão sobre a necessidade de ajustes na metodologia da avaliação do Exame de Ordem e do selo de qualidade da OAB para que se tenha maior eficácia na consecução de suas finalidades”.
E no Sumário que segue ao resumo:
Introdução
1 – Desenvolvimento histórico e fundamentação político-ideológica e epistemológica dos cursos de Direito no Brasil
1.1 – A criação e o desenvolvimento dos cursos jurídicos no Brasil: do Império à Primeira República
1.2 – Fundamentação político-ideológica na criação e consolidação dos cursos de Direito no Brasil: bacharelismo e liberalismo-individualista
1.3 – A Reforma Francisco Campos
1.4 – O período da Constituição democrática de 1946 e a criação do currículo mínimo
2 – Direito Educacional e currículo dos cursos de Direito
2.1 – Direito Educacional brasileiro: princípios e estruturas fundamentais
2.2 – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior e Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes
2.3 – Direito Educacional e Conselhos Profissionais
2.4 – Diretrizes Curriculares Nacionais – DCN
2.5 – Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Direito
3 – A Ordem dos Advogados do Brasil e a educação jurídica
3.1 – A Comissão Nacional de Educação Jurídica – CNEJ
3.2 – Selo de Qualidade “OAB Recomenda”
3.3 – Criação do Exame de Ordem
3.4 – Exame de Ordem: características, críticas e constitucionalidade
3.5 – Exame de Ordem em Números
Conclusão
Referências
Anexos
Com o apoio de boa bibliografia o Autor repõe o percurso histórico-político e epistemológico que demarca a constituição do campo, retardatário na institucionalização que teve na América instituições inclusive universitárias desde o século XVI e aqui somente no século XX, com a anterioridade dos cursos jurídicos criados em 1827 e propõe um modo de seguir as etapas de desenvolvimento histórico e fundamentação político-ideológica e epistemológica dos cursos de Direito no Brasil, com a criação e o desenvolvimento dos cursos jurídicos no Brasil: do Império à Primeira República e a fundamentação político-ideológica na criação e consolidação dos cursos de Direito no Brasil: bacharelismo e liberalismo-individualista, até chegar às reformas empreendidas nesse período.
A leitura não sofre a redução esquematizante dos esforços classificatórios, atenta a advertência de Jorge Luis Borges, para quem toda classificação carrega algo de arbitrário e de conjectural (no conto O Idioma Analítico de John Wilkins). Não por caso, o Autor abre a sua tese com uma epígrafe de Roberto Lyra Filho (em Por que estudar Direito hoje?), que não admite epistemologicamente render-se às pré-compreensões que se insinuam nos discursos teóricos e técnicos, de boa ou de má-fé, consciente ou inconscientemente. Tivesse avançado mais em Roberto Lyra Filho, sobretudo em O Direito que se Ensina Errado, e mais seguro ainda estaria sobre as questões de conhecimento e as questões pedagógicas que atormentam e desorientam os pesquisadores nesse tema. Com efeito, para Roberto Lyra Filho o ensino errado do Direito, resistente a todo esforço de reforma, deriva de duplo equívoco: a inadequada apreensão do objeto de conhecimento (crítica ao positivismo e ao jusnaturalismo) que vai determinar os defeitos da pedagogia; “não ensina bem o Direito quem o apreende mal”.
De certo modo, essa é a mesma advertência feita por Joaquim Falcão, Sérgio Ferraz e José Lamartine Correa em seu relatório sobre a crise do ensino jurídico no Brasil, apresentado à reunião de 1990 do Colégio de Presidentes da OAB, e que motivou a criação da Comissão de Ciência e Ensino Jurídico pela OAB (ato de Marcello Lavénère Machado) e que tive a honra de integrar como membro. Conforme transcrito no primeiro volume da Série Ensino Jurídico OAB: Diagnóstico, Perspectivas e Propostas, a crise do ensino de Direito devia-se “à praga do positivismo que assola o ensino jurídico”.
Uma leitura de Barthes (BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Editora Cultrix, sd, o original francês Leçon foi publicado em 1978), orienta o percurso da formação. Há um tempo para ensinar-se o que se sabe; vem em seguida outro tempo, para ensinar o que não se sabe, o que se chama pesquisar; mas há ainda um outro tempo, o do desaprender, “de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos”. Manoel de Barros deveria ser uma leitura necessária na bibliografia dos cursos jurídicos, pelo menos O Livro das Ignorãças, aonde está Uma Didática das Invenções: “desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”.
Trata-se de uma preocupação relevante nesse campo. Basta ver que apenas no âmbito da OAB, à luz de suas Conferências Nacionais, a primeira realizada em 1958, a XXIV convocada para 2021 mas adiada por causa da pandemia, o tema do ensino jurídico, juntamente com o do acesso à justiça, são os dois recorrentes, em todas as Conferências. Em 1958, com Ruy de Azevedo Sodré, ao lado da preocupação com a “proliferação” dos cursos de direito (não deviam ser mais que 20 em comparação aos mais de 1700 atuais), o zelo para que a advocacia não fosse considerada apenas uma profissão, mas uma função social, um múnus público, de fato constitucionalmente reconhecida como atividade essencial à administração da justiça.
Penso que reside nessa preocupação o cuidado com que o Autor assenta já na página 11, o exame das questões que traz para seu estudo: “Dessa maneira a pesquisa realizada passou pelo campo: a) do Direito Educacional, no que se refere ao conjunto normativo que orienta o processo de autorização, funcionamento e definição curricular e metodológica dos cursos de Direito, b) pela sociologia jurídica, ao buscar compreender o papel exercido pela entidade corporativa mais representativa das profissões jurídicas no Brasil, a OAB, na educação jurídica brasileira e, c) da Filosofia do Direito, na medida em que toda definição curricular elege um recorte e uma perspectiva vinculados a uma certa forma de concepção do fenômeno jurídico, mesmo que se busque ocultar tal escolha, que, para ser descortinada, depende de um processo analítico de base filosófica. De outro, a análise crítica do ensino jurídico e de suas crises, em grande parte, é realizada por meio de estudos no campo da epistemologia, ou metodologia jurídica, o que reforça a perspectiva de análise filosófica”.
Tal qual o Autor, mesmo depois de ter contribuído efetivamente para a construção dos fundamentos que balizaram todo o processo de reorientação da educação jurídica brasileira, sobretudo a partir de 1990, com a OAB, nas minhas leituras posteriores, já desligado da institucionalidade operante no implemento das diretrizes e dos parâmetros do ensino do Direito, sempre que tratei do tema ensino jurídico o fiz com cuidado semelhante. Assim meu prefácio no livro ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva (Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007, 288 p.), resultado de dissertação que orientei – http://estadodedireito.com.br/a-descoberta-de-novos-saberes-para-a-democratizacao-do-direito-e-da-sociedade/ – tendo mencionado que, se então o Autor, anotava a exigência do que denomina um balanço empírico mais sólido acerca da implementação das Novas Diretrizes Curriculares e do efetivo aproveitamento de inovações como Núcleos de Prática Jurídica, Atividades Complementares, etc., para a organização de projetos pedagógicos fundados nos ou orientados aos direitos humanos, tal atitude ganha ainda mais urgência quanto o Conselho Nacional de Educação vem de expedir uma Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito (Parecer CNE/CES n. 635/2018, aprovado em 04/10/2018), embora a sua homologação coincida com uma conjuntura, politicamente tensa, como radical mudança no modelo político de governança.
Nessa ordem de consideração acrescentei que, conquanto os sinais já lançados exibam tremendos retrocessos epistemológicos, pedagógicos e políticos, com movimentos de clara intervenção (até aqui contido, com as salvaguardas constitucionais, pelo Supremo Tribunal Federal, em face a ataques à autonomia das universidades e à liberdade de ensinar), e também em operações hostis à vocação crítica e livre da educação em geral (leis de mordaças, escola sem partido), que já feriram gravemente a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), no tocante a fundamentos como flexibilidade curricular, interdisciplinaridade e redução dos elementos reflexivos do manejo pedagógico, é certo que na Revisão (Parecer n. 635/2018), apreende-se um vínculo não rompido como o movimento crítico e plural instaurado em 1994, com a Portaria n. 1886, conferido em 2004, com a Resolução n.9, guardando fidelidade a esses elementos estruturantes de uma orientação curricular, ainda que acessíveis a indicações de mais detida qualificação (conferir, nessa direção, o artigo de Horácio Wanderlei Rodrigues, ainda inédito no momento de redação deste comentário, mas já circulando restritamente, em seu esboço inicial – para depois se integrar ao volume 8 da Coleção Caminhos Metodológicos do Direito, coordenada pelos Professores Fabrício Veiga Costa, Ivan Dias da Motta e Sérgio Henriques Zandona Freitas -, Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Direito: Análise do Parecer CNE/ N. 635/2018.
Fiz essas observações para anotar, entre as indicações derivadas de balanços empíricos para o aprofundamento das promessas ainda não realizadas das diretrizes curriculares inauguradas com a Portaria 1186/94, a instigante pesquisa conduzida por Luciana Lombas Belmonte Amaral e que resultou em sua dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Mestrado em Direitos Humanos da UnB (CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares), com a orientação da Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa (Desafios à Educação em Direitos Humanos no Ensino Jurídico: um estudo a partir das representações sociais do estudante de direito. Brasília, UnB/PPGDH, 2017), dando conta de um percurso formativo no qual se deve semear reflexões críticas dos estudantes de direito para que possam identificar, nas naturalizações que se imbricam aos discursos do ‘mundo do direito’, o abismo que nos separam de nossas missões como cidadãos e profissionais das carreiras jurídicas para a transformação social (pp. 307-308, da Dissertação). Com muita satisfação constatei que Luciana transformou sua Dissertação em livro, recebendo a atenção editorial do estimado Plácido Arraes, que é também um dos meus editores http://estadodedireito.com.br/ensino-juridico-e-educacao-em-direitos-humanos-entre-hierarquias-sociais-e-redes-de-poder-do-mundo-do-direito/).
Menciono esses dois textos porque eles escapam da abordagem funcional, tão a gosto dos consumidores de projetos que servem a formatar o afluente mercado de ensino jurídico, para a alegria e o amealhamento de consultores, coaches, motivadores; e para a tranquilidade negocial de gestores e mantenedores do sistema de ensino superior.
Na contracorrente do stand up corporativo (comediantes de empresas), permanece o campo reflexivo dos formuladores autoreflexivos que balizaram os esforços de qualificação e de adensamento da educação jurídica cujo trabalho deu lastro ao conjunto de diretrizes que marcam as últimas três décadas no campo, contadas desde a instalação da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB (conferir a farta bibliografia por ela produzida sob a retranca da Coleção Ensino Jurídico), caracterizando verdadeiramente uma reinvenção do ensino jurídico.
Incluo nesse acervo o volume substancioso OAB Recomenda: um Retrato dos Cursos Jurídicos. Brasília, DF: OAB, Conselho Federal, 2001, 164p.), quando do lançamento do selo de qualidade que a Entidade confere para indicar os cursos que alcançam os patamares de qualidade conforme os indicadores das Comissões de Ensino Jurídico e de Exame de Ordem. Trabalho, aliás, bastante referido pelo Autor da Tese.
Entre os trabalhos que emolduram o rol de cursos certificados na primeira edição do Selo OAB Recomenda, chamo a atenção para a exemplaridade ainda insuperável que proporciona, o texto da Professora Loussia P. Musse Felix – Da Reinvenção do Ensino Jurídico: Considerações sobre a Primeira Década. Texto seminal, orienta para o conhecimento e a hermenêutica de uma virada político-teórica-funcional, designada como “ponto de não-retorno” que designa esse formidável movimento de reinvenção do ensino jurídico.
Com alcance equivalente, entretanto, com foco na construção do projeto didático, é o trabalho de Inês Pôrto, que o tempo ainda não superou, até porque as promessas e desafios desse movimento de reinvenção, em seu núcleo mais estritamente pedagógico-curricular, mal foram divisadas, predominando uma superficialidade implementadora de projetos que apenas arranham a exterioridade nominal dos enunciados formais das diretrizes.
Por isso a importância de retomar o trabalho de Inês Pôrto e o faço a partir do prefácio que preparei para o livro, depois também de ter orientado a dissertação que lhe deu origem.
Nele constato, em diálogo com a proposta da obra, que a publicação no começo dos anos sessenta do livro de Wright Mills “A Imaginação Sociológica”, trouxera para as ciências sociais a novidade heurística de uma capacidade, em si mesma qualidade do espírito, mas não apenas habilidade da razão.
O ineditismo do trabalho de Mills veio marcado, antes de tudo, por configurar a imaginação sociológica enquanto capacidade de passagem entre perspectivas – da política para a psicologia e desta para a sociologia, transitando “das mais impessoais e remotas transformações para as características mais íntimas do ser humano”, sensível às relações entre ambas.
A imaginação, numa época de imprecisões, de indefinições, de subentendidos, de incertezas e de inquietações em face de problemas sequer formulados, notadamente no campo das ciências sociais, se punha como reusa à indiferença ou à impotência perplexa, exercitando “razão e sensibilidade”, forma frutífera, diz Mills, de uma “consciência transformadora da história”.
O texto de Mills deu à imaginação um sentido metodológico claro, bem distinto do tratamento filosófico do tema, a partir de sua raiz psicologista, como aparece, por exemplo, nos “Ensaios”, de Montaigne, sensível à impossibilidade de livrar-se de seu domínio: “uma imaginação fortemente preocupada com um acontecimento pode provocá-lo (fortis imaginatio generat casum), dizem os eruditos”.
É este sentido que aparece nos trabalhos do grupo “Socialisme ou Barbarie”, para formular a compreensão do processo social-histórico, isto é, da tensão entre sociedade instituinte e sociedade instituída, da história feita e da história se fazendo, como invenção e como criação, por impulso de um imaginário radical que o funda. Na “Invenção Democrática” Claude Lefort trabalha o processo de reinstituição contínua do social e da democracia pelo imaginário dos direitos humanos. Cornelius Castoriadis em seu texto “A Instituição Imaginária da Sociedade”, revela a emergência histórica do novo, em decorrência do trabalho do imaginário.
Para Mirtes Mirian Amorim (Labirintos da Autonomia. A Utopia Socialista e o Imaginário em Castoriadis) em sua tese de doutorado, essa é a contribuição mais significativa de Castoriadis para o estudo da sociedade e da história: “a história não mais pode ser pensada numa visão tradicional, que quer tudo explicar através da Razão, baseada numa ontologia de determinidade; a história pensada como criação e a sociedade como a tensão entre o instituinte e o instituído somente possível numa visão que restituísse ao imaginário radical o seu papel de fundação do social-histórico”.
Surpreende-se, nesse processo, uma inflexão entre o que se pode chamar de imaginário referido às estruturas que determinam e categorizam o simbólico de uma realidade ou de uma época e a elas atribuem sentido e a própria imaginação como atividade, para configurar, tal como o faz Claude-Gilbert Dubois (O Imaginário na Renascença), uma distinção necessária. A distinção entre o “imaginário ‘especular’ do latim speculum, espelho – essa busca que postula uma relação narcisística de isomorfia com relação ao objeto, em virtude da origem da ilusão mimética que repousa sobre efeitos prolongados do ‘estado de espelho’ e da identificação” e o imaginário “simbólico”, enquanto “modo de significação constituído em linguagem não a partir de signos linguísticos, mas sim de imagens significantes”, por impulso de uma imaginação já não especular mas especulativa, “a qual consiste em transformar em redes de sentido o que só exprimia um campo de forças”.
O livro de Inês da Fonseca Pôrto – Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação – é um achado do selo editorial Sergio Antonio Fabris. Ele se coloca também como “tarefa e promessa” (Mills) de “espionamento do real pela imaginação”, capturando ângulos em que ele não se percebe observado e, desde a perspectiva de testemunho (“testemunho da construção do projeto didático-pedagógico na reforma do ensino jurídico”), avalia “o modelo central do ensino jurídico” e indica, na medida em que “a imaginação dê forma à vontade de transformação”, as possibilidades que ele comporta de abrir-se “a novas experiências – não vividas, mas possíveis”, como projeto de futuro.
Configurado a partir dos seus elementos característicos – a descontextualização (negação do pluralismo jurídico), o dogmatismo (exclusão das contradições e preservação dos processos unívocos de seu pensamento constitutivo) e a unidisciplinaridade (exclusividade de um modo de conhecer) – a Autora demonstra o impasse crítico a que chegou o modelo central de ensino jurídico e o esgotamento paradigmático de sua matriz positivista e formalista.
A abordagem de Inês Pôrto, fruto de seu protagonismo no processo, apreende nitidamente o foco de intervenção dos sujeitos nele engajados, principalmente o da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e interpreta, fielmente, a visão de crise do Direito que iluminou as reflexões sobre suas determinações e os elementos nucleares que ela articulou. Esses elementos, a meu ver (Anais da XVI Conferência Nacional da OAB) são, em sua dimensão epistemológica: 1) de representação social relativa aos problemas identificados; 2) de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção; 3) de cartografia de experiências exemplares sobre a autopercepção e imaginário dos juristas e de suas práticas sociais e profissionais. É por meio deles que se dá o balizamento para a superação da distância que separa o conhecimento do Direito de sua realidade social, política e moral, possibilitando a edificação de pontes sobre o futuro, através das quais possam transitar os elementos novos de apreensão e compreensão do Direito e de um novo modelo de ensino jurídico.
Daí o apelo à imaginação como método de interpelação do novo. Luiz Alberto Warat, o primeiro a propor uma didática do imaginário para o ensino jurídico (Manifesto do Surrealismo Jurídico), vale-se de Bachelard para indicar a imaginação como uma forma de interpelação, na medida em que nos propõe que “a possibilidade de pensar e sentir sem censuras, nos revela os segredos da singularidade, o ponto neurológico da diferença: o homem novo, aquele que não tem seus sonhos, seu imaginário censurado pela instituição e que organiza seus afetos sem desejos alugados”.
O trabalho de Inês Pôrto localiza na cartografia dos problemas definidos pela Comisão da OAB, conforme a coletânea de textos por ela coordenados (OAB Ensino Jurídico), a construção de “figuras de futuro” aptas a traduzir as perspectivas paradigmáticas para a edificação desse futuro, o qual não pode configurar-se, eu já o disse, senão sobre a consciência da responsabilidade que tem o ensino jurídico para a constituição das categorias novas apreendidas na leitura atenta da realidade social. Percebidas como demandas ao ensino jurídico, essas categorias constituem um novo imaginário que se nutre, diz Roberto Aguiar (O Imaginário dos Juristas), do diferente, do ousado e da recusa: 1) demandas sociais; 2) demandas de novos sujeitos; 3) demandas tecnológicas; 4) demandas éticas; 5) demandas técnicas; 6) demandas de especialização; 7) demandas de novas formas organizativas do exercício profissional; 8) demandas de efetivação do acesso à justiça; 9) demandas de refundamentação científica e de atualização dos paradigmas.
O livro de Inês da Fonseca Pôrto é a mais criativa leitura até agora sobre os caminhos e instrumentos que estruturam a reforma do ensino jurídico sintetizada nas diretrizes curriculares inauguradas na Portaria n. 1886\94, do MEC.
O eixo de sua leitura é a noção de exemplaridade enquanto, diz ela, “instrumento que criou condições para que cada curso jurídico refletisse sobre sua função social (diálogo com a realidade contextual em que se inseria), sobre suas experiências, através de outros cursos (o diálogo pela diferença, através dos referenciais comuns) e sobre as relações que definem o processo de ensino\aprendizagem (diálogo consigo mesmo)”.
Por exemplaridade entenda-se o singular. Contrariamente a uma renitente vocação funcionalista agarrada ao conforto de requisitos de objetividade, o trabalho de Inês sugere o risco do diálogo, o ouvir antes de predicar, a aposta qualitativa na promessa, sem condições a priori, a partir do projeto didático-pedagógico.
Em trabalho convicto e correto nos seus pressupostos (Faculdades de Direito ou Fábricas de Ilusões?) Eliane Botelho Junqueira analisa o modelo de ensino jurídico dos anos 1990 e questiona o seu modo de elaboração e o sentido de sua concepção, pondo-o sob suspeição pelo viés que “traduz-se em uma valorização da visão humanista” e “a direção dessas mudanças”, disfuncionais relativamente às demandas do mercado simbólico de ensino jurídico.
Inês não se deixa atemorizar em face de riscos e da subjetividade que eles introduzem no espírito da reforma. Ao contrário, ela sugere a pertinência da subjetividade, indicando que o significativo no modelo é que “a incompletude é a face da reforma que a transmuta num projeto de realização quotidiana e sem fim”, centrada no aprendizado do diálogo ou, conforme a sua formulação elegante, no aprendizado do aprendizado – “a construção da identidade de um perfil profissional, contextualmente engajado, deve criar condições para que os alunos aprendam a aprender”.
Esta, aliás, é aposição sugerida por Juan Ramón Capella (El Aprendizaje del Aprendizaje), que contrapõe a aprendizagem de simples manutenção pela aprendizagem renovadora, algo que se constitua mais que mera atualização, antes, um modo de aprender a aprender. Trata-se de um processo atento do observar-se no processo de aprender, examinando cuidadosamente as habilidades e interesses que se adquirem paulatinamente, e do despertar da própria sensibilidade intelectual e moral.
Uma condição, em suma, que pressupõe vencer o medo de aprender, de superar o temor, diz Capella, de não ser capaz de fazê-lo e que paralisa o esforço necessário, criativo, de enfrentar questões não resolvidas, abrindo-se à imaginação e não à memória, porque aprender não é recordar, mas saber integrar a aprendizagem de hoje, no conjunto de capacidades sempre disponíveis que se adquirem continuamente, no adestramento profissional e ao longo da vida.
Com efeito, a definição do perfil profissional na construção do projeto pedagógico é ponto estratégico na abordagem de Inês Pôrto. Ela se pergunta, com razão, como construir esse perfil e sua identidade, “sem que sejam enfrentadas questões inerentes ao processo formativo, como a diferença de visões de mundo e a criatividade?”.
Não se trata aqui de simplesmente aludir aos imperativos já definidos por Kant, como imperativos de habilidade ou de destreza, como o que se tem de fazer para alcançar uma finalidade razoável e boa (Fundamentação da Metafísica dos Costumes).
Em Kant, tal como Michel Villey já observara (Leçons D’Histoire de la Philosophie du Droit), de nada valem tais imperativos, ainda que se leve em conta que “todas as ciências têm uma parte prática, que se compõe de problema que estabelecem que uma determinada finalidade é possível”, se na clivagem por ele estabelecida (Le Conflit des Facultés), o ensino jurídico exclui do jurista a discussão de fundo acerca do justo (quid sit ius), objeto de análise do filósofo (na Faculdade de Filosofia), restando-lhe apenas (na Faculdade de Direito), estabelecer se um determinado fato ou ato seja lícito ou ilícito sob o ponto de vista jurídico (quid sit iuris).
No espírito da reforma, a determinação do perfil profissional remete ainda à imaginação como “interpelação criativa” e síntese de suas habilidades. A imaginação, diz Martha Nussbaun (Justicia Poética), é o “ingrediente indispensável ao pensamento público, com condições de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social”.
Inês atribui ao diálogo com o diferente a condição para o aprendizado do social. Esta condição, lembra Bistra Stefanova Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: Razão e Sensibilidade), leva a considerar “a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo o desenvolvimento da capacidade de imaginar e compreender, essencial na formação do bacharel”.
Inês Pôrto oferece um pertinente e instigante esquema de compreensão para quem pretenda elaborar projetos didático-pedagógicos de criação e de reorientação de cursos jurídicos em nosso País. Mas a Autora sugere como roteiro para empreender essa tarefa que “antes de falar sobre a sociedade, o ensino jurídico deve aprender a ouvi-la”. Seu trabalho aponta, assim, para uma constatação já enunciada por Boaventura de Sousa Santos (Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade) e que é decorrente dessa máxima: “A abertura das escolas à sociedade (ou à comunidade que as circunda) não significa a prestação técnica de serviços a grupos locais, pelos quais a sociedade vai à escola em busca de ajuda. A nova abertura deve significar um movimento contrário, em que a escola vai até a sociedade para transformar-se, para beber da fonte de outros saberes sociais, prestando serviços a si mesma”.
O livro de Inês da Fonseca Pôrto é fundamental para o entendimento das mudanças que ocorrem no ensino do Direito no Brasil e é um roteiro precioso para apoiar as leituras mais avançadas nas disputas de projetos-pontes para o trânsito em direção ao futuro da educação jurídica.
As diretrizes curriculares atualmente em vigor são decorrentes desse movimento formidável de crítica teórica e política que trouxe à realidade pedagógica um desenho criativo para aquelas “figuras de futuro” mencionadas no início deste trabalho.
Elas dialogam com esforços para estabelecer referenciais paradigmáticos para as práticas de operadores jurídicos, que procuram reconfigurar alternativas para o seu protagonismo teórico e político. Trata-se de um desafio urgente e atual que se põe à reflexão e aos esforços de modernização do sistemas de mediação, em sentido amplo, para tornar possível o mais alargado e democrático acesso à Justiça.
A reforma ainda é um projeto em debate, porém, como procede de fortes consensos já pactuados no plano político, estes valores emancipatórios orientam as atividades da educação superior e, em boa medida, já se fazem exigíveis por disposições que presidem o processo de credenciamento das instituições e de autorização, reconhecimento e avaliação dos cursos superiores. Basta observar, no tocante à avaliação (Lei nº 10.861/04 – Institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – SINAES), a condicionante responsabilidade social (art. 3º, III), “considerada especialmente no que se refere à sua contribuição em relação à inclusão social, ao desenvolvimento econômico e social, à defesa do meio ambiente, da memória cultural, da produção artística e do patrimônio cultural”.
No componente específico de aferição de desempenho dos cursos, o Exame Nacional de Desempenho Docente – ENADE, resgatando o que já se fazia no antigo Exame Nacional de Cursos (“Provão”), aprofunda a verificação do desenvolvimento das competências e habilidades que os alunos devem adquirir a partir dos eixos de formação fundamental, profissional e prática, por meio de uma prova (Portaria INEP nº 125/06, área de Direito) que tomará como referência um perfil de graduando com “sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da Justiça e do desenvolvimento da cidadania”(art. 5º).
São condições que armam o estudante para desenvolver competências e habilidades, não somente cognitivas, mas igualmente, atitudinais e afetivas, sem o que não poderá ele dar-se conta das alterações paradigmáticas que movem continuamente o seu horizonte de referências sociais e epistemológicas.
A partir da análise da última hipótese levantada na tese, que supõe serem os efeitos do Exame de Ordem contrários ao que a OAB defende por meio da Comissão Nacional de Educação Jurídica como elementos de qualidade em um curso de Direito, o Autor conclui que esses efeitos são os decorrentes da definição de conteúdos para a prova, principalmente da primeira fase, e das características da formulação das questões. Como demonstrado no corpo do trabalho, as questões da primeira fase exigem, majoritariamente, a memorização de normas legais, o que incentiva os cursos preocupados com seus resultados no ranking de aprovações do Exame de Ordem, e, consequentemente, com a possibilidade de conseguirem o selo “OAB Recomenda” (Já que o Exame de Ordem é, praticamente, o indicador único do selo), a privilegiarem uma formação que privilegie a memorização e o estudo da normatividade vigente, ou ainda, o “treinamento” dos estudantes na realização de provas objetivas, de maneira análoga aos cursinhos preparatórios.
Esse descolamento entre as proposições da CNEJ, desde sua criação, e o tipo de prova utilizada na primeira fase foi reconhecida (e citada no texto), inclusive por membros das próprias comissões do CFOAB, o que reforça a viabilidade da hipótese e permite que se reforce a importância de ajustes na elaboração de uma matriz de referência das provas do Exame de Ordem que privilegie competências e habilidades cognitivas em sintonia com o que se espera da formação jurídica para o tempo presente.
A CNEJ, durante as décadas que desenvolveu reflexões e proposições sobre os rumos da educação jurídica, já apresentou, de modo claro, o perfil de formação que entende compatível as necessidades da sociedade brasileira e de um mundo em transformação. As atuais DCN apresentam características que se conectam ao exposto, e a OAB tem sido a entidade que mais se esforça na defesa da elevação do padrão de qualidade dos cursos de Direito no Brasil.
O Exame de Ordem e o selo de qualidade possuem um elevado grau de influência nas definições de políticas curriculares e metodológicas das Faculdades de Direito, o que resta portanto, é a utilização estratégica desses instrumentos para efetivamente agirem como indutores de qualidade, em conformidade com o que defende a própria Ordem dos Advogados do Brasil e a Comissão Nacional de Educação Jurídica, em sintonia com a missão constitucional atribuída à Advocacia Brasileira, e como defendeu o ex-Presidente do Conselho Federal Rubens Approbato Machado, no VII Seminário de Ensino Jurídico da OAB, o ensino jurídico não pode ser, apenas, um mecanismo de reprodução, é preciso que as novas gerações de juristas sejam capazes de construir o Direito que permita a efetivação dos valores fundamentais da Constituição brasileira.
Mergulhar no exame das conclusões propostas na Tese, não é somente categorizar os enunciados que nas diretrizes de educação jurídica, para aferir a função, as competências e as habilidades do bacharel (parâmetros) e as condições de habilitação para o exercício profissional (exame de ordem); é também compreender o pano de fundo paradigmático e a armação das grandes questões que impactam o destino e o futuro de uma concepção de mundo e modos de existir e reexistir socialmente, é abrir as fibras de nossa própria consciência, política e teórica, para desvelar a matéria de que somos feitos, no encontro entre a nossa subjetividade existencial e nosso lugar intersubjetivo no mundo, animais políticos que somos e interpretes de nossas práticas inclusive intelectuais. Lembrando Paulo Freire,
“é fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal maneira que num dado momento a tua fala seja a tua prática”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.
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