O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

 

A Vulnerabilidade Comunicativa em Audiências nas Varas de Relações de Consumo

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

Tadeu Luciano Siqueira Andrade. A Vulnerabilidade Comunicativa em Audiências nas Varas de Relações de Consumo: uma Análise à Luz da Ecolinguística. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília – UnB. Brasília, 2021, 181 p.

 

         Perante a Banca Examinadora formada Professor Hildo Honório do Couto Orientador – UnB/PPGL, Professor Gilberto Paulino de Araújo, Examinador Externo à Instituição – UFT/Arraias, Professora Rosineide Magalhães de Souza, Examinadora interna – UnB/PPGL, Professor Kleber Aparecido da Silva, Suplente – UnB/PPGL e pom mim, examinador externo ao Programa, a tese tema deste Lido para Você foi defendida e aprovada.

            Na banca, para min, uma oportunidade dupla, reencontrar Tadeu Luciano Siqueira Andrade depois que ele seguiu meu curso O Direito Achado na Rua, na pós-graduação em Direito aqui na UnB, com um interesse que se reflete na inclusão de fundamentos dessa concepção crítica sobre o jurídico, agora aplicados ao seu próprio campo ecolinguístico na tese; e retomar a convivência com seu orientador, meu colega de universidade, com a memória de encontros embora fugazes na convivência universitária, instigantes, inteligentes.

            De Hildo um registro que confirma o acerto de Tadeu nos agradecimentos, sobre “sua ética e compromisso”, neste caso, com muita pertinência ao objeto da tese. Hildo manteve vivo intercâmbio com Roberto Lyra Filho, até que este deixasse a UnB, com a aposentadoria e logo falecesse. Atualmente, nós os amigos e colaboradores ainda estamos no esforço de recolher muitos dos inéditos desse grande pensador, em originais garimpados, em cartas. Na minha última Coluna Lido para Você, publicada a propósito de uma plaquete de Edson Nery da Fonseca – http://estadodedireito.com.br/minhas-memorias-da-unb-edson-nery-da-fonseca/ – noticio a descoberta recente em um sebo de discos em Recife, de uma carta de Roberto Lyra Filho para Edson (Edson Nery da Fonseca), de 1978, comentando suas disposições para as suas exéquias e as peças de Bach que gostaria fossem tocadas.

            Em minha coluna, recupero o episódio para programar com amigos o restauro de seu túmulo no cemitério paroquial de Santa Cândida em Curitiba e anoto, a propósito de outras recuperações, um episódio não registrado entre Roberto Lyra Filho e Eudoro de Sousa, que foi colega de Hildo no Instituto de Letras da UnB, um de seus fundadores.

            Transcrevo minha descrição do episódio: “Ouvi de Roberto Lyra Filho a recordação de um Eudoro de Sousa, apoplético em sua revolta contra um certo canalha que o desgostara e que ele, sem que ninguém conseguisse acalmar ou demover, queria encher a cara de balas; somente serenado, em risos, quando o próprio Roberto, com séria admoestação, o direciona: “Como, Eudoro, você, um helenista, quer encher de balas esse desafeto! Transfixe-o com uma lança!”.

            Por que faço isso? Porque exatamente em circunstâncias próximas, um achado de Roberto Lyra Filho, dito em conversa, com Hildo, entretanto muito elegante e estiloso na sua força expletiva e que poderia ter sido apropriado pelo interlocutor, mas que ao contrário, “por sua ética e compromisso” foi por ele preservado trazendo-o como epígrafe de O Que É Portugês Brasileiro (COUTO, Hildo H. Coleção Primeiros Passos nº 164. São Paulo: Editora Brasiliense, 2ª edição, 1986: “Num sistema injusto, se quisermos ser sérios temos que ser marginais, Roberto Lyra Filho”.

            Do que consiste a Tese diz o seu resumo:

            Com os avanços dos estudos acerca das interações comunicativas, surgiu a ecolinguística, que analisa a língua inserida em três meios ambientes: o natural, o mental e o social, considerando as inter-relações entre Povo, Língua e Território. A ecolinguística preocupa-se, sobretudo com as interações que se dão no ecossistema linguístico, seja entre os sujeitos ou entre esses sujeitos e o ambiente em que se encontram. Sabemos que as interações são diversas e ocorrem em contextos institucionais ou não institucionais. Esta pesquisa tem como objetivo geral analisar, à luz da linguística ecossistêmica, as interações nas audiências de relações de consumo no Juizado Especial Cível, situado no Fórum Regional do Imbuí – Salvador – BA, interrelacionando o direito e a linguagem com vistas à construção teórica de uma ecolinguística jurídica. Para compreender a ecologia das interações comunicativas nas audiências, adotamos os pressupostos teórico-metodológicos da etnografia correlacionados com a visão ecometodológica da ecolinguística. A pesquisa é de cunho qualitativo e adota as técnicas e métodos da análise de conteúdo. (BARDIN, 2002). A audiência é um evento sociojurídico e linguístico, envolve pessoas, papéis sociais distintos e contextos diferentes, onde se entrecruzam aspectos de natureza jurislinguística. Daí a construção de um diálogo teórico entre a ecolinguística e o direito, uma vez que a audiência apresenta regras tanto de natureza jurídica quanto interacional e sistemática. Na base teórica da ecolinguística, fundamentamo-nos em Capra (2020); Capra e Mattei (2018), Couto (2007; 2009; 2014; 2016), Araújo (2014; 2016), Bang & Døør (2016), Fill (2016) e outros. Na base jurídica, embasamo-nos em Cappelletti e Garth (1988), Lyra Filho (1995); Sousa Junior (2008, 2009, 2016); Sousa Santos (1994;  (2009) Drew e Heritage (1992), Goffman (2010; 2011; 2013) e outros. A pesquisa nos possibilitou compreender uma visão macro da vulnerabilidade comunicativa do consumidor nas audiências, pois as interações nos contextos forenses são mais amplas do que as definidas pelo direito estatal. Evidenciamos ainda que obstáculos de natureza linguística, social, cultural, política, econômica agravam a vulnerabilidade comunicativa do cidadão leigo, tornam o ambiente forense distante da realidade do jurisdicionado; propiciam relações assimétricas e violam direitos linguísticos”.

O tema traz grande novidade e assegura o ineditismo da tese desenvolver a abordagem comunicacional sob a perspectiva ecolinguísta. Eu próprio já havia participado de análise de trabalhos com o mesmo alcance empírico, porém, sob o impulso de teorias da comunicação. Assim, por exemplo, NEGRINI, Vanessa. Comunicação pública e efetividade da Justiça: uma análise dos processos comunicacionais nos Juizados Especiais Cíveis do Distrito Federal. 2017. 211 f., il. Dissertação (Mestrado em Comunicação)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017.

A dissertação de Negrini, noto que Tadeu a levou em consideração, incluindo-a em sua bibliografia, é o que está no Repositório, “aborda comunicação pública e efetividade da justiça a partir da análise dos processos comunicacionais no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis do Distrito Federal, à luz das teorias da comunicação pública, do direito humano à informação e sob a perspectiva do O Direito Achado na Rua. O objetivo geral é avaliar se as políticas públicas de comunicação e os processos comunicativos organizacionais, em vigor no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, contribuem para a efetividade indiscriminada, independentemente de fatores sociais como renda e escolaridade.”.

Mais próxima da perspectiva de Tadeu, em seu estudo sobre variações estilísticas em discursos do meio acadêmico (lembro da Autora acompanhando reuniões do Conselho da Faculdade de Direito da UnB) é a dissertação da atualmente professora do próprio Instituto de Letras da UnB Cibele Brandão, “Do discurso formal para o informal: um estudo de variação estilística no meio acadêmico”.

Seu estudo consiste, ela própria resume, na “descrição, por meio de microanálises interacionais, do comportamento de membros da comunidade acadêmica ao fazerem a troca do estilo formal pelo informal em situações de fala formais típicas do contexto institucional a que eles pertencem: reuniões de conselhos acadêmicos. A pesquisa se situa no campo da Sociolinguística Interacional e incorpora, para fins de análise, contribuições da metodologia etnográfica, da Pragmática e da Análise da Conversação aplicada a contextos institucionais. A variação estilística é analisada no meio acadêmico como estratégia discursiva de que o falante se serve para obter mais eficiência na comunicação. Demonstra-se, neste trabalho, que a caracterização de estilos na fala não pode ser feita mediante parâmetro único. Ela atende a uma combinação de fatores linguísticos e contextuais interrelacionados, em razão do caráter complexo e multifacetado que o discurso formal e o informal encerram. Esta pesquisa pode contribuir para os estudos de variação estilística na interação face a face, haja vista o papel que essa estratégia desempenha na competência comunicativa dos falantes”.

O trabalho de Tadeu Andrade é originalíssimo a partir do arranque epistemológico e a sofisticada armação narrativa que tece e organiza, com estilo e elegância, os achados de seu estudo de caso. O Sumário é uma vitrine dessa libação intelectual que Barthes bem enquadraria como “um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível (Aula, p. 47), abrindo mão de um pouco de todo poder (desde a sua consideração, em sede de semiologia literária, sobre o fascismo da língua –  Aula, p. 14):

 1 INTRODUÇÃO

1.1 Nada acontece por acaso: o porquê da pesquisa

1.1.1 Quando a esmola é muita, o santo desconfia: entendendo o caso

1.2 Relevância da pesquisa para as comunidades acadêmica e jurídica

1.3 Problema da pesquisa

1.4 Objetivos da pesquisa

1.5 Estrutura da tese

2 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

2.1 A metodologia na ecolinguística: desfazendo os equívocos

2.1.1 A proposta metodológica de Garner: desfazendo as metáforas

2.1.2 Bang e Døør: a perspectiva dialógica

2.1.3 Nash: o trabalho de campo ecolinguístico e o minimalismo empírico

2.2 A pesquisa em direito: dialogando com outras teorias

2.3 A pesquisa etnográfica e suas contribuições para a ecolinguística

2.3.1 Características da pesquisa etnográfica

2.3.2 Couto: a ecometodologia

2.3.3 Contexto da Pesquisa

2.3.3.1 Contexto espácio-temporal

2.3.3.2 O Fórum Regional do Imbuí: aspectos históricos

2.3.3.3 Colaboradores (as) da pesquisa

2.3.3.4 Critérios para a escolha dos colaboradores (as) da pesquisa

2.3.3.5 Ciclo da Pesquisa

3 ECOLINGUÍSTICA: UMA VISÃO PANORÂMICA

3.1 Conceito Preliminar

3.2 Breve Histórico

3.3 Haugen: da expressão ecologia da linguagem ao termo ecolinguística

3.4 Década de 90: ecolinguística como disciplina acadêmica

3.5 A ecolinguística na atualidade: o que se tem feito?

3.6 A ecolinguística: “revisitando” conceitos

3.7 A visão ecológica da língua: rompendo paradigmas

3.8 Princípios da ecologia aplicados à ecolinguística

3.8.1 Princípio do holismo

3.8.2 Princípio da interação

3.8.3 Princípio da adaptação

3.8.4 Princípio da evolução ou sucessão ecológica

3.8.5 Princípio da diversidade

3.8.6 Princípio da porosidade

3.8.7 Princípio de visão a longo prazo

4 ECOLINGUÍSTICA OU LINGUÍSTICA ECOSSISTÊMICA?

4.1 Ecossistema ecológico e ecossistema linguístico

4.1.1 Povo

4.1.2 Território

4.1.3 Língua

4.2 Os ecossistemas linguísticos

4.2.1 Ecossistema natural da língua

4.2.2 Ecossistema mental da língua

4.2.3 Ecossistema social da língua

4.2.4 Ecossistema integral da língua

5 A ECOLOGIA DAS INTERAÇÕES COMUNICATIVAS

5.1 Elementos da Ecologia das Interações Comunicativas

5.1.1 Cenário

5.1.2 Interlocutores

5.1.3 Fluxo interlocucional

5.1.4 Circunstantes

5.1.5 Componentes linguísticos

5.1.6 Componentes paralinguísticos

5.1.7 Elementos extralinguísticos

5.1.8 Regras interacionais

5.2 Tipos de interações

5.3 Características das interações institucionais

5.4 As dimensões relevantes na interação

6 JUIZADO ESPECIAL COMO ACESSO À JUSTIÇA: REALIDADE OU

UTOPIA?

6.1 Procedimento no JEC

6.2 Causas julgadas pelo JEC

6.3 Princípios norteadores do JEC

6.3.1 Princípio da oralidade

6.3.2 Princípio da simplicidade

6.3.3 Princípio da informalidade

6.3.4 Princípio da economia processual

6.3.5 Princípio da celeridade processual

6.4 Obstáculos do acesso à Justiça

7 O DIREITO ACHADO NA RUA: ASPECTOS HISTÓRICOS E

EPISTEMOLÓGICOS

7.1 Onde, quando e por que surgiu?

7.2 Por que O Direito Achado na Rua?

7.3 Aspectos epistemológicos de O DAR

7.4 Bases teóricas de O DAR

7.5 O direito está nos códigos ou na rua?

7.6 O DAR no contexto acadêmico atual: Ensino, Pesquisa e Extensão

7.7 O DAR e a ecolinguística: diálogos possíveis

7.8 O tripé de O DAR e a correlação com a ecolinguística

7.9 A Ecologia jurídica

8 A AUDIÊNCIA: UM ESTUDO À LUZ DA ECOLOGIA DA INTERAÇÃO

COMUNICATIVA

8.1 As Audiências no JEC

8.1.1 “Mais vale um mau acordo que uma boa briga”: a proposta de acordo nas audiências

8.2 Sujeitos da audiência

8.3 “Cada homem no seu lugar”: Onde se sentar?

8.4 “Quem cala consente”? A semântica do silêncio nas relações jurídicas processuais

8.5 “A careta fica na cara de quem faz”: Os gestos e os movimentos corporais durante a audiência

8.6 “Chegou a hora de a onça beber água”: quem e quando fala?

8.7 “O hábito faz o monge”: Com que roupa compareço à audiência?

8.8 “Antes escorregar com o pé do que com a língua”: aspectos linguísticos da audiência

8.9 “Manda quem pode; obedece quem tem juízo”: as regras das audiências

8.9.1 Regras prévias

8.9.2 Regras interacionais

9 APLICANDO A TEORIA DA ECOLOGIA DA INTERAÇÃO COMUNICATIVA ÀS AUDIÊNCIAS: ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

9.1 Descrição do contexto da audiência: da portaria à sala de audiência

9.1.1 Sala de espera

9.1.2 Pregão

9.1.3 Enquadre legal das audiências analisadas

9.1.4 Sujeitos da audiência

9.1.5 Espaço temporal da audiência

9.1.6 Disposição das partes integrantes da audiência: organização proxêmica

9.1.7 Vestimentas

9.2 A Ecologia da Interação Comunicativa da Audiência

9.3 Análise dos atos interacionais das audiências

9.3.1 Composição da mesa de audiência

9.3.2 Atos interacionais das audiências

9.3.3 Tomada de turnos: desenvolvimento do fluxo interacional

9.3.4 Retomada de turnos

9.3.5 Encerramento do fluxo interlocucional

9.3.6 Regras

9.3.6.1 Regras prévias de interação

9.3.6.1.1 Regras regimentais

9.3.6.1.2 Regras de ordem jurídico-processual

9.3.6.1.3 Regras de sequência dos atos processuais

9.3.6.1.4 Regras de uso de vestimentas

9.3.6.1.5 Regras de ordem linguístico-discursiva

9.3.6.2 Regras interacionais

9.4 Movimentos e gestos observados

9.5 Aspectos linguístico-discursivos

10 CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

ANEXO A – TERMO DE AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO

ANEXO B – TERMO DE AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO

APÊNDICE A – CORRELAÇÃO DOS SIGNIFICADOS DOS TERMOS TÉCNICOS NA LINGUAGEM JURÍDICA E NA COMUM

APÊNDICE B – RELATÓRIO DAS VISITAS AO FÓRUM REGIONAL DO IMBUÍ

APÊNDICE C – GLOSSÁRIO DE ALGUNS TERMOS JURÍDICOS CITADOS

APÊNDICE D – REGRAS INTERACIONAIS

 

A perspectiva ecológica, que o Autor traz para a Tese, como “um novo paradigma nos estudos acerca da linguagem”, aponta para uma “abordagem holística que se concentra nas interações e nas inter-relações entre o objeto que está sendo estudado e seu contexto. Não podemos analisar qualquer objeto sem nos ater às suas relações, seja com os outros objetos, seja com o ambiente em que se encontra”. Não se trata da inserção no âmbito epistemológico, da aproximação nesse campo proposta originalmente por Jan Christian Smut (Holism and Evolution), desde o século XIX, mas o modo teórico-metodológico inscrito num “pensamento ecológico da linguagem, como o estudo das interações entre uma língua e seu meio ambiente”. Vale dizer, “o estudo das interações verbais que se dão nos ecossistemas linguísticos”.

Aqui, penso, embora não diretamente referido, ao que vêm propondo como uma nova epistemologia de emancipação, decolonial, desde o Sul, tal como indica Boaventura de Sousa Santos, dispondo sobre “Ecologia dos Saberes”, conceito que nesse Autor conceito corresponde à busca de diálogo entre vários saberes que podem ser considerados úteis para o avanço das lutas sociais pelos que nelas intervêm”. É nesse sentido que se incorpora em O Direito Achado na Rua o conceito, desde A Crítica da Razão Indolente. Contra o Desperdício da Experiência (Editora Cortez), até o mais recente (2019), O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do Sul (Editora Autêntica).

Passo ao largo nesse tema, alinhado com a escolha teórica do Autor, deixando aos meus colegas de banca, todos do campo, a esgrima desse tablado, entre eles o seu Orientador Hildo Honório do Couto, como expressão síntese.

Assim é que atendo-me às minhas tamancas vou direto ao ponto enunciado desde o item 2.2 A pesquisa em direito: dialogando com outras teorias. Certo que o Autor justifica que a a “pesquisa não trata especificamente de uma temática jurídica, mas, como fora desenvolvida em um ambiente forense, consideramos procedente fazer algumas incursões acerca da pesquisa em direito, uma vez que geralmente, os estudos nessa área se dão com a análise do direito positivo e dogmático, vendo o fenômeno jurídico distinto e independente dos fatos políticos, econômicos e sociohistóricos, limitando-se ao estudo da teoria da norma, da argumentação e outros aspectos dogmáticos”. Segundo ele, coerentemente, “os juristas, talvez influenciados pela sua formação acadêmica, ignoram as questões sócio-políticas, fixam-se no interior das instituições com um enfoque técnico que não leva em conta o aspecto global do sistema”.

Poucos juristas se dão conta dessa redução, engolfados num senso comum ainda que teórico, como dizia Luis Alberto Warat (aliás, meu Orientador no Doutorado) sem a força epistemológica para exercitar o desentranhamento de seus discursos teóricos e técnicos, o que neles, consciente ou inconscientemente, se insinua na forma de pré-compreensões, de crenças, de ideologias jurídicas.

Essa a nota distintiva de O Direito Achado na Rua, enquanto campo de conhecimento e movimento com protagonismo na práxis jurídica. Mesmo aqui, combinando a inter ou hiper-discursividade na ecologia dos saberes, e com muito sabor a partir da literatura, em debate sobre tese de doutorado, aqui no IL (Justiça Indeferida: a Degeneração Política no Romance A Rainha dos Cárceres da Grécia, de Osman Lins. Cacilda Bonfim. Tese de Doutorado. Brasília: UnB/Instituto de Letras – Programa de Pós-Graduação em Literatura, 2021, 288 p.), – http://estadodedireito.com.br/justica-indeferida/.

Para diálogo com o trabalho de Tadeu Andrade, me socorra Balzac: “Quando um homem cai nas mãos da Justiça, deixa de ser um ser moral, mas apenas uma questão de direito ou de fato, como aos olhos dos estatísticos se transforma um número” (BALZAC, Honoré de. O Coronel Chabert, Otto Pierre, Editores, Ltda, São Paulo, Coleção Os Grandes Romances Históricos 2, sd).

Estou de acordo com o Autor quando diz:

Vivemos hoje em um mundo globalmente interligado no qual os fenômenos biológicos, psicológicos, sociais e ambientais são todos interdependentes. Para descrever esse mundo apropriadamente necessitamos de uma perspectiva ecológica que a visão de mundo cartesiana não nos oferece. (CAPRA, 1992, p. 14). Analisar um fenômeno que envolve aspectos interligados, por exemplo, o direito e a linguagem implica considerar uma rede de relações e não o indivíduo em si mesmo porque todos os elementos constitutivos da ecologia do direito, denominado por Capra e Mattei (2018) de ordenamento ecojurídico, estão interligados, e as transgressões são oriundas de visões que se contrapõem na sociedade. Por isso, recorremos a alguns aspectos de O DAR para analisar as interações na audiência como um evento jurídico que envolve sujeitos de direitos, aspectos jurídicos, linguísticos e papeis sociais distintos” (p. 26).

E, com ele, mantenho o acordo, na parte inclusive em que me traz para abonar a sua plataforma de investigação (p. 26-27):

Uma pesquisa fundamentada em uma perspectiva inter e multidisciplinar possibilitará uma visão crítico-reflexiva da crise do direito e formará um novo profissional apto a superar a distância entre o conhecimento do direito e sua realidade social, política e moral. Assim, edificar-se-ão pontes sobre o futuro, por intermédio delas transitarão os elementos de uma nova visão do direito e de um novo modelo de ensino jurídico, defende Sousa Junior (1996). Observando as relações intersubjetivas e os aspectos jurislinguísticos, evidenciamos que os profissionais do direito divinizam o positivismo jurídico, ficam submetidos à lei e colocam as normas estatais acima de tudo. Para eles, o direito é a lei, dizia Lyra Filho (1995). Nas audiências, a forma se sobrepõe ao conteúdo, e a preocupação do jurista é seguir um rito geral para uma situação específica. Para compreender a audiência como uma interação em que há sempre um sujeito vulnerável, espoliado, seja devido à condição socioeconômica, cultural ou linguística, usamos como aporte teórico-metodológico O DAR, haja vista essa linha de pesquisa buscar “superar a crise do direito entendido como a distância que tem separado o direito positivo da realidade dos fatos”. (SOUSA JUNIOR, 2016, p. 14). Esse distanciamento mostra a necessidade de o direito ser analisado na visão ecossistêmica em que tudo está conectado e interdependente, e o fenômeno jurídico vincular-se a questões de ordens diversas”.

Não diria melhor Anatole France (Da Submissão de Crainquebille às Leis da República. Crainquebille in FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens, Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1978):

Crainquebille sentou-se na sua banqueta acorrentada, cheio de espanto e admiração. Ele mesmo não estava bem certo de que os juízes se houvessem enganado. O tribunal escondera-lhe as suas íntimas fraquezas sob a majestade das formas. Ele não podia acreditar que pudesse ter razão contra magistrados cujas razões não compreendera: era-lhe impossível conceber que alguma coisa claudicasse numa tão bela cerimônia”.

Na abertura das considerações finais o Autor busca, numa epígrafe extraída de Boaventura de Sousa Santos, retirada de seu Para uma Revolução Democrática da Justiça São Paulo: Cortez, 2007), propugnar que o Direito seja politicamente apropriado pela cidadania:

“É preciso que os cidadãos se capacitem juridicamente, porque o direito, apesar de ser um bem que está na sabedoria do povo, é manejado e apresentado pelas profissões jurídicas através do controle de uma linguagem técnica ininteligível para o cidadão comum. Com a capacitação jurídica, o direito converte-se de um instrumento hegemônico de alienação das partes e despolitização dos conflitos a uma ferramenta contra-hegemônica apropriada de baixo para cima com estratégia de luta”. (SOUSA SANTOS, 2007, p. 69).

Sob a influência da leitura dessa obra, e a partir dos enunciados de O Direito Achado na Rua, tratei de distinguir sob essa perspectiva, dois níveis que pudessem articular essa possibilidade:  O nível restrito do acesso à justiça, que se reafirma no sistema judicial. E o nível mais amplo do mesmo conceito se fortalece em espaços de sociabilidade que se localizam fora ou na fronteira do sistema de justiça. Contudo, ambos os níveis se referem a uma mesma sociedade, na qual se pretende o exercício constante da democracia.

Claro que, numa perspectiva de alargamento do acesso democrático à justiça, não basta institucionalizar os instrumentos decorrentes desse princípio, é preciso também reorientá-los para estratégias de superação desses mesmos pressupostos. Principalmente pelo Poder Judiciário que se tem mostrado extremamente recalcitrante à abertura de espaços para a ampliação das condições democráticas de realização da justiça.

Nesse sentido, algumas contradições precisam ser resolvidas, conforme sugere Boaventura de Sousa Santos. Primeiro, criar condições para inserir no modelo existente de administração da justiça, a ideia de participação popular que não está inscrita em sua estrutura; segundo, superar o obstáculo de uma demanda de participação popular não estatizada e policêntrica, num sistema de justiça que pressupõe uma administração unificada e centralizada; terceiro, fazer operar um protagonismo não subordinado institucional e profissionalmente, num sistema de justiça que atua com a predominância de escalões hierárquicos profissionais; quarto, aproximar a participação popular do cerne mesmo da salvaguarda institucional e profissional do sistema que é a determinação da pena e o exercício da coerção; quinto, considerar a participação popular como um exercício de cidadania, para além do âmbito liberal individualizado, para alcançar formas de participação coletiva assentes na comunidade real de interesses determinados segundo critérios intra e trans-subjetivos (cf. http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/).

Em pesquisa respondendo a edital do Ministério da Justiça sobre modos de observar a Justiça e o Judiciário (Observatório do Judiciário, Série Pensando o Direito, UnB/UFRJ, PNUD/Secretaria de Assuntos Legislativos/Ministério da Justiça, Brasília, nº 15/2009.  Coordenação Acadêmica José Geraldo de Sousa Junior, Fábio de Sá e Silva, Cristiano Paixão e Adriana Andrade Miranda (http://pensando.mj.gov.br/wpcontent/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf)),  foi possível estabelecer junto a assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.

Nem precisaríamos de pesquisa para estabelecer essa ordem de considerações, se estivéssemos atentos aos conselhos de Dom Quixote a Sancho Pança sobre governança e administração da Justiça (Capítulos XLII e XLIII), o simplório, que “apesar de tonto”, tinha a “boa índole” para a “ciência que valha” e para o “firme propósito de acertar em todos os negócios” de governar e de distribuir justiça (ver, a propósito, em Jornal Estado de Direito, minha Coluna Lido para Vocêhttp://estadodedireito.com.br/conselho-aos-governantes/): “inda que alguns não entendam estes termos, pouco importa, que o uso os irá introduzindo com o tempo, de forma que facilmente se compreendam; e isto é enriquecer a língua, sobre a qual têm poder o vulgo e o uso”.

Assim é que, em contrapartida, conforme afinal constatamos na pesquisa, o que  exatamente pediam aqueles prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal era: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.

Sob essa mesma perspectiva é que o Autor pode encaminhar as  conclusões da Tese acentuando  proposições que confortam, sob a perspectiva do Direito e do Direito Achado na Rua, um programa que arme o jurisdicionado para capacitar-se com sua própria linguagem, para a titularidade dos Direitos: “i) pensarmos um novo estudo acerca das interações no contexto forense, sobretudo no Juizado Especial Cível; ii) refletirmos o ensino jurídico no Brasil, onde o futuro profissional do direito é preparado para estudar doutrinas como se o direito estivesse restrito aos tribunais e cristalizados nos códigos; iii) inserirmos, nos cursos jurídicos, os fundamentos da ecolinguística e de O DAR, visando à criação de uma ecolinguística jurídica; iv) desmitificarmos a audiência como um espaço restrito ao direito positivado, mas considerá-la com um ambiente fundamentado nas regras de interação de onde nasce o direito, devendo existir o verdadeiro diálogo e o respeito mútuo; v) adotarmos pressupostos da linguística ecossistêmica à audiência, uma vez que esse evento é uma interação muito mais ampla que a definida pelo direito estatal”.

De resto, na ilha de Baratária, melhor que qualquer licenciado ou bacharel, ainda que “mesclando as suas palavras e as suas ações com acertos e tolices”, pôde o simplório escudeiro exercitar a governança e distribuir Justiça, e ordenar “coisas tão boas, que ainda hoje se guardam naquele lugar e se chamam ‘As contribuições do grande Governador Sancho Pança” (Capítulo LI).

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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