O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

terça-feira, 21 de setembro de 2021

 OPINIÃO

A escravidão acabou, mas os escravocratas continuam aqui*

Rayane Andrade

RAYANE ANDRADE

14 de Sep de 2021 0

Um homem branco açoita, submete e amarra um homem negro quilombola nas ruas de Portalegre. O filme que registra o crime viralizou nas redes parece ter saído direto das telas de Jean-Baptiste Debret, artista pintou as imagens de crueldade da escravidão brasileira.

O peso simbólico das imagens causa ânsia, em especial a pessoas negras como eu. Aldebaran Freitas é o protagonista do ato racista. O comerciante branco não mostra vacilações durante a exibição do corpo de Luciano Simplício atado como se fosse um bicho.

O crime racista aconteceu em pleno 2021, exatos 132 anos após a determinação na abolição. O gesto brutal de Aldebaran Freitas é prova que por mais que a escravidão tenha acabado, o pensamento escravocrata continua presente.

E para entender a razão disto é necessário entender o que é o racismo. Segundo Mário Theodoro, o racismo é um sistema de opressão que transforma diferenças em desigualdades, fazendo a subtração da humanidade.

Ou seja, tira a condição de gente do outro, para transformá-lo em algo menor, inferior. Essa lógica foi fundamental para que os sequestros das populações negras em África se tornassem um grande negócio. Se não eram humanos, que mal havia em vendê-los? Chibateá-los? Arrancar suas línguas? Explorá-los até a morte? Vender seus filhos?

E muitos comerciantes ficaram ricos às custas dos navios negreiros, que eram tumbeiros flutuantes. Há estudos que dão conta que a rota dos tubarões mudou, diante do volume de corpos negros que eram desovados nesse rio chamado Atlântico[1].

Os mais de 300 anos de exploração desses corpos negros são sentidos até hoje. Luciano Simplício foi vítima de um crime continuado, que passa pelo estupro sucessivo das mulheres negras e deságua nos índices de extermínio da Juventude preta e parda nesse país.

E esse sistema pervertido foi mobilizado para a criação de fortunas em troca da miséria da maioria negra. É nessa população que a vulnerabilidade social é mais sentida. São a maioria no sistema prisional, acometidos de adoecimento mental e engolidos pelo mito da guerra às drogas.

A população negra carrega um trauma inconsciente, reforçado pela mídia hegemônica que nos representa em espaços subalternos e em fantasiosas pirâmides que não estão ao alcance de pessoas como Luciano.

Não existe plausibilidade para defender o crime praticado. O próprio argumento de dúvida sobre a necessidade do uso da força já é manifestação do pensamento racista.

Albebaran se identifica como apoiador de Bolsonaro e veste os arquétipos que circulam a ideologia do presidente. O “cidadão de bem” é um termo utilizado por esses setores que, não por acaso, era o mesmo nome do jornal da Klu Klux Klan, organização supremacista branca responsável por linchamentos e ataques às pessoas negras nos Estados Unidos.

As práticas racistas estadunidenses, registre-se, causaram espanto e admiração dos próprios nazistas, que as consideravam radicais demais. Segundo reportagem publicada na Revista Piauí[2]:

“Os nazistas ficaram impressionados com o costume norte-americano de linchar pessoas da casta subordinada de afro-americanos, tendo tomado conhecimento das torturas e mutilações rituais que em geral acompanhavam os linchamentos. Hitler sentia especial admiração pela “habilidade [norte-americana] de manter um ar de grande inocência na esteira das mortes em massa”

É esse o campo que a ideologia bolsonarista mobiliza. E evocam a lógica Casa Grande e Senzala para contemporizar essas agressões. Essa formulação defende que as relações raciais brasileiras seriam harmônicas e que aqui todos são misturados, impossibilitando a existência do preconceito de cor.

Bom, a miscigenação celebrada é produto do sistemático abuso sexual das mulheres negras, que produzem a sexualização sobre esses corpos de fundo animalizante. A tal harmonia racial é posto abaixo ao encontrarmos o caso de Simplício.

A verdade é que os sujeitos que produzem atos racistas tão eloquentes estão seguros da impunidade. Afinal, esse país explorou, perseguiu e lucrou o quanto pode o povo preto e lhes deu uma liberdade fajuta.

Quem foi indenizado com as alforrias não foram os negros submetidos a trabalhos forçados por décadas, mas os seus donos. E até hoje a reparação racial é uma miragem que os movimentos negros perseguem.

O que nos dá força para resistir e denunciar a violência racista contra Luciano Simplício é a herança de luta ancestral. As pessoas negras sempre resistiram. Palmares durou quase 100 anos. Tivemos a Revolta da Chibata, liderada por João Cândido que denunciava os castigos escravocratas aos seus companheiros de cor. Marighella enfrentou duas ditaduras e não abriu mão de seu sonho em ver uma sociedade livre. Tivemos Dandara e Aqualtune. Tivemos Marielle.

No ano que vemos essas cenas de horror serem reproduzidas, lembro se Luiz Gama e Esperança Garcia, juristas negros que se colocaram como adovgados das causas dos seus em pleno regime escravocrata. E, esperando que a apuração do ocorrido aconteça da maneira devida, trago a reprodução da carta de Gama ao seu filho, que fala do passado para esse presente de bondade cruel.

Meu filho, Dize a tua mãe que a ela cabe o rigoroso dever de conservar-se honesta e honrada; que não se atemorize da extrema pobreza que lego-lhe, porque a miséria é o mais brilhante apanágio da virtude.

Tu evitas a amizade e as relações dos grandes homens; eles são como o oceano que aproxima-se das costas para corroer os penedos.

Sê republicano, como o foi o Homem-Cristo. Faze-te artista; crê, porém, que o estudo é o melhor entretenimento, e o livro o melhor amigo.

Faze-te o apóstolo do ensino, desde já. Combate com ardor o trono, a indigência e a ignorância. Trabalha por ti e com esforço inquebrantável para que este país em que nascemos, sem rei e sem escravos, se chame Estados Unidos do Brasil.

Sê cristão e filósofo; crê unicamente na autoridade da razão, e não te alies jamais a seita alguma religiosa. Deus revela-se tão somente na razão do homem, não existe em Igreja alguma do mundo.

Há dois livros cuja leitura recomendo-te: a Bíblia Sagrada e a Vida de Jesus por Ernesto Renan.

Trabalha, e sê perseverante.

Lembra-te que escrevi estas linhas em momento supremo, sob a ameaça de assassinato. Tem compaixão de teus inimigos, como eu compadeço-me da sorte dos meus.

Teu pai Luís Gama.

Publicada apenas em 1930.

Data original: 23 de setembro de 1870. Fonte: Benedito, Mouzar (2011). Luiz Gama – o libertador de escravos e sua mãe libertária, Luíza Mahin 2 ed. Página: 34 São Paulo: Expressão Popular. ISBN 85-7743-004-9

 

[1] Descarte de escravos no mar mudou hábito dos tubarões, revela autor de livro sobre a escravidão. https://gshow.globo.com/programas/conversa-com-bial/noticia/descarte-de-escravos-no-mar-mudou-habito-dos-tubaroes-revela-autor-de-livro-sobre-a-escravidao.ghtml

* Publicado originalmente em https://www.saibamais.jor.br/a-escravidao-acabou-mas-os-escravocratas-continuam-aqui/

Nenhum comentário:

Postar um comentário