O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

domingo, 15 de agosto de 2021

                          O QUE O PERU ENSINA ÀS ESQUERDAS*

                                                        Boaventura de Sousa Santosd


 "Este movimento não ocorreu do nada. Teve antecedentes no movimento dos jovens urbanos que, em novembro de 2020, se revoltaram contra um governo ilegítimo e ocuparam as ruas de Lima em defesa da democracia, tendo dois deles sido assassinados. Foram violentamente reprimidos e por isso se transformaram na nova geração de heróis, os heróis do bicentenário. Esta conjunção anunciava a possibilidade de novas alianças intergeracionais e entre a cidade e campo, uma aliança que, neste momento, parece ter nova e particular importância noutros países (por exemplo, na explosão social por que passa a Colômbia neste momento)", escreve Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado por Outras Palavras, 12-08-2021.

 

Eis o artigo.

 

Posse de Castillo revela: denúncia de sistema político corrompido é bandeira dos que lutam pela igualdade. Será árduo governar: divisões atormentam a esquerda. Mas há esperança – na mobilização de jovens e indígenas que exigiu democracia.

O contexto internacional da terceira década do século vem sendo marcado pelo sério declínio da convivência democrática já, de si, congenitamente débil e seletiva. Esse declínio tem duas faces. Por um lado, o agressivo predomínio das forças políticas de direita mais conservadoras. No continente latino-americano essa agressividade manifesta-se na renovada presença da extrema-direita que se afirma de múltiplas formas: o discurso do ódio racial e sexual nas redes sociais, que por vezes se aloja impunemente no discurso político oficial (o mais nefasto legado de Donald Trump); a inculcação ideológica de perigos imaginados (o comunismo, o extremismo, ou o chip inserido nas vacinas) ou do negacionismo ante perigos reais (a gravidade da pandemia); o recurso à narrativa do golpe antidemocrático para restaurar uma ordem supostamente ameaçada por uma iminente subversão que, de fato, é milimetricamente planeada por quem se proclama ser a única opção para travá-la; a reemergência de grupos armados ilegais que atuam com a cumplicidade do Estado.

A outra face do declínio democrático reside na desorientação das forças políticas de esquerda. Também esta se manifesta de múltiplas formas: perda desarmante de contato com as necessidades, aspirações e narrativas de indignação das classes populares cujos interesses dizem defender; exclusiva concentração em estratégias eleitorais de curto prazo quando é cada vez mais incerto que haja eleições ou que estas sejam livres e justas; a emergência do novo sectarismo e dogmatismo, seja em nome da prioridade do desenvolvimento extrativista, seja em nome da prioridade das pautas identitárias raciais ou sexuais. Deste sectarismo decorre a incapacidade para identificar o que, apesar de tudo, une as diferentes forças de esquerda e para incidir pragmaticamente nesses pontos de união de modo a oferecer uma alternativa política credível (a vítima mais recente desse sectarismo foi a esquerda equatoriana depois do primeiro turno da eleições de 2021).

A convergência tóxica destas duas faces do declínio democrático está fazendo com que as populações vulnerabilizadas pelo capitalismo cada vez mais selvagem, pelo colonialismo eterno e pelo patriarcado não menos eterno busquem um de três caminhos consoante os contextos: sucumbam ao desespero e se resignem pela via do crime ou pela salvação no outro mundo, acolhendo-se mansamente como cordeiros à proteção dos lobos transcendentais do capital religioso; revoltem-se fora das instituições, dando origem a explosões sociais que podem incluir ocupações de zonas das cidades (Índia e Colômbia), saque de lojas e supermercados (África do Sul) ou destruição de estátuas de escravagistas e de assassinos dos vencidos da história (África do Sul, EUA, Colômbia, e, mais recentemente, Brasil); organizem-se para garantir a transformação do sistema político e social, usando os processos eleitorais para fazer eleger candidatos que prometam tal transformação. Só este último caminho garante o resgate da convivência democrática e por isso me concentro nele, sem, no entanto, deixar de insistir que ele tem lugar no contexto em que outros caminhos estão ou podem vir a ser seguidos em paralelo ou sequencialmente.

O caminho da transformação política tem hoje três faces principais no continente: o resgate por via da eleição de candidatos populares conhecidos depois da experiência cruel com governos de direita (México, com Lopez Obrador, Argentina, com Alberto Fernandez, Bolívia, com Luis Arce); resgate por via da transformação do sistema político através da convocação de assembleias constituintes (Chile); resgate por via da eleição de candidatos até agora desconhecidos mas cuja origem e trajetória legitima o risco de um cheque político quase em branco (Peru). Todos estes caminhos oferecem alguma esperança (pelo menos, a de respirar durante algum tempo, o que já não é pouco em tempos de pandemia e de pandemônio, como diria o Paulo Galo, a quem eu manifesto toda a minha solidariedade) e todos envolvem riscos. Centro-me no caso do Peru pela sua atualidade e complexidade.

Em 28 de julho passado, Pedro Castillo assumiu a presidência do Peru. Até há poucos meses, era um desconhecido político. Nascido em Tacabamba, a quase mil quilômetros de Lima, centro político do Peru, camponês humilde, professor da escola primária, rondero, (as rondas campesinas são patrulhas de defesa comunitária eleitas pelas comunidades camponesas e hoje legalmente reconhecidas pelo Estado), dirigente sindical, Pedro Castillo concentra em si as características das populações que sempre foram econômica, social e politicamente excluídas por razões classistas, racistas ou sexistas. O processo que culminou em 28 de julho é tão elucidativo do declínio democrático como da possibilidade de que ele seja resgatado.

Vejamos primeiro o declínio. As forças de direita tudo fizeram para impedir a tomada de posse de Pedro Castillo. Invocaram fraude eleitoral, recorreram a dilações processuais nas instâncias eleitorais, promoveram a demonização de Castillo nas mídias nacionais e internacionais (em que participou o patético Vargas Llosa), mobilizaram as Forças Armadas e as igrejas para travar a “subversão”. A situação era complicada porque Pedro Castillo tinha ganho as eleições por pequena margem. É hoje claro nas Américas (incluindo os EUA) que quem se propuser resgatar a normalidade democrática tem de ganhar por larga margem para não ser sujeito ao tormento da suspeita manipulada de fraude eleitoral. Já antes o havia mostrado Lopez Obrador, a quem roubaram várias eleições antes da que ganhou por uma diferença de muitos milhões de votos.

Desta vez, as forças de direita não conseguiram os seus objetivos porque foram confrontadas com um importante fator de resgate. É que Castillo identificava-se com excluídos da história do Peru. Uma em cada quatro pessoas se identifica como membro de um dos muitos povos indígenas andinos e amazônicos que têm sido vítimas dos projetos mineiros, extrativistas e aos quais se têm oposto com o risco das suas vidas. Segundo dados oficiais, que sempre pecam por defeito, entre 2001 e 2021 foram assassinados 200 defensores de direitos humanos envolvidos na defesa dos territórios.

Não admira que Castillo tenha obtido mais de 70% dos votos nas províncias em que as populações mais sofrem com os grandes projetos mineiros (Espinar, Chumbivilcas, Cotabambas, Celedín, Islay, Pasco, Ayabaca, Cañaris). Perante o perigo de lhes roubarem a eleição, milhares de indígenas e camponeses, ronderos, habituados a rondar as suas comunidades para garantir a segurança dos vizinhos, convergiram em Lima, vindas do Peru profundo, desta vez para vigiar e garantir a segurança de algo bem mais etéreo, o resultado das eleições, a própria democracia. Por isso, também não surpreende que, enquanto nos governos dos últimos vinte anos os ministros tinham nascido predominantemente em Lima – entre 62% no governo da Martin Viscarra e 87% no governo de Alejandro Toledo –, no governo de Pedro Castillo agora empossado apenas 29% nasceu em Lima.

Este movimento não ocorreu do nada. Teve antecedentes no movimento dos jovens urbanos que, em novembro de 2020, se revoltaram contra um governo ilegítimo e ocuparam as ruas de Lima em defesa da democracia, tendo dois deles sido assassinados. Foram violentamente reprimidos e por isso se transformaram na nova geração de heróis, os heróis do bicentenário. Esta conjunção anunciava a possibilidade de novas alianças intergeracionais e entre a cidade e campo, uma aliança que, neste momento, parece ter nova e particular importância noutros países (por exemplo, na explosão social por que passa a Colômbia neste momento).

Mas as dificuldades na eleição de Pedro Castillo e na composição do seu governo também revelam a outra face do declínio democrático que mencionei acima, a desorientação e a fragmentação das forças de esquerda. As alianças necessárias revelaram a existência de importantes fraturas entre as esquerdas. As fraturas são complexas e nelas convergem as velhas rivalidades táticas e estratégicas que sempre dominaram na esquerda tradicional e as novas rivalidades sobre a natureza e a prioridade das novas lutas contra a discriminação racial e sexual. Ao contrário do que sucedeu no Equador, a divisão não parece ser tanto sobre a prioridade da luta contra o extrativismo mineiro e a desigualdade social que ela provoca. Incide sobretudo na divisão entre esquerdas progressistas no plano da igualdade socioeconômica e conservadoras no plano dos costumes e identidades (igualdade de gênero e defesa das causas LGBTIQ) por um lado, e esquerdas progressistas nos dois planos e até, eventualmente, priorizando o segundo plano, por outro.

Esta divisão foi por vezes ocultada por acusações de extremismo que chegaram a envolver a memória da subversão guerrilheira (Sendero Luminoso), um perigo hoje definitivamente enterrado no Peru, o mesmo não se podendo dizer da subversão contra-revolucionária de extrema direita, na tradição nefasta do fujimorismo. Estas divisões foram patentes na constituição da mesa diretiva do Congresso e o resultado desastroso pode vir a revelar-se fatal para o governo de esquerda. Foram também patentes no processo de constituição do governo, mas aqui foi possível ultrapassá-las e o bom senso prevaleceu. Por agora, pelo menos. Nada disto é certo, exceto que as forças de direita e de extremas-direita estarão atentas e não perderão nenhuma das oportunidades que este governo de esquerda lhes dê para derrotar uma proposta de esperança que agora volta a iluminar o continente a partir do Peru.

No seu discurso de posse, o presidente Pedro Castillo usou a expressão quéchua Kachkaniraqmi que significa “sigo sendo”. Apesar de todas as exclusões e humilhações do passado, o povo humilde e trabalhador do Peru retoma, com a eleição de Pedro Castillo, a esperança de seguir sendo o garante da luta por uma sociedade mais justa. Esta esperança está presente de modo muito eloquente nas palavras de um dos mais importantes ministros do novo governo, Pedro Frankle, ministro de Economia: “Por un avance sostenido hacia el Buen Vivir, por igualdad de oportunidades, sin distinción de género, identidad étnica u orientación sexual. Por la Democracia y la concertación Nacional, ¡sí juro!”

 

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* http://www.ihu.unisinos.br/612012-boaventura-o-que-o-peru-ensina-a-esquerda

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