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sábado, 28 de agosto de 2021

 

A JUDICIALIZAÇÃO DA CIÊNCIA NA PAUTA DO STF: O CASO DOS TESTES PSICOLÓGICOS

 

Antonio Escrivão Filho – Advogado do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Membro do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua

 

João Diego Rocha Firmiano – Advogado do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Mestre em Criminologia pela Universidade do Porto (U.Porto), Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP)

 

Brasília, 20 de agosto de 2023. Maria Lúcia acorda cedo naquela árida manhã. Após o banho rápido, seguido do café, repassa com afinco o gabarito das respostas que deverá fornecer na avaliação psicológica, para conseguir tirar o porte de armas. A alguns quilômetros dali, e horas depois, o sargento Jeremias terminava o almoço quando o alarme tocou. Estava atrasado. Ainda não havia decorado as respostas, e em menos de trinta minutos iria se submeter à avaliação psicológica para definir se continuaria ou não afastado das atividades operacionais do batalhão. Avançada a tarde, Jorge havia recobrado a calma apenas segundos antes de ouvir chamar seu nome. Não tinha entendido parte das orientações que lera, sobre o comportamento que deveria apresentar na avaliação psicológica realizada no âmbito da ação de guarda movida contra ele.

Neste futuro algo insólito, instituições públicas e de justiça utilizam procedimentos técnico-científicos de avaliação psicológica para subsidiar a decisão em situações que envolvem potencial de letalidade ou direitos indisponíveis, mas os personagens submetidos à avaliação tem acesso prévio às questões que lhes serão formuladas, e decoram as respostas que devem ser apresentadas para um desfecho positivo para a sua pretensão, em detrimento do interesse público.

Insólito desde o aspecto narrativo, ilógico na perspectiva científica ou irrazoável do ponto de vista jurídico, este é o cenário prestes a ser projetado na apreciação, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, dos embargos de declaração na ação direta de inconstitucionalidade nº 3481, inserida na pauta do julgamento em lista virtual no próximo dia 20.

Proposta pela Procuradoria-Geral da República no longínquo ano de 2005, na ADI 3481 discute-se a constitucionalidade do dispositivo inscrito na Resolução CFP nº 02/2003, que previa a restrição da comercialização dos testes psicológicos para os profissionais de psicologia, no intuito de regulamentar o art. 13, § 1º, da Lei nº 4.119/62, quando determina que constitui função privativa das psicólogas e psicólogos a utilização de métodos e técnicas psicológicas para diagnóstico e questões de ajustamento psicológico. Na opinião ministerial, o dispositivo viola a Constituição, ao supostamente estabelecer obstáculo à produção científica e livre circulação de ideias no país.

Como desfecho inicial, em julgamento realizado em março de 2021 o Plenário declarou a inconstitucionalidade do dispositivo, em decisão por maioria de 7x4 conduzida pelo relator, Ministro Alexandre de Moraes, face à divergência suscitada pelo Ministro Edson Fachin, para quem a restrição da comercialização dos testes se apresentava como medida adequada e necessária para a manutenção da integridade dos instrumentos de avaliação, e neste sentido razoável face à previsão legal de aplicação compulsória de testes psicológicos em diferentes situações de elevado interesse público e inegável relevância social, seja na via administrativa – como o registro para o porte de armas de fogo, a aferição da sanidade compatível com a atividade policial, a habilitação para a direção de veículos automotores, pilotos e tripulantes de aeronaves – seja em processos judiciais que versam sobre imputabilidade penal, capacidade civil e trabalhista, ou guarda de crianças e alienação parental, como na parábola narrada acima.

De fato, a restrição da comercialização de testes psicológicos não apenas vigorou no Brasil desde o ano de 2003, como está fundada em amplo debate científico no ambiente nacional e internacional – além de indicada pela International Test Comission (ITC) e praticada em países como África do Sul, Austrália, Canadá, Inglaterra e Portugal – sob o argumento bastante lógico de que a prática de uma avaliação pressupõe a impossibilidade de acesso, pela pessoa avaliada, quer ao gabarito das respostas esperadas, quer às questões que lhe serão formuladas.

Como parece evidente para toda a comunidade científica envolvida no ambiente da avaliação psicológica no Brasil – como manifestado nos autos do processo em diferentes ofícios de entidades especializadas da psicologia[i], além de instituições públicas[ii] que utilizam os testes psicológicos em suas rotinas administrativas – incluindo as editoras[iii] especializadas no ramo da comercialização dos testes psicológicos, a restrição de comercialização destes instrumentos de avaliação, com especial atenção para seus gabaritos, crivos de resposta e cadernos de orientação e aplicação, constitui medida que ao invés de erigir obstáculo, na realidade se coaduna com a ciência e promove o debate científico, uma vez que se apresenta como mecanismo de garantia da eficácia e confiabilidade dos seus resultados.

Neste ambiente, ante a decisão no julgamento na ADI 3481 foram opostos embargos de declaração, buscando discutir o destino a ser dado aos gabaritos, crivos de respostas e instruções de aplicação destes especializados instrumentos científicos de avaliação psicológica, em um cenário de liberação da sua comercialização. Alternativamente, debate-se ainda a pertinência e necessidade de modulação pro futuro dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, caso seja mantida na sua integralidade pela Corte, ante à imperiosa demanda por adaptação dos parâmetros normativos, técnico-científicos, operacionais, institucionais e profissionais em um período de transição para a nova realidade.

Tratando-se dos embargos de declaração no controle concentrado de constitucionalidade, Daniel Sarmento observa em consistente parecer encartado nos autos que “o manejo do único recurso cabível nessas ações deve ser visto com maior generosidade, para evitar lesões irreparáveis a valores constitucionais”[iv], seja em face das consequências práticas da decisão, seja em face da discussão sobre a modulação dos seus efeitos, de resto, tema já albergado em precedentes da Corte, como se verifica na ADI n° 3.601-ED, (Rel. Min. Dias Toffoli), e ADI n° 2.797-ED, (Red. p/ ac. Min. Ayres Britto).

Mirando a jurisprudência do Supremo, vale notar, outra questão ainda reivindica a atenção no ambiente do caso, com especial consideração para o fenômeno de expansão judicial sobre temas, situações, técnicas e valores que nos últimos anos foram trazidos do seu lócus tradicional para a via judicial – tendência que na literatura internacional fora originalmente captada por Neil Tate e Tobjorn Vallinder[v] – por aqui suscitando precedentes que apontam para a deferência da Corte às capacidades institucionais e expertise científica no exercício regulatório da administração, como observado na ADI n° 4.923, (Rel. Min. Luiz Fux), e ADC n° 17 (Red. p/ ac. Min. Roberto Barroso).

Ao que tudo indica, no entanto, a judicialização da comercialização dos testes psicológicos na ADI 3481 acabou por revelar uma situação paradoxal que parece assumir hoje ares de rotina judicial em diferentes instâncias – fazendo surgir, inclusive, o novel art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – ante à hipótese de, na prática, desnaturar a razão científica dos testes psicológicos, para afirmar valores jurídicos abstratos de proteção à ciência.

Do ponto de vista jurídico, tal paradoxo se traduz em incongruência que se afasta do princípio da razoabilidade. De fato, nas palavras do professor Sarmento nos autos: “há, sem dúvida, inegável descompasso entre, de um lado, o interesse público subjacente às leis que obrigam a realização de testes psicológicos e, do outro lado, a suspensão das restrições de acesso aos seus gabaritos, que permite o condicionamento prévio aos padrões de resposta, tornando os testes praticamente inúteis”[vi].

Como se observa, o julgamento dos embargos de declaração na ADI 3481 suscita questões que ainda clamam, a plenos pulmões, pelo debate público na esfera científica e judicial. Ao que a experiência tem demonstrado, no entanto, como bem anotou Ana Carolina Caputo Bastos neste prestigiado veículo especializado[vii], o julgamento em lista virtual, pese a sua utilidade, em nada parece representar um ambiente propício para tal discussão e tamanha controvérsia, merecendo a comunidade científica da psicologia e a sociedade como um todo que o julgamento seja destacado da lista, nos termos do art. 4º da Resolução STF nº 642/2019, e enviado para o plenário virtual, de modo a proporcionar e homenagear o melhor e necessário debate, característico não apenas da cultura da Suprema Corte, mas sobretudo da sua mais justa, legítima e eficaz jurisprudência.



[i] Associação Brasileira de Neuropsicologia – ABRANEP e Instituto Brasileiro de Neuropsicologia e Comportamento – IBNeC, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755381873&prcID=2292199#; Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica – IBAP e Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos – ASBRo. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755381875&prcID=2292199#; Comissão Consultiva em Avaliação Psicológica – CFP, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755381876&prcID=2292199#; Associação Brasileira de Psicologia do Tráfego – ABRAPSIT, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755381877&prcID=2292199#; Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho – SBPOT, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755381878&prcID=2292199#; Associação Brasileira de Psicologia da Aviação – ABRAPAV, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755650620&prcID=2292199#;  

[ii] Centro de Psicologia Aplicada do Exército Brasileiro, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755381871&prcID=2292199#; Comando-Geral do Pessoal da Aeronáutica, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755650622&prcID=2292199#; Divisão de Planejamento e Execução de Concursos Públicos da Polícia Federal, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755650621&prcID=2292199#; Centro Psicológico da Diretoria de Saúde da Polícia Militar do Estado de Alagoas, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755650623&prcID=2292199#; Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos – CEBRASPE, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755650624&prcID=2292199#

[iv] SARMENTO, Daniel. Resolução CFP n° 02/2003, ADI n° 3.481 e restrição de acesso aos gabaritos de testes psicológicos. Parecer. Autos da ADI 3481, Supremo Tribunal Federal, 2021, p. 08. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=756273064&prcID=2292199#

[v] TATE, Neal C.; VALLINDER, Torbjorn (orgs.). The global expansion of judicial power. New York: New York University Press, 1995.

[vi] Sarmento, op. cit., p. 23.

[vii] BASTOS, Ana Carolina A. A. C. STF: sugestões para o aperfeiçoamento do plenário virtual. Elas no Jota. Jota. 06/08/2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/stf-sugestoes-para-o-aperfeicoamento-do-plenario-virtual-06082021.

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