A JUDICIALIZAÇÃO DA
CIÊNCIA NA PAUTA DO STF: O CASO DOS TESTES PSICOLÓGICOS
Antonio
Escrivão Filho – Advogado do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Doutor em
Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Membro do Grupo de Pesquisa O
Direito Achado na Rua
João
Diego Rocha Firmiano – Advogado do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Mestre
em Criminologia pela Universidade do Porto (U.Porto), Especialista em Direito
Administrativo pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP)
Brasília,
20 de agosto de 2023. Maria Lúcia acorda cedo naquela árida manhã. Após o banho
rápido, seguido do café, repassa com afinco o gabarito das respostas que deverá
fornecer na avaliação psicológica, para conseguir tirar o porte de armas. A
alguns quilômetros dali, e horas depois, o sargento Jeremias terminava o almoço
quando o alarme tocou. Estava atrasado. Ainda não havia decorado as respostas,
e em menos de trinta minutos iria se submeter à avaliação psicológica para
definir se continuaria ou não afastado das atividades operacionais do batalhão.
Avançada a tarde, Jorge havia recobrado a calma apenas segundos antes de ouvir chamar
seu nome. Não tinha entendido parte das orientações que lera, sobre o
comportamento que deveria apresentar na avaliação psicológica realizada no
âmbito da ação de guarda movida contra ele.
Neste
futuro algo insólito, instituições públicas e de justiça utilizam procedimentos
técnico-científicos de avaliação psicológica para subsidiar a decisão em situações
que envolvem potencial de letalidade ou direitos indisponíveis, mas os
personagens submetidos à avaliação tem acesso prévio às questões que lhes serão
formuladas, e decoram as respostas que devem ser apresentadas para um desfecho
positivo para a sua pretensão, em detrimento do interesse público.
Insólito
desde o aspecto narrativo, ilógico na perspectiva científica ou irrazoável do
ponto de vista jurídico, este é o cenário prestes a ser projetado na apreciação,
pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, dos embargos de declaração na ação
direta de inconstitucionalidade nº 3481, inserida na pauta do julgamento em
lista virtual no próximo dia 20.
Proposta
pela Procuradoria-Geral da República no longínquo ano de 2005, na ADI 3481
discute-se a constitucionalidade do dispositivo inscrito na Resolução CFP nº
02/2003, que previa a restrição da comercialização dos testes psicológicos para
os profissionais de psicologia, no intuito de regulamentar o art. 13, § 1º, da
Lei nº 4.119/62, quando determina que constitui função privativa das psicólogas
e psicólogos a utilização de métodos e técnicas psicológicas para diagnóstico e
questões de ajustamento psicológico. Na opinião ministerial, o dispositivo
viola a Constituição, ao supostamente estabelecer obstáculo à produção
científica e livre circulação de ideias no país.
Como
desfecho inicial, em julgamento realizado em março de 2021 o Plenário declarou
a inconstitucionalidade do dispositivo, em decisão por maioria de 7x4 conduzida
pelo relator, Ministro Alexandre de Moraes, face à divergência suscitada pelo
Ministro Edson Fachin, para quem a restrição da comercialização dos testes se
apresentava como medida adequada e necessária para a manutenção da integridade
dos instrumentos de avaliação, e neste sentido razoável face à previsão legal
de aplicação compulsória de testes psicológicos em diferentes situações de
elevado interesse público e inegável relevância social, seja na via
administrativa – como o registro para o porte de armas de fogo, a aferição da sanidade
compatível com a atividade policial, a habilitação para a direção de veículos
automotores, pilotos e tripulantes de aeronaves – seja em processos judiciais
que versam sobre imputabilidade penal, capacidade civil e trabalhista, ou
guarda de crianças e alienação parental, como na parábola narrada acima.
De
fato, a restrição da comercialização de testes psicológicos não apenas vigorou
no Brasil desde o ano de 2003, como está fundada em amplo debate científico no
ambiente nacional e internacional – além de indicada pela International Test Comission (ITC) e praticada em países como
África do Sul, Austrália, Canadá, Inglaterra e Portugal – sob o argumento
bastante lógico de que a prática de uma avaliação pressupõe a impossibilidade
de acesso, pela pessoa avaliada, quer ao gabarito das respostas esperadas, quer
às questões que lhe serão formuladas.
Como
parece evidente para toda a comunidade científica envolvida no ambiente da avaliação
psicológica no Brasil – como manifestado nos autos do processo em diferentes
ofícios de entidades especializadas da psicologia[i], além de instituições
públicas[ii] que utilizam os testes psicológicos
em suas rotinas administrativas – incluindo as editoras[iii] especializadas no ramo
da comercialização dos testes psicológicos, a restrição de comercialização destes
instrumentos de avaliação, com especial atenção para seus gabaritos, crivos de
resposta e cadernos de orientação e aplicação, constitui medida que ao invés de
erigir obstáculo, na realidade se coaduna com a ciência e promove o debate
científico, uma vez que se apresenta como mecanismo de garantia da eficácia e
confiabilidade dos seus resultados.
Neste
ambiente, ante a decisão no julgamento na ADI 3481 foram opostos embargos de
declaração, buscando discutir o destino a ser dado aos gabaritos, crivos de
respostas e instruções de aplicação destes especializados instrumentos
científicos de avaliação psicológica, em um cenário de liberação da sua comercialização.
Alternativamente, debate-se ainda a pertinência e necessidade de modulação pro futuro dos efeitos da decisão de
inconstitucionalidade, caso seja mantida na sua integralidade pela Corte, ante
à imperiosa demanda por adaptação dos parâmetros normativos,
técnico-científicos, operacionais, institucionais e profissionais em um período
de transição para a nova realidade.
Tratando-se
dos embargos de declaração no controle concentrado de constitucionalidade, Daniel
Sarmento observa em consistente parecer encartado nos autos que “o manejo do
único recurso cabível nessas ações deve ser visto com maior generosidade, para
evitar lesões irreparáveis a valores constitucionais”[iv], seja em face das
consequências práticas da decisão, seja em face da discussão sobre a modulação
dos seus efeitos, de resto, tema já albergado em precedentes da Corte, como se
verifica na ADI n° 3.601-ED, (Rel. Min. Dias Toffoli), e ADI n° 2.797-ED, (Red.
p/ ac. Min. Ayres Britto).
Mirando
a jurisprudência do Supremo, vale notar, outra questão ainda reivindica a
atenção no ambiente do caso, com especial consideração para o fenômeno de
expansão judicial sobre temas, situações, técnicas e valores que nos últimos
anos foram trazidos do seu lócus
tradicional para a via judicial – tendência que na literatura internacional
fora originalmente captada por Neil Tate e Tobjorn Vallinder[v] – por aqui suscitando
precedentes que apontam para a deferência da Corte às capacidades
institucionais e expertise científica no exercício regulatório da
administração, como observado na ADI n° 4.923, (Rel. Min. Luiz Fux), e ADC n°
17 (Red. p/ ac. Min. Roberto Barroso).
Ao
que tudo indica, no entanto, a judicialização da comercialização dos testes
psicológicos na ADI 3481 acabou por revelar uma situação paradoxal que parece
assumir hoje ares de rotina judicial em diferentes instâncias – fazendo surgir,
inclusive, o novel art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro
– ante à hipótese de, na prática, desnaturar a razão científica dos testes
psicológicos, para afirmar valores jurídicos abstratos de proteção à ciência.
Do
ponto de vista jurídico, tal paradoxo se traduz em incongruência que se afasta do
princípio da razoabilidade. De fato, nas palavras do professor Sarmento nos
autos: “há, sem dúvida, inegável descompasso entre, de um lado, o interesse
público subjacente às leis que obrigam a realização de testes psicológicos e,
do outro lado, a suspensão das restrições de acesso aos seus gabaritos, que
permite o condicionamento prévio aos padrões de resposta, tornando os testes
praticamente inúteis”[vi].
Como
se observa, o julgamento dos embargos de declaração na ADI 3481 suscita
questões que ainda clamam, a plenos pulmões, pelo debate público na esfera
científica e judicial. Ao que a experiência tem demonstrado, no entanto, como
bem anotou Ana Carolina Caputo Bastos neste prestigiado veículo especializado[vii], o julgamento em lista
virtual, pese a sua utilidade, em nada parece representar um ambiente propício
para tal discussão e tamanha controvérsia, merecendo a comunidade científica da
psicologia e a sociedade como um todo que o julgamento seja destacado da lista,
nos termos do art. 4º da Resolução STF nº 642/2019, e enviado para o plenário
virtual, de modo a proporcionar e homenagear o melhor e necessário debate, característico
não apenas da cultura da Suprema Corte, mas sobretudo da sua mais justa,
legítima e eficaz jurisprudência.
[i] Associação Brasileira de
Neuropsicologia – ABRANEP e Instituto Brasileiro de Neuropsicologia e Comportamento
– IBNeC, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755381873&prcID=2292199#; Instituto Brasileiro de Avaliação
Psicológica – IBAP e Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos –
ASBRo. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755381875&prcID=2292199#; Comissão Consultiva em Avaliação Psicológica
– CFP, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755381876&prcID=2292199#; Associação Brasileira de Psicologia
do Tráfego – ABRAPSIT, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755381877&prcID=2292199#; Associação Brasileira de Psicologia Organizacional
e do Trabalho – SBPOT, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755381878&prcID=2292199#; Associação Brasileira de Psicologia
da Aviação – ABRAPAV, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755650620&prcID=2292199#;
[ii] Centro de Psicologia Aplicada do
Exército Brasileiro, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755381871&prcID=2292199#; Comando-Geral do Pessoal da
Aeronáutica, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755650622&prcID=2292199#; Divisão de Planejamento e Execução
de Concursos Públicos da Polícia Federal, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755650621&prcID=2292199#; Centro Psicológico da Diretoria de
Saúde da Polícia Militar do Estado de Alagoas, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755650623&prcID=2292199#; Centro Brasileiro de Pesquisa em
Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos – CEBRASPE, Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755650624&prcID=2292199#
[iii] Vetor Editora e Editora Hogrefe,
Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755650593&prcID=2292199#; .
[iv] SARMENTO, Daniel. Resolução CFP n°
02/2003, ADI n° 3.481 e restrição de acesso aos gabaritos de testes
psicológicos. Parecer. Autos da ADI
3481, Supremo Tribunal Federal, 2021, p. 08. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=756273064&prcID=2292199#
[v] TATE, Neal C.; VALLINDER,
Torbjorn (orgs.). The global expansion
of judicial power. New York: New York University Press, 1995.
[vi] Sarmento, op. cit., p. 23.
[vii] BASTOS, Ana Carolina A. A. C. STF:
sugestões para o aperfeiçoamento do plenário virtual. Elas no Jota. Jota. 06/08/2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/stf-sugestoes-para-o-aperfeicoamento-do-plenario-virtual-06082021.
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