O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 19 de maio de 2021

 

Diccionario Crítico de los Derechos Humanos

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

SORIANO DÍAZ, Ramón; ALARCÓN CABRERA, Carlos; MORA MOLINA, Juan (Directores). Diccionario Crítico de los Derechos Humanos. Huelva (España): Universidad Internacional de Andalucia, Sede Iberoamericana, 2000, 315 p.

             A disposição para o exame desse belo projeto, a edição de um dicionário crítico de direitos humanos, não advém apenas da concordância com a razões da iniciativa. De fato estou de acordo com os diretores e coordenadores da edição, quanto aos motivos e à oportunidade da publicação da obra: “o interesse social que suscita esta classe de direitos pela relevância dos bens jurídicos protegidos, o extraordinário desenvolvimento normativo e institucional, ao nível interno-estatal e internacional, na defesa e promoção dos direitos humanos, e as constantes controvérsias entre os estudiosos e na opinião pública sobre seu significado e alcance, que são a causa do caráter antagônico de seu exercício, de sua ineficácia na prática social e da fácil instrumentalização de que são objeto pelas esferas de poder”.

            A disposição vem, principalmente, da mobilização comum em torno de um projeto que leva em conta razões teóricas que sustentem aqueles motivos, enquanto programa continuado de uma instituição, a Universidade Internacional da Andalucia, em sua Sede Iberoamericana de La Rábida, programaticamente vocacionada para o diálogo aberto com a sociedade e para a produção de análises esclarecedoras acerca de ideias controvertidas.

            Em torno do mosteiro medieval, ao abrigo do qual Colombo encontrou as condições que lhe permitiram organizar a expedição de 1492, lançando-se ao mar, ao largo de Palos de la Frontera, o belo campus internacional de La Rábida, recebe estudantes de toda a América para estudos pós-graduados.

            Em 1999, a convite do Programa de Mestrado em Pluralismo Jurídico e Direitos Humanos, dirigido àquela altura por Joaquin Herrera Flores e David Sanchez Rubio, ambos da Universidade de Sevilha, desenvolvi um dos módulos do curso, como professor visitante, recolhendo dessa atmosfera acadêmica a solidariedade intelectual compartilhada de preocupações com os direitos humanos.

            Na antiga biblioteca, ambiente profícuo para a reflexão, monografias especializadas, manuais e obras gerais sobre o tema, dão a medida dos assuntos que circulam por impulso das interpelações dos alunos a seus professores. E agora, a esses textos, vem agregar-se esta nova publicação, “sintética e acessível, na qual possamos encontrar, cômoda e rapidamente, noções gerais sobre um tema concreto dentro da ampla matéria dos direitos humanos”. Essa, efetivamente, a intenção dos organizadores deste Diccionário Crítico dos Direitos Humanos”. “Dicionário – eles dizem – porque contém o conceito e a problemática geral de uma série de vozes relevantes da matéria. Crítico, porque a exposição não consiste numa mera descrição, mas numa ordenação comum de orientações teóricas controvertidas sobre a vozes selecionadas, desenvolvida com espírito crítico”.

            O arranjo, com efeito, tal como procurei chamar a atenção para isso em outro texto mais resumido, em formato específico de resenha (in Ser Social 8, Revista do Programa de Pós-Graduação em Política Social, do Departamento de Serviço Social, da Universidade de Brasília, janeiro a junho de 2001) menos que adensar tematicamente o conteúdo da obra, opta por acentuar a pluralidade de participações, com um elenco altamente representativo de autores, cuja expressão científica, é reconhecidamente apta a traduzir o amplo debate contemporâneo que se desenvolve doutrinariamente, em torno ao tema dos direitos humanos, com aportes interdisciplinares próprios a essa matéria – história, fundamentos, positivação, teoria geral. Assim, a edição se desdobra em quatro partes por meio das quais procura apreender a complexidade temática dos direitos humanos: introdução, valores jurídicos, teoria geral e tipologia de direitos.

            Na primeira parte, desenvolvendo noções introdutórias, estão presentes com seus respectivos temas, Norberto Bobbio, El fundamento de los derechos humanos; Franscico J. Laporta, El concepto de los derechos humanos; Antonio E. Pérez Luño, La universalidade de los derechos humanos; Gregório Peces-Barba, Multiculturalismo y derechos humanos; Francisco J. Ansuátegui Roig, La historia de los derechos humanos; Vittorio Frosini, Los derechos humanos em la era tecnológica.

            É conhecida a exortação de Bobbio dirigida ao fato de que a questão atual relativa aos direitos humanos já não é a de fundamentá-los, mas de garanti-los. Ou seja, o problema deixa de ser filosófico para ser político e, em última análise, jurídico. Vê-se que a preocupação com os fundamentos ainda é relevante e a ela se dedica o melhor pensamento hispânico contemporâneo, sem dúvida instigado pelos debates que se seguiram à promulgação de sua Constituição inspirada nos protocolos de Moncloa, roteiro para uma Espanha que se redemocratizava.

            Na segunda parte, tendo como roteiro o tema dos valores jurídicos, comparecem Eusébio Fernández, Dignidad y derechos humanos; Alfonso Ruiz Miguel, Libertad y derechos humanos; Ernesto Vidal Gil, Solidaridad y derechos humanos; Juan A. García Amado, Legitimidad y derechos humanos.

            A aproximação ao debate nesse contexto, ou seja, numa conjuntura de redemocratização, se bem insira os valores, como os próprios temas o indicam, numa experiência europeia ocidental, o faz como estratégia de reconstrução emancipatória que inscreve os direitos humanos, conforme salienta Boaventura de Sousa Santos, como elementaridade da linguagem da política progressista.

            Na terceira parte ordenam-se os temas relativos à teoria geral dos direitos humanos: Derechos humanos y estado de derecho, de Elias Díaz; Derechos humanos y democracia, de Pablo A. Bulcourf; Derechos humanos y derechos subjetivos, de Juan R. de Páramo Argüelles; Los limites de los derechos humanos, de Rafael de Asís Roig; La protección estatal de los derechos humanos, de Ana Salado Osuna; Garantismo y derechos humanos, de Marina Gascón; Seguridad pública y derechos humanos, de Marcelo Sain.

            O eixo temático, orientado pelo garantismo, remete à exigência de conversão da linguagem dos direitos em políticas públicas para a sua realização, o que consiste em transformar conceitos em práticas efetivas.

            A partir da consideração do pluralismo jurídico, e de um modelo de interlegalidades que nele se fundamenta, Boaventura de Sousa Santos aponta para o que designa porosidades de diferentes ordens jurídicas que obrigam a constantes transições e transgressões. É nesse contexto que o sociólogo português repõe o tema dos direitos humanos referidos às práticas sociais emancipatórias, nas quais transgressões concretas são sempre, diz ele, produto de uma negociação e de um juízo político.

            Para Boaventura, a reciprocidade é o critério geral de uma política democrática emancipatória, enquanto a forma e os meios de negociação deverão ser privilegiadamente os direitos humanos como expressão avançada de lutas pela reciprocidade.

            A articulação dos elementos conceituais que aqui foram apresentados abre uma perspectiva orientada para que as categorias mobilizáveis desse tema possam contribuir para um programa de “reinvenção dos direitos humanos”. Recolhemos essa possibilidade a partir da leitura criativa que a esse respeito é localizada em considerações indicadas por Joaquín Herrera Flores, aliás, um dos mais destacados formuladores do programa de La Rábida.

             Esse  notável  professor,  tão  precocemente  falecido,  havia  lançado essa ideia a partir da “Cátedra de Direitos Humanos José Carlos Mariátegui” e do “Programa Oficial de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Desenvolvimento”, instalados na Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha, onde desenvolveu seus trabalhos finais.

             Chama a atenção, nas propostas de sua docência e de seus últimos escritos, essa clara atitude de reinvenção dos direitos humanos enquanto premissa teórica apta a sustentar “a abertura de processos de luta pela dignidade humana” e premissa política apta a orientar projetos de sociedade originados de “práticas sociais que aspirem a se realizar social e institucionalmente”.

             Em entrevista por ele concedida, quando de sua última visita a Brasília, o significado dessa reinvenção foi formulado, com o intuito de aferir o seu alcance criativo para ser base de projetos de construção de sociedades (retiro essas referências de texto que publiquei aqui na Coluna Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/os-direitos-humanos-como-um-projeto-de-sociedade/.

             Com efeito, ao lhe ser colocada a questão sobre as novas perspectivas e como, a partir delas, o direito se relaciona com processos institucionais e sociais que levem à abertura e consolidação de espaços de luta pela dignidade humana, a sua resposta se orienta para esboçar, com base em direitos humanos, projetos possíveis no nível institucional e de sociedade. Diz Herrera Flores:

Creio que, ao falar em direitos humanos, devemos ser conscientes de uma série de fatos históricos e sociais. Celebramos, em 2008, os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), mas, também os 42 anos de sua ruptura em dois pactos internacionais (1966): o de direitos civis e políticos e o de direitos sociais, econômicos e culturais. Se a estrutura da declaração era unitária, que razões fundamentaram e, o que é mais importante, que razões seguem fundamentando a visão dualista dos direitos? Se lermos com atenção os Informes de Desenvolvimento Humano que anualmente são publicados pelas Nações Unidas, observamos que, a cada ano que passa, aumenta o abismo entre ricos e pobres, e que não há modo de conter a pobreza e a mortalidade por fome nos países empobrecidos pelas políticas coloniais globais do modo de produção capitalista. E, por fim, se acessamos o último informe da Anistia Internacional [veremos que], de um modo direto, são questionados os avanços em direitos civis e políticos no mundo depois de seis décadas da assinatura da Declaração. Se fazemos estas leituras, creio que todos e todas perceberemos a necessidade de “reinventar os direitos humanos” desde uma perspectiva mais atenta ao que está ocorrendo ao nosso redor. Creio, sinceramente, que chegou o momento de redefinir uma categoria tão importante para compreender os desafios com os quais se depara a humanidade em início do século XXI. Neste sentido, nós definimos os direitos humanos como “processos de luta pela dignidade”, ou seja, o conjunto de práticas sociais, institucionais, econômicas, políticas e culturais levadas a cabo pelos movimentos e grupos sociais em sua luta por um acesso igualitário e não hierarquizado a priori aos bens que fazem digna a vida que vivemos (Flores, 2008-b: 12-13).

             A nota distintiva, sob o aspecto da fundamentação de projetos de sociedade em direitos humanos, reside, certamente, na noção de “dignidade material da cidadania”, que se vislumbra no pensamento instigante desse autor. Rebelde a qualquer forma de colonialismo e imperialismo ocidental que privilegie unicamente o que se faz desde os países centrais, desprezando tudo o que provém de países “periferizados” pela ordem hegemônica global, pensar em projetos de sociedade – para ele – é estar acessível a experiências de gestão democrático-participativa da cidade e das comunidades, como condição para concretizar, à luz de direitos humanos reinventados, a dupla condição, em articulação simultânea, dos princípios de “igualdade de poder político” (próprio das democracias representativas) com o de “distribuição de poder político” (próprio das democracias participativas), que se apresentam atualmente como “desafio para nossos sistemas políticos tendencialmente fechados às novas formas de gestão do público”.

             Logo, seguindo a linha argumentativa do autor, tem-se que os direitos humanos não podem existir num mundo ideal, naturalizado, mas devem ser postos em prática por meio de uma ação social voltada para um projeto de construção da realidade, vale dizer, ter como referência que os direitos humanos não podem ser entendidos separadamente do político.

            Por isso se diz que a história dos direitos humanos não é a história das declarações que os enunciam, não é a história das instituições, nem sequer a história das ideias filosóficas e dos valores (LESBAUPIN, Ivo. As Classes Populares e os Direitos Humanos. Petrópolis: Editora Vozes, 1984). É sim, a história dessas lutas sociais, enquanto ensaio de positivação da liberdade conscientizada e conquistada no processo de criação dos direitos que realizam as aspirações à reciprocidade, tal como podemos encontrar em Roberto Lyra Filho, ao fundamentar seu conceito de direito (O que é Direito, São Paulo: Brasiliense, 1ª edição, 1982).

            No quarto e último bloco, abre-se espaço a um catálogo de direitos humanos controvertidos. Desse elenco figuram Juan J. Mora Molina, El derecho a la vida; Luis García-San Miguel, El derecho a la intimidad; Modesto Saavedra López, El derecho a la libertad de expresión; Benito de Castro Cid, Los derechos sociales; Fernando León Jiménez, Los derechos ecológicos; José I. Lacasta Zabalza, El derecho de autodeterminación; Ramón L. Soriano Díaz, Los derechos de las minorias.

            Os temas, na sua atualidade crítica, abrem ensejo a pelo menos duas ordens de considerações. De um lado, uma designação de protagonismos, gerando concepções e uma pluralidade de discursos que reclamam diálogo intercultural compreendendo diferentes particularismos. São os movimentos sociais, as ONGs, são atores sociais constituídos em grupos de interesses elaborando agendas não diretamente referidas aos padrões hegemonistas da tradição institucional ocidental. De outro, a constatação de que esse processo, aludindo a práticas plurais emancipatórias, aponta para uma realidade, segundo a qual, na sua aplicação, os direitos humanos não são sociologicamente, como é assente na cultura ocidental, ao menos filosoficamente, universais, indivisíveis, interdependentes.

            No seu conjunto, os textos do Diccionario não dão respostas conclusivas para essas questões, mas abrem, sem dúvida, perspectivas para que elas sejam enfrentadas. São temas que, por sua qualificação, transcendem as culturas e interpelam o que nelas há de comum, enquanto expressão de humanidade, algo mais pertinente que a ilusão corrente de universalismo metafísico.

            Essa mesma disposição está presente no projeto de edição da Enciclopédia Latino-Americana dos Direitos Humanos, que foi objeto de minha atenção nesta Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/enciclopedia-latino-americana-dos-direitos-humanos/).   Na Apresentação da obra (pp. 7-9), o filósofo salvadorenho, Héctor Samour, da Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (ex-Vice Ministro da Educação de El Salvador) esclarece que a proposta visa a apreender, na abordagem dos direitos humanos, os acontecimentos históricos e as possibilidades atuais, com as quais contam a região para pensar e iluminar sua libertação; e, assim, colaborar para a construção histórica de instituições que assegurem a satisfação das necessidades básicas e a vigência efetiva daqueles direitos, sem os quais não se poderia cogitar uma vida humana digna para todos.

             Com a preocupação decolonial e de emancipar-se do enquadramento eurocêntrico que preside a constituição dos paradigmas e dos enfoques de um modo de produção que lhe é determinante, sobretudo ideologicamente, recortando categorias fundamentais para o tema, como liberdade e democracia, a Enciclopédia pretende historicizar a teoria e a prática dos direitos humanos com o fim de contribuir para a desideologização desses direitos e evitar, desta maneira, que sejam utilizados para justificar e legitimar as situações de injustiça predominantes na região latino-americana e no resto dos países pobres do mundo.

             Trata-se, como dissemos eu e Antonio Escrivão Filho, em nosso Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), de pensar os Direitos Humanos enquanto projeto de sociedade. Ou seja, rastrear a sua emergência, na consideração de que não se realizam enquanto expectativas de indivíduos, senão em perspectiva de coletividade, como tarefa cuja concretização se dá em ação de conjunto.

             Assim sendo, partimos do debate conceitual dos direitos humanos, para esboçar o panorama do cenário internacional e de sua emergência histórica, no mundo e no Brasil, para, desse modo, articular o seu percurso no contexto da conquista da democracia, assim designada enquanto protagonismo de movimentos sociais, ao mesmo tempo sujeitos de afirmação e de aquisição dos direitos humanos. Em relevo, pois, a historicidade latino-americana para acentuar a singularidade da questão pós-colonial forte na caracterização de um modo de desenvolvimento que abra ensejo para um constitucionalismo “Achado na Rua”.

             Ali como aqui, problematiza-se, em consequência, os modos de conhecer e de realizar os direitos humanos, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos.

             Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”, numa dinâmica, diz David Sánchez Rubio, também muito orgânico política e teoricamente no programa da Universidade Internacional da Andalucia, orientada para uma recuperação da democracia como poder popular e dos direitos humanos a partir de suas lutas instituintes (cf. SÁNCHEZ RUBIO, David. Derechos Humanos Instituyentes, Pensamento Crítico y Praxis de Liberación. Ciudad de México: Edicionesakal, 2018; e também na intensa interlocução que esse professor mantem com o programa de pós-graduação em direitos humanos da Universidade de Brasília).

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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