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quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

 

Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica

00Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica. Martha Nussbaun. Barcelona, Buenos Aires, Mexico DF, Santiago: Editorial Andrés Bello, 1997, 183 p.

             Em mais uma de suas proverbiais intervenções, agora aos juízes, em encontro remoto com juristas das Américas e da África –  Primeiro Encontro virtual dos Comitês para os Direitos Sociais da África e da América – o Papa Francisco afirmou: “uma sentença justa é uma poesia que repara, redime e nutre” (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-11/papa-francisco-juizes-africa-america-sentencas.html).  “Nenhuma sentença pode ser justa, – ele ainda afirmou –se gera mais desigualdade, mais perda de direitos, indignidade ou violência”.

             O que considero instigante nessa exortação, é o Papa investir na convocação que faz a uma dimensão poética que imante a crosta asséptica da atuação judicante: “O poeta precisa contemplar, pensar, compreender a música da realidade e moldá-la com palavras. Vocês juízes, em cada decisão, em cada sentença, estão diante da feliz oportunidade de fazer poesia: uma poesia que cure as feridas dos pobres, que integre o planeta, que proteja a Mãe Terra e todos os seus descendentes. Uma poesia que repara, redime e nutre. Não renunciem a esta oportunidade. Assumam a graça a que têm direito, com determinação e coragem. Estejam ciente de que tudo o que contribuírem com sua retidão e compromisso é muito importante”.

             Para o Papa, poesia não é apenas declamar, incluir nas sentenças versos que adornem o discurso, se resumindo a “um punhado de palavras mortas”.  Francisco quer encorajar, pois, a atitude sensível na prática e na atitude dos juízes e dos operadores do Direito: “façam de sua poesia uma prática e assim vocês serão melhores poetas e melhores juízes. E jamais esqueçam que uma poesia que não transforma é apenas um punhado de palavras mortas”.

Pixabay

             A mensagem do Papa me fez evocar o belo texto objeto deste Lido para Você. De resto, um texto que tem merecido grande atenção de estudiosos e comentaristas. Um dos últimos que li foi o artigo de Andrés Botero-Bernal, publicado em Direito & Praxis, Rio de Janeiro, vol. 07, n. 13, 2016, p. 830-897, “A leitura literária forma bons juízes? Análise crítica da obra ‘Justiça Poética’”, título que já oferece uma ideia do argumento desenvolvido no artigo. Com efeito, em sua análise considera que “segundo esta importante autora, ler literatura faz do juiz um bom ser humano dentro do modelo democrático e, ademais, lhe fornece ferramentas significativas para melhorar seu ofício, recuperando, assim, o advogado da fria forma na qual é formado pelo cientificismo e pelo utilitarismo”, embora em seu artigo se afaste em boa medida dos enunciados da Autora para seguir numa “linha de defesa da literatura dentro do mundo jurídico”.

             De minha parte eu já havia ferido esse tema, motivado pela leitura do livro, em mais de um ensaio, entre eles, em minha antiga coluna na Revista do Sindjus-DF (ano XVIII, nº 72, abril de 2011), exatamente com o título Justiça Poética.

              O título dado ao artigo não apela, o que poderia parecer a primeira vista, a uma busca de relação entre a justiça e a literatura, para por em relevo a inclinação de magistrados para o uso da linguagem artística. Não que isso deixe de ocorrer ou que se rejeite o pendor estético quando se trata de desenvolver o discurso jurídico.

             No plano epistemológico, a propósito, tem sido estimulante a vertente que trabalha a interlocução interdisciplinar e complexa para acentuar o diálogo entre saberes, demonstrando que o conhecimento não se realiza por uma única racionalidade, mas, ao contrário, pela integração entre diferentes modos de conhecer que nos habilitem a discernir o sentido e significado da existência e a elaborar sínteses interpretativas que, além de nos permitir compreender o mundo, contribuam para transformá-lo.

             Trata-se, como acentua Roberto Lyra Filho, de operar padrões de esclarecimento, recusando o monólogo da razão causal explicativa, para se abrir a outras possibilidades de conhecimento: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica; o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; o divertir-se, da atitude lúdica; o revelar, da atitude mística.

             Tem razão Eduardo Lourenço, não só em sustentar a unidade da poesia fernandiana, mas em suscitar a totalidade que abarca os seus aparentes fragmentos heterônimos, para indicar que nesse processo o problema central continua a ser o do conhecimento.

             Para Lourenço (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, publicado na edição brasileira do livro O Mito da Saudade, Companhia das Letras), os avatares de Pessoa “representam uma tentativa desesperada de se instalar na realidade”.

             Marx não havia ainda analisado a estrutura econômica para explicar a formação da mais-valia, com O Capital, e bem antes o Padre Vieira, artisticamente, a exibiu tal como está no Sermão XIV do Rosário: “Eles mandam e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto do vosso trabalho, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que o de vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: ‘sic vos non vobis melificatis apes’ (assim como vós, mas não para vós, fabricais o mel abelhas).”

             No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com esse sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello), ou seja, para caracterizá-las como “ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social”.

             Aplicadas aos juízes, essas categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional destacada por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade, Notícia do Direito Brasileiro, nº 5, Faculdade de Direito da UnB): “a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender, essencial na formação do bacharel”.

             Levantei essas questões  no momento em que se apresentava à sociedade o ministro Luiz Fux, quando passou a integrar a Corte Suprema do país, descrevendo o seu próprio perfil e traçando o que deve ser o modelo de juiz (Nós, os juízes, Folha de S. Paulo, 3/3/11): “Cumpre ao juiz combater o farisaísmo, desmascarar a impostura, proteger os que padecem e reclamar a herança dos deserdados pela pátria, sem esquecer de que, diante da injustiça da lei, hão de prevalecer a beleza, a caridade e a poesia humanas.”

             Esperava-se, diante da promessa contida nessas palavras, que o novo ministro viesse se juntar àquela estirpe de juízes que, no Supremo Tribunal Federal – Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva – soube exercitar a compreensão plena do ato de julgar, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da lei”.

             Balda expectativa, num tempo em que já assumindo a Presidência da Corte, o discurso tão bem embalado já não disfarça o mal-estar que os desacertos no sistema de justiça escancara a perda de referência ética, funcional e epistemológica que o afeta, aproximando-o a condição de indecência (cf. em https://estadodedireito.com.br/relacoes-indecentes/, a minha e outras importantes manifestações e críticas nesse sentido.

             Bem longe estão hoje em geral os juízes e outros operadores, daquele perfil de provedores de uma justiça poética, referidos a essa estirpe de juízes que, lembra Josaphat Marinho em discurso de homenagem a Víctor Nunes Leal na UnB, citando Aliomar Baleeiro, leva a jurisprudência do Supremo a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”. Sua primeira decisão, entretanto, desconforme ao sentido de realização de valores propugnados pelo sujeito constitucional – o próprio povo –, aponta para um adiamento dessa expectativa.

             Entre eles aqueles ácidos críticos da expressão de uma justiça que se realiza em reconhecimento ao protagonismo social de sujeitos instituintes de direito, têm sido acolhidos em O Direito Achado na Rua, tão atacado por um segmento, instalado no próprio Supremo Tribunal Federal. Basta ver, em discussão recente, essa quase diatribe: “O afastamento da letra da Constituição pode muito bem promover objetivos constitucionais de elevado peso normativo, e assim esteirar-se em princípios de centralidade inconteste para o ordenamento jurídico” contida na expressão de voto do ministro Gilmar Mendes na decisão sobre vedação de recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente.

            Tratei de alguns desses aspectos, entre outros textos, o que está em minha Coluna Lido para Você – https://estadodedireito.com.br/o-judiciario-entre-a-modernidade-e-a-contemporaneidade/ . E é a partir de enunciados expendidos nesses textos  que pude, com Renata Carolina Corrêa Vieira, captar o sentimento já gritado até nas ruas da América Latina, crítico ao exercício judicial, conforme está em nosso texto Que se vayan todos! (https://constitucionalismo.com.br/que-se-vayan-todos/.

             De fato, na América Latina inteira, um pouco por toda parte, em que pesem soluços regressivos de autoritarismo útil ao projeto neoliberal que procura instalar-se em nossos países, a exemplo do que ocorre agora no Brasil, há uma disposição democrática por justiça, igualdade, dignidade e respeito aos direitos humanos, enraizada definitivamente na cultura de nossos povos.

             Na Venezuela de Chávez, em 2002, contra a tentativa de golpe, essa mobilização se fez forte e se expressou em palavras de ordem inscritas nos muros das ruas de Caracas: “Las calles no se calan! Exigimos justicia!”.

             Em entrevista à Folha de São Paulo (A 14, 25/4/05) Marta Lagos, Diretora da Latino Barómetro, vê com boa expectativa democrática as movimentações sociais na América Latina atual, salientando o fato relevante de um protagonismo popular que, “de maneira crescente, se dando conta de seus direitos, volta às ruas para exigi-los”. Indica, além disso, que esses movimentos parecem sinalizar às elites que elas “não são adequadas ao momento democrático pelo qual passa o nosso continente”. Para ela, “as populações latino-americanas, hoje, parecem estar um passo à frente das elites que as governam”. Já em 2005 (Folha de São Paulo, A 14, 27/4/05), em Quito a matéria chamava a atenção para a retomada da mesma palavra de ordem que agora se proclama no Perú: Que se vayan todos!! – Que todos partam!!

             Surgida pela primeira vez na Argentina, nos piquetes e nos cacerolazos (panelaços) de 2001/2002, a consigna que rapidamente se inscreveu no imaginário latino-americano sublevado, logo passou a traduzir a interpelação popular pelo desmantelamento das estruturas oligárquicas e das instituições por elas criadas e funcionalmente a serviço de seus interesses.

             Curiosamente, embora dirigida aos políticos em geral, em coro nas marchas ou pintadas com aerosol em muros e paredes, estas palavras de ordem, lembra Julio de Zan (La Ética, los Derechos y la Justicia. Fundación Konrad-Adenauer, Uruguay, Montevideo, 2004), ganhou maior ressonância quando dirigida “contra membros do Poder Judiciário, em particular contra os próprios juízes” repetida que foi em manifestações massivas, por exemplo, “diante da Corte Suprema de Justiça em Buenos Aires, quando exigiam a renúncia dos magistrados”.

             A esse respeito, em questão proposta ao jurista Carlos Maria Cárcova, antigo membro do Conselho de Justiça da Província de Buenos Aires, nesses termos (Observatório da Constituição e da Democracia: Brasília: Faculdade de Direito da UnB/SindjusDF, n. 20, março de 2008, pp. 12-13):

             “O Senhor integrou como membro o Conselho de Justiça da Província de Buenos Aires. Exatamente numa época em que as demandas sociais por justiça acabaram identificando nos juízes, um grande obstáculo às reivindicações de direitos. A expressão “que se vayan todos” traduz bem o repúdio social à incapacidade dos juízes e do direito positivo de assimilarem ou mesmo compreenderem o alcance dessas demandas. Afinal, que fazem os juízes quando julgam?”,

Ele afirmou:

             “La consigna “que se vayan todos” estuvo claramente dirigida a los políticos, sea del partido que fueran. Era una consigna más que discutible desde una posición democrática y transformadora, con un tufillo algo facistoide, pero que prendió en la gente, frente a una situación de ingobernabilidad extrema, de una crisis económica sin precedentes y de un saqueo ilegítimo de los ahorros de la ciudadanía, cuyos depósitos en cuentas corrientes bancarias, cajas de ahorro, acciones, plazos fijos, etc. fueron incautados. ¿Qué hizo la ciudadanía? Confió en los jueces y colapsó los juzgados con recursos de amparo (mandatos de seguranza). La Corte Suprema de entonces, de mayoría menemista, intentó legitimar las decisiones expropiatorias del Ejecutivo, pero la Justicia de Primera y Segunda Instancia siguió haciendo lugar a los amparos y declarando la ilegitimidad de las medidas. Luego el Gobierno fue dictando medidas tendientes a arbitrar entre ahorristas y banqueros y lentamente se llegó a acuerdos que significaron recuperar parte sustancial de los dineros reclamados. En cuanto al desprestigio de la Justicia, debe consignarse que estuvo fundamentalmente acotado a la denominada justicia federal, que era la encargada de juzgar a los funcionarios y perseguir la corrupción. Esa fue constituida en épocas del menemismo bajo un signo de marcado clientelismo político, (todavía no había concursos para la designación de magistrados). La mayoría de esos jueces ya han renunciado y los nuevos provienen de concursos cuya legitimidad no se ha cuestionado. En mi opinión, para concluir, durante la crisis del 2001/2, la ciudadanía buscó protección en la Justicia y, por lo general, la obtuvo”.

             Em 2005, em Quito, a crise se desencadeou logo após a dissolução da Suprema Corte do Equador, colocada no seu epicentro, como um dos fatores políticos que lhe deram causa. Não se trata de forçar uma centralidade, mas de destacar que um apelo à defesa, à sua preservação e à renovação democrática passa necessariamente pela reconstrução das instituições políticas e judiciarias.

             O trabalho organizado por Julio Zan, acima citado e a manifestação de Carlos Cárcova têm por motivação o tremendo embate que se abriu na Argentina após as interpelações que se fizeram na Venezuela, no Equador e mais recentemente no Perú. Elas afetam os Tribunais Constitucionais, os Tribunais Eleitorais e as Supremas Cortes, mas também o Executivo e o Legislativo, até chegar ao “fora todos”. Nesses países, foram essas circunstâncias limite, lembra Zan, os determinantes que levaram “amplos setores da própria magistratura argentina a compreender a necessidade de encarar uma profunda renovação ética da justiça e trazer a instituição para mais perto da cidadania”. E neste momento, a trazer a cidadania para o centro do protagonismo que rejeita a austeridade concentradora a serviço da acumulação das elites, conduzindo com seu protagonismo eleitoral uma retomada democrática de um sistema de mais efetiva dignidade distributivista, como parecem indicar as eleições em curso.

            No Brasil, o cansaço e a decepção parecem também conduzir a um despertar de um protagonismo prestes a eclodir. Aos poucos vai se revelando um cancro institucional que se enquistou na tessitura democrática da política e contaminou a própria história do País. Uma cumplicidade nefasta, ardilosa, traiçoeira ampliou-se nessa tessitura numa metástase dilaceradora. Setores institucionais e do sistema de justiça engolfaram-se na necropolítica que produz a exceção. Julgavam-se aliados num arranjo semelhante a um partido. Não são, agora se revela, correligionários, são cúmplices, sacrificam a ética funcional configurada como “filigrana jurídica” no descaminho da política e, em última análise, da Justiça. Seu crime é de lesa-pátria e de lesa-Constituição, imprescritível, imperdoável, inapagável.

             Que se realize, pois, repito, uma justiça poética, conforme sugere a filósofa Martha Nusbaunn, e agora o Papa Francisco que, contra a injustiça que gera desigualdade e indignidade, alude a uma justiça poética, que se transmute em sensibilidade, em solidariedade, em disposição para pensar, sentir e agir com o outro (fratelli tutti) exposto a julgamento: “quando a justiça é verdadeiramente justa, aquela justiça torna os países felizes e seus povos dignos. Nenhuma sentença pode ser justa, nenhuma lei é legítima se o que geram é mais desigualdade, se o que geram é mais perda de direitos, indignidade ou violência”.

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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