O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

 

Fronteiras improváveis entre tempos e direitos

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

LUCAS CRAVO DE OLIVEIRA.  Fronteiras improváveis entre tempos e direitos: constitucionalismo compartilhado entre os sistemas de justiça estatal e Mẽbêngôkre Kayapó no acidente do Gol 1907. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Orientador: Prof. Dr. Douglas Antônio Rocha Pinheiro Coorientador: Prof. Dr. Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão. Brasília, 2020, 140 p.

           Começo, me dirigindo aos pesquisadores e especialmente aos Editores que possam vir a ter interesse na publicação, pelo resumo da dissertação, elaborado por seu Autor: Esta pesquisa se dedica a compreender a maneira como o constitucionalismo brasileiro cria as condições normativas para que concepções de justiça distintas sejam administradas em um mesmo conflito. Trata-se de um estudo de caso acerca de uma indenização peculiar ao povo indígena Mẽbêngôkre Kayapó, em razão da queda de um avião da companhia aérea Gol, na Terra Indígena Capoto-Jarina. Por meio da intermediação do Ministério Público Federal, iniciou-se um processo extrajudicial que culminou em um acordo que prevê uma indenização por danos culturais. Esta categoria é discutida ao longo do processo, sob outras nomenclaturas como danos socioculturais ou danos espirituais. As abordagens metodológicas foram inspiradas em técnicas e práticas da micro-história e da antropologia jurídica, configurando-se como uma pesquisa qualitativa. Em perspectiva, um exercício micro-histórico foi realizado em relação ao debate constituinte acerca do Estado brasileiro ser reconhecido ou não como plurinacional ou pluriétnico. As análises em escalas alternadas objetivam potencializar os estudos das possibilidades de se pensar um constitucionalismo compartilhado, que administre tempos e direitos inscritos em perspectivas culturais diversas”.

Créditos: PixaBay / Katiabraga

           Logo passo ao Sumário, indicando a influência de modelo antropológico de narrar. Em seguida à Introdução, um capítulo cuida da Construção do problema de pesquisa, quase ao modo de diário de campo: Eu e o caso; Chegando a Brasília; A pesquisa empírica e a transformação de quem a experimenta; Estratégias metodológicas; Constitucionalização dos direitos indígenas; O passado constituinte no presente tutelar. Logo o segundo capítulo As narrativas do processo: A chegada do procurador Wilson Assis; O contato com a Gol; O MPF, a Gol e os Kayapó: sincronizando perspectivas; A reunião na 6ª CCR; Laudo técnico antropológico; Respostas aos quesitos; O acordo; Percepções dos atores sociais; Ministério Público Federal; Mẽbêngôkre Kayapó I; Fundação Nacional do Índio; Instituto Raoni; Mẽbêngôkre Kayapó II & Defensoria Pública da União. Finalmente os encaminhamentos conclusivos e a precisa bibliografia.

           Logo na Introdução o Autor declina em que consistirá o seu trabalho. “Trata-se – diz ele – de um estudo de caso acerca do acordo extrajudicial firmado entre a Gol e o povo indígena Mẽbêngôkre Kayapó, com a intermediação do Ministério Público Federal, em razão da queda do avião da companhia aérea na Terra Indígena Capoto-Jarina. Optei por dividir a estética do texto dissertativo em dois capítulos, somando-os à Introdução e aos Encaminhamentos conclusivos. Na Introdução, apresento o que será encontrado ao longo da dissertação, além de fazer uma breve descrição dos acontecimentos e eventos que levaram à construção do problema de pesquisa.  O primeiro capítulo sedimenta as bases para as análises. Explicito a maneira como o problema de pesquisa foi construído, descrevendo sua genealogia e consequentes desdobramentos. Em seguida, verifico a maneira como ocorreu a constitucionalização dos direitos indígenas durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, com destaque para o debate acerca do Estado brasileiro ser reconhecido como plurinacional ou pluriétnico. No segundo capítulo, dedico-me a analisar o arquivo reunido de documentos referentes ao caso, bem como as entrevistas realizadas com os principais atores sociais envolvidos. Os Encaminhamentos conclusivos foram estruturados como uma conclusão alargada, sem a pretensão de apresentar resoluções inabaláveis, mas sim com o objetivo de sugerir possíveis prospecções, a partir das análises confeccionadas”.

           Mas o que eu próprio gostaria de distinguir no texto para interpelar interpretações e possibilidades plurais de consideração do jurídico, é a caracterização no impasse que se criou e que foi o cerne da mediação para estabelecer um entendimento, foi a circunstância de afetação do território pelo acidente espalhando destroços, pertences e vítimas, fato que, no simbólico indígena configurou o espaço e sua representação como “proibido à circulação humana”. Diz o Autor na página 71 de seu trabalho: “Ali, passaram a habitar os espíritos que morreram na ocasião…Em razão disso, passaram a ser proibidas atividades que envolvam caça, pesca, roçado ou construção de aldeias, tornando essa área completamente inacessível kayoikot – para sempre”. É a partir dessa caracterização que surge a reivindicação de reparação que alcance não somente os impactos ambientais, mas também os espirituais causados em razão da queda do avião.

           O Autor se refere a um Brasil pós-Constituição de 1988, no entrechoque de rupturas e continuidades de um processo que tenho indicado se dirige a um Constitucionalismo Achado na Rua. Para localizar as referências desse enquadramento pesquisar em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Coord). O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, págs. 41-48 (Constitucionalismo Achado na Rua); págs. 220-227 (Análise dos Elementos do Novo Constitucionalismo Brasileiro). Ver também, SILVA JÚNIOR. Gladstone Leonel da; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. La Lucha por la Constituyente y Reforma del Sistema Político em Brasil: Caminos hacia um ´constitucionalismo desde la calle’. La Migraña, Revista de Análises Político, n. 17/2016, La Paz, Bolivia, pág.s. 134-142. Também nessa linha, em texto expandido SILVA JÚNIOR, Gladstone Leonel da; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. A Luta pela Constituinte e a Reforma Política no Brasil: Caminhos para um “Constitucionalismo Achado na Rua”. Rio de Janeiro: Revista Direito e Práxis, vol. 8, n. 2 (2017), págs. 1008-1027; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, FONSECA, Lívia Gimenes Dias da. O Constitucionalismo Achado na Rua – uma Proposta de Descolonização do Direito. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro, vol. 8, n. 4, 2017, págs. 2882-2902; entre outras aproximações que podem ser verificadas aqui nesse espaço da Coluna Lido para Você.

           Pois, O Direito Achado na Rua enquanto compreensão teórico-política do jurídico pode se inscrever nessa categoria de prática democrática de ampliação da cidadania e dos direitos e são inúmeros os registros de inscrição nos repertórios normativos de novas categorias que emergem do processo de reconhecimento do processo social instituinte de novas juridicidades. Isso explica, em boa parte, a exaltação ultimamente ressonante, inclusive no espaço do Supremo Tribunal Federal, que logo identificou nesse fundamento uma contraposição ideológica, ética e epistemológica às razões que tem sido esgrimidas para funcionalizar o jurídico para embalar a substantividade de formas de atribuição  de titularidades,  de modos de aquisição patrimonial ou investidura de prerrogativas que já não respondem ao substrato material que devam informá-las, em face de profundas transformações na infraestrutura do sistema econômico de acumulação ou do sistema jurídico de legitimação do poder político. O Direito Achado na Rua prossegue, teórica e politicamente, a designar a ampliação de espaços de sociabilidade para as relações de reciprocidade legitimadas que permitem instituir-se novas sociabilidades e novos direitos; a contribuir para reconhecer a legitimidade dos protagonismos sociais desses sujeitos contra a tentação de criminalizar as suas formas de intervenção e a oferecer categorias de enquadramento jurídico para as invenções democráticas desses novos direitos (CF, art. 5o., parágrafo 2o.). É uma disputa de narrativa  e, como lembra Canotilho, na entrevista citada, aludindo exatamente a O Direito Achado na Rua para a acentuar, trata-se de afrontar  a insensibilidade dos juristas à perspectiva antinormativista dos cultores das teorias criticas. Estes têm apontado para a necessidade de o sujeito de direito se aproximar dos “sujeitos densos” da vida real e para o pluralismo e diferença de regulações no contexto global e “alteromundial”, até que seja sacudida e se mostre disposta a ir para o meio da rua, abrindo-se diz Lucas, “a pensar direitos sob outras sensibilidades jurídicas”.

           O Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho do retorno à sua função social e conduz ao que o Autor designa como constitucionalismo transformador. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular.

           Insere-se nessa tensão de reconhecimento, o meu esforço, há poucos meses, em procedimento ainda em curso, quando fui convidado a oferecer parecer sobre as implicações do “componente indígena na disputa pelo desenvolvimento”. A questão posta em causa está relacionada à política de concessão e outorga para a construção da BR-163/PA, que interfere em território e culturas indígenas, potencializando os conflitos de posse e demarcação de terra e territórios, com projeção para a degradação de recursos naturais de áreas ocupadas por indígenas, povos do Xingu no caso, a TI  Panará (Kayapós). Muito do que orientou a minha posição no parecer, se relaciona à devida consideração aos Direitos dos Povos Originários à Luz do Pluralismo Jurídico e Consulta Prévia estabelecida com a Convenção 169, da OIT (Organização Internacional do Trabalho), no âmbito do Sistema ONU, mas também a tudo que compreende seu projeto de vida e até de pós-vida, conforme já vem compreendendo como considerável a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

           Com efeito, em face do contraste entre o paradigma liberal do sistema europeu e a saída multicultural interamericana, tem sido retomada no âmbito da CIDH a discussão seguidamente proposta por Antonio Augusto Cançado Trindade, que por duas vezes foi seu Presidente, sobre se o conjunto de reparações fixadas representariam, do ponto de vista simbólico, o reconhecimento de um dano a um projeto pós-vida (CORTE IDH. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Surinam. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia 15 de junio de 2005. Serie C No. 124 17. 125). Trata-se de uma noção adaptada da própria cosmovisão que dá um especial sentido ao tempo e ao espaço, permitindo que a noção de pessoa seja estendida para além das fronteiras do mundo material. Para um questionamento tão profundo, de fato, essa parece ser uma saída válida. As reparações fixadas no caso indicado representam, justamente, o respeito ao pluralismo e à cosmovisão, permitindo que a comunidade resgaste a sua identidade cultural e a coexista com os seus ancestrais, de acordo com os usos e costumes. A reparação deve ser integral e o sistema protetivo não deve conferir ao Estado violador a discricionariedade para a definição das medidas a serem implementadas.        

           O caso Moiwana consagra uma especial noção de justiça em que os vivos honram seus ancestrais para que, a partir de elementos espirituais que a razão ainda não explica, os mortos possam permanecer vivos. E assim, a existência segue o seu ciclo.

           No meu parecer, de partida, ainda que o foco da questão derive de uma base específica – outorga e concessão de construção de rodovia – trata-se de um processo sensível, para além de sua alta relevância cogente, inscrita nos princípios civilizatórios convencionais e constitucionais que balizam a questão. Num determinado plano, alcança-se aquela dimensão, diria Mia Couto (Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra), na qual “o luto ordena que o céu se adentre nos compartimentos, para limpeza das cósmicas sujidades”. Em outro plano, mais no âmbito da materialidade, chega-se quase a um item prioritário do programa de “concessões” do atual governo, cuja compreensão acerca do desenvolvimento e da integração da região amazônica em sua estratégia econômica, carrega também a expressão problemática dos enunciados do modo redutor do reconhecimento político-jurídico dos direitos dos povos originários, indígenas e tradicionais, relativos a sua organização social, costumes, crenças, tradições e reprodução física e cultural. Mas que tem como pano de fundo a exigência de um necessário enquadramento, inclusive filosófico-constitucional, para aferir o entendimento sobre o alcance dos direitos dos povos tradicionais originários.  

           Meu entendimento sobre a questão específica, atento a essa realidade, nos mais variados temas, considerando o impacto na região, no corredor logístico do Xingu, que se projeta o traçado da BR-163, foi confrontar a Nota Técnica elaborada por assessoria socioambiental convocada por entidades de apoio às comunidades indígenas dos povos do Xingu, que avalia da operação da rodovia BR-163/PA (Cuiabá-Santarém) e os impactos indiretos sobre as áreas protegidas do Corredor de Sociobiodiversidade da bacia do Xingu (CSX), para dela extrair elementos que iluminem a percepção mais geral desses direitos cogentes.

           Com efeito, a Nota Técnica considera “os efeitos da abertura, da pavimentação e da operação do trecho paraense da BR-163 sobre as populações indígenas e os espaços territoriais especialmente protegidos de sua área de influência, discutindo os impactos ambientais previstos no estudo que levou ao licenciamento de sua pavimentação, a situação atual dessa área de influência e as perspectivas associadas à concessão da rodovia à iniciativa privada, proposta pelo governo e em fase de planejamento”, oferecendo o cabal contexto histórico da abertura da BR-163  uma das peças fundamentais do “Plano de Integração Nacional” (PIN), que visava dotar de infraestrutura as regiões Norte e Nordeste do país, juntamente com a rodovia BR-230 (Transamazônica).

           Ainda que a Nota Técnica aprofunde os aspectos socioambientais, não descura de acentuar que, “do ponto de vista dos objetivos, ao conceber uma ocupação que ignorava por completo as características ecológicas da região, o PIN trazia em sua essência uma cegueira voluntária e imperdoável, na forma como a questão das populações autóctones foram tratadas. O contato tardio com as Panará e sua remoção forçada para o Parque Indígena do Xingu, já com a rodovia praticamente pronta a ser liberada para o tráfego, é a melhor síntese desse processo”.

           Atenta ao componente indígena que necessariamente, convencional e constitucionalmente, devesse guiar o centro da política de concessão e outorga, considerando a ocorrência desse componente, a Nota expõe que os indígenas que vivem nessa região, “ao terem seu território cortado pela BR-163, o grupo sofreu gravíssimas perdas populacionais, a tal ponto de a Funai ver-se obrigada a fazer a remoção dos remanescentes para o Parque do Xingu, em uma tentativa extremada de garantir sua sobrevivência. Seu retorno às cabeceiras do rio Iriri, resultado de uma luta incansável pela recuperação de seu território é o ponto culminante de um processo ainda não de todo estabilizado, haja vista as ameaças que pairam sobre a integridade da TI Panará”.

           Isso porque, no juízo dos analistas, “as populações indígenas que viviam na região cortada pelas rodovias e cujos interesses não foram por um momento cogitados, além de terem seus direitos vilipendiados eram vistas como um entrave para o modelo de desenvolvimento pretendido”.

           Esse é um pressuposto que não se pode negligenciar, o de que por trás das ações políticas e dos modelos interpretativos dos fundamentos convencionais e constitucionais, há um disputa sobre modelos de desenvolvimento, que têm se prestado a ações de consideração da reserva de reconhecimento sobre como devem ser tratados os direitos dos povos indígenas. Tema que percorre toda a leitura que Boaventura de Sousa Santos faz sobre essa questão e que ele expõe em seu texto Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento, in SANTOS, Boaventura de Sousa e CHAUÍ, Marilena. São Paulo: Cortez Editora, 2013), cujo prefácio tive a honra de elaborar. Nesse autor, o dilema está entre um desenvolvimento voraz que canibaliza a vida, e a mensagem reativa dos povos indígenas que “ao defender as suas terras e modos de vida, estão a lutar para que o planeta não se torne inabitável em futuro próximo”, apontando “para os interesses das maiorias antes de estes terem maiorias para os defender”.

           De outra feita, em Brasília, na Universidade de Brasília, fui convidado a proferir a CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO – “A integração do ensino superior dos países lusófonos para a promoção do desenvolvimento humano”, por ocasião da 9ª CONFERÊNCIA DO FÓRUM DE GESTÃO DO ENSINO SUPERIOR NOS PAÍSES E REGIÕES DE LÍNGUA PORTUGUESA – FORGES, de 20 a 22 de Novembro – 2019 | Brasília, Brasil (https://revistaforges.pt/index.php/revista/article/view/111/79).

           Na ocasião, balizei a minha manifestação com a consideração da urgência de se promover Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória (referência à proposta de Boaventura de Sousa Santos).

           Iniciei a minha saudação aos participantes desta 9ª CONFERÊNCIA DO FÓRUM DE GESTÃO DO ENSINO SUPERIOR, com uma chamada à direta atenção aos temas da Grande Conferência tangidos de modo aprofundado e interpelante nas conferências, painéis, sessões especiais, orais e de pôsteres, mesas-redondas, atividades culturais e assembleias, ao se discutir e confrontar experiências e reflexões: políticas de ensino, comunicação entre instituições e sociedade, impacto glocalizado do agir institucional, concertações entre alternativas pedagógicas, estratégias de gestão, revela já uma linha de orientação para atender à indagação do que há de comum a partir de nossa origem histórica, social, antropológica, cultural, espiritual e a possibilidade de um destino comum aqui vislumbrado desde a questão-geradora que nos mobiliza: O Ensino Superior e a Promoção do Desenvolvimento Humano: contextos e experiências nos países e regiões de língua portuguesa.

           Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções atuais do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.

           Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando num bom português que ajude a interpretar os desafios que se colocam à nossa consideração, tal como se debateu aqui nesta 9ª Conferência. Retomo Avelãs Nunes: “Nos últimos anos – diz ele – tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática. Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.

           A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenómenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.

           É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a actual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis desta civilização fim-da-história.

           Assim como esta globalização não é um ‘produto técnico’ deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projecto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, assim também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas ‘leis naturais’ do mercado ou da economia, pressupõe um espírito de resistência e um projecto político inspirado em valores e empenhado em objectivos que o ‘mercado’ não reconhece nem é capaz de prosseguir.

           Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disto mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.

           De resto, talvez a utopia de Marx esteja a confirmar-se: o desenvolvimento científico e tecnológico conseguido pela civilização burguesa proporcionou um aumento meteórico da produtividade do trabalho humano, criando condições novas no que toca à capacidade de produção. Este desenvolvimento das forças produtivas (entre as quais avulta o próprio homem enquanto produtor e utilizador do conhecimento e do saber) só carece de novas relações sociais de produção, de um novo modo de organizar a vida colectiva, para que a humanidade possa saltar do reino da necessidade para o reino da liberdade.”

           Para a Nota Técnica, a BR-163 apresenta diversas características únicas, que a tornam um caso emblemático para a análise das formas de ocupação do território brasileiro. Sua amplitude latitudinal é extraordinária, distribuindo-se desde o paralelo -15º, em Cuiabá, até -2,4º de latitude sul, em Santarém. Do Cerrado stricto sensu à Floresta Tropical Equatorial Amazônica, interceptando ecossistemas quem embora completamente distintos, dividem traços fundamentais, como são a enorme biodiversidade e a alta complexidade que rege seu funcionamento:  “Projetada no divisor de águas, a BR-163, no Pará, intercepta um dos maiores centro de endemismos para a fauna amazônica, na ecorregião denominada Tapajós-Xingu, o que torna a região especialmente relevante em termos da conservação da vida silvestre…Nesse processo, os efeitos sobre as populações tradicionais foram de grande magnitude, e inúmeras vezes a forma de agir do Estado era reativa, na tentativa de manter o tênue equilíbrio que ainda hoje marca a relação das comunidades indígenas com a sociedade envolvente”.

           O que importa considerar, em qualquer aproximação a esse tema é, voltando a Mia Couto, na obra citada, ter em conta que “a terra esteja aberta a futuros”.   Mas a terra pensada de acordo com Gersem Baniwa (Gersem José dos Santos Luciano), que compreende que “a luta pela proteção dos territórios indígenas é o que unifica, articula e mobiliza todos, abordando especialmente a importância para a vida dos povos originários, sem o território não há saúde, educação, proteção do meio ambiente, não há vida, o território é fundamental na resistência dos povos indígenas, para além de bens materiais o território tem um significado que envolve espiritualidade, valores, conhecimentos e tradições. Território é onde se fortalece a identidade e a cultura de cada povo” (retirei a referência em MONTEIRO, Suliete GervásioO Retorno de Xawara no Território Yanomami: Conflito, Luta e Resistência. Projeto de Qualificação para o Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania. Brasília: UnB/CEAM/Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, 2020).

           É na abertura para o futuro que penso devam ser conferidas em “prospecção impulsionada pela imaginação visando a conclusões alargadas” que levem a discernir “as fronteiras improváveis entre tempos e direitos”, no compartilhamento de normatividades entre sistemas de justiça, tal como defende Lucas Cravo de Oliveira, em sua dissertação, para pensar como real um ir e vir em visita, de novo Mia Couto, claro que pensando a África, mas numa representação que se aplica também aos povos originários americanos, “entre o mundo dos mortos e o dos vivos, viajando entre esses dois mundos”, sempre de sorte a defrontar-se com “fantasmas, esses mal morridos”.

           Também para os indígenas brasileiros, é o que nos assevera Lucas Cravo de Oliveira, essas representações se ligam diretamente a um real em simbiose entre o material e o imaterial. Suas narrativas são reais, registra Catherine Fonseca Coutinho (Projeto de Qualificação de Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania. Brasília: UnB/CEAM/Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, 2020), com Daniel Munduruku, sua fonte direta: “Elas aconteceram de verdade e marcaram profundamente o modo de ser do meu povo. É por causa da repetição constante dessas histórias que esse povo relembra seu sentido de existir e permanece atuante e lutando pelo direito de viver. É assim que damos sentido e valor à nossa existência”.

           Para Lucas Cravo de Oliveira, conforme ele próprio diz, O esforço que faço é o de articular argumentos que colaborem para a compreensão acerca de como o constitucionalismo brasileiro pode viabilizar soluções compartilhadas para demandas de direitos indígenas. E chegado ao fim do processo, inevitavelmente há uma dupla mirada para onde os olhos se voltam: o percurso de longa duração do tempo constituinte e a atuação comprometida de quem é defrontado no presente. Os fios soltos precisam ser entrelaçados sob nós que lhe atribuam sentidos.  O comparativo entre estes dois recortes temporais dá o tom desta conclusão alargada. Dentro de seus limites, penso que esta pesquisa pode esboçar prospecções possíveis a partir de suas escavações. De um lado: a história constitucional, seus produtos, suas trilhas abertas e as que foram soterradas. Do outro: a urgência do mundo empírico, este espelho torto sobre o qual se projetam imagens e que as devolve desordenadas. Este caleidoscópio de fragmentos conjugados entre normas e demandas sociais tornou possível uma solução compartilhada. O texto do acordo é uma síntese simbólica do esforço dialógico de aproximadamente quatro anos. Quem o lê em sua versão final não imagina a dedicação necessária para que se chegasse a ele. Como é próprio dos documentos jurídicos ele é uma versão polida do conflito (DUPRET, 2006; GERALDO, 2014) que possui inúmeras dimensões e complexidades, algumas das quais explicitadas aqui. O terreno normativo que o tornou possível é produto do pacto constituinte: outro processo intenso de longa duração que guarda avanços e retrocessos ao longo de suas fases. A articulação entre ambos os processos tornou o caso Gol uma administração de conflitos singular”.

           Penso que, ainda segundo o Autor da Dissertação, seguindo os estudos paradigmáticos sobre pluralismo desenvolvidos por Boaventura de Sousa Santos “este caso é um exemplo de atuação nas fronteiras do possível. Existem outros pluralismos jurídicos, os quais analisam a coexistência de sistemas de justiça distintos no mesmo espaço geopolítico (FAJARDO, 2011). Bem como as manifestações do direito enquanto legítima organização social da liberdade (LYRA FILHO, 1982; SOUSA JÚNIOR, 2019). O elemento que me parece trazer a singularidade do caso Gol é que a materialização da vontade dos atores sociais organizados é decorrente de uma comunhão de esforços. Ouvi repetidas vezes dos atores sociais que participaram desta administração de conflito que todos os envolvidos atuavam na busca genuína de consenso. Inclusive os representantes da empresa responsável pelo dano e pela consequente indenização. A afirmação que me parece viável é que foi um caso operado nos limites da interlegalidade (LOBÃO, 2016). Quase um trabalho de tradução entre dois sistemas de justiça na procura de uma gramática comum. Uma síntese jurídica que fosse capaz de apanhar diversas concepções de justiça. Fica o questionamento: as relações de interlegalidade são abrangidas pelo constitucionalismo estatal, pelas manifestações plurais do direito, ou situam-se em algum lugar na fronteira entre um e outro?”. E eu ainda acrescento, considerando os termos discursivos da Dissertação: a questão espiritual que emergiu dos diálogos e da busca extrajudicial de consensos, encontra nessa fronteira, “entrada para um conflito cognitivo que permita interpretar o mesmo fato a partir de signos distintos” (p. 102)?

           E, se a razão principal que fundamentava o pleito indígena “era a criação da mekaron nhyrunkwa, em vista das mortes sem a possibilidade dos rituais fúnebres necessários. E seu tempo de duração seria kayoikot, ou seja, para sempre. No processo, a duração deste para sempre é relatada como algo que existirá enquanto houver memória, no sentido de que sua permanência será enquanto perdurarem as lembranças do que aconteceu. O evento perderia seu significado quando os Mẽbêngôkre Kayapó não se recordassem mais do ocorrido. E como a memória poderia atuar como dispositivo de esquecimento, enquanto houvesse destroços no local? Isto seria potencialmente impossível, uma vez que os restos do avião são incutidos de uma determinada historicidade perante os Kayapó.  A indenização compensatória precisava de uma nova gramática para se adequar ao sistema de justiça oficial. E este exercício criativo não poderia deixar de levar em consideração as diferentes dimensões temporais deste conflito. Se o dano é permanente, kayoikot, e isto se desdobra enquanto houver recordações, a legitimidade do acordo poderia ser diluída à medida em que sua assinatura repousasse no passado. Por isto a importância de ter lideranças jovens assinando-o junto com as lideranças tradicionais”.

           Eis outra questão nodal na construção das possibilidades de entendimento que a mediação permitiu estabelecer. Configurar a legitimidade dos protagonistas, o seu reconhecimento ativo enquanto subjetividade constituída desde o sistema de poder e de justiça indígena autônomo Aliás, como as partes desde os protocolos que assentaram os termos do acordo (“Informar as estruturas internas de poder e as formas de representação jurídica da comunidade Kayapó da TI Capoto Jarina em suas relações com a sociedade majoritária, de modo a esclarecer, precipuamente, o meio adequado de formalização do acordo entre a comunidade indígena e a empresa…), incluindo os compromissos intergeracionais (novas e velhas lideranças) e os procedimentos de deliberação (a Consulta prevista na Convenção 169, da OIT).

        Concordo com Lucas. Ainda que se façam presentes as dificuldades, empírica e teoricamente, para assimilar e mensurar o que se manifestou no caso como dano espiritual, tão bem configuradas na Dissertação, é nessa fronteira que radica o projeto de vida e o projeto de pós-vida, vale dizer, da indisponibilidade das condições integráveis ao universo conceitual de direito de reparação quando haja uma violação e que alcança uma dimensão temporal de exigência de restaurar a dignidade atingida (cf. TRINDADE, Antonio Augusto CançadoEl Ejercicio de la Función Judicial Internacional. Memorias de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2011).

           Ao fim e ao cabo, uma atenção diz o Lucas Cravo de Oliveira para “a urgência do mundo empírico, este espelho torto sobre o qual se projetam imagens e que as desenvolve desordenadas”, mas que constituem ainda uma aspiração legítima a um conhecimento compartilhável, a um diálogo inteligível pois, mais uma vez com Mia Couto já tantas vezes referido, “No charco onde a noite se espelha, o sapo acredita voar entre as estrelas”.

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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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