SOCIOLOGIA
JURÍDICA E AUTO-REFLEXIVIDADE: DESAFIOS ATUAIS
*Leonardo
Cunha de Brito[1]
O
artigo produzido pelo prof. José Geraldo de Sousa Júnior, para além representar
uma importante síntese acerca das perspectivas epistemológicas atuais da
Sociologia Jurídica, suscita fortemente o espírito autorreflexivo, sobretudo
quando se leva em condição o atual contexto sociopolítico brasileiro e porque
não dizer, mundial, de ultraliberalização dos mercados e da cultura, de crise das democracias liberais, da escalada
autoritária, inclusive no Poder Judiciário, da retirada de direitos em sua
dimensão estatal e do enfraquecimento dos movimentos sociais e de seus sujeitos
coletivos.
O
desafio proposto por Boaventura de Sousa
Santos no sentido de captura da complexidade e irregularidade da co-presença
social, política, jurídica ou epistemológica para indicar o grau de
auto-reflexividade necessário para erigir conhecimentos que tenham de dar conta
de complexidades transitivas e que sejam, portanto, abertos à própria variação
sociológica (2000: 253) continuam absolutamente presentes e necessários para
uma abordagem atual de tal problemática.
Essa
postura autorreflexiva traz à baila, após décadas de evolução do pensamento
jurídico crítico, representado nos movimentos alternativistas do Direito, mas,
principalmente, de forma mais longeva, na perspectiva pluralista do Direito
Achado na Rua, traz um conjunto de questões sobre as quais a sociologia
jurídica deve se debruçar nos dias atuais.
Eis
algumas delas: quais são os impactos
sociojurídicos resultantes do contexto de retirada de direitos sociais,
precarização das relações de trabalho e criminalização dos movimentos sociais?
Como identificar os novos sujeitos coletivos criadores de novos ordenamentos
jurídicos em um contexto de atomização social individualista? Como fortalecer
modelos de cidadania participativa em um contexto em que até mesmo as
democracias liberais se encontram em crise, permitindo uma escalada
autoritária, presente inclusive nos tribunais, que sufoca os movimentos
sociais? Como garantir que os novos ordenamentos jurídicos sejam construídos em
uma perspectiva de cidadania ativa, não submetidos a uma lógica de mercado?
É
evidente que as respostas científicas para tais questões, embora pertinentes ao
campo da sociologia jurídica, requerem uma abordagem interdisciplinar como o
âmbito próprio para os estudos sociojurídicos. A complexidade própria da
pós-modernidade exige tal postura do ponto de vista científico, sobretudo no
que atine às ciências sociais.
Nesse
sentido, o reinventar epistemológico da sociologia jurídica, a partir das
realidades concretas, da vivência, da cultura, de forma descentralizada, para
além da dicotomia positivismo versus jusnaturalismo constitui, sem dúvidas, um
desafio permanente.
Assim,
procurando responder aos grandes desafios sociojurídicos da pós-modernidade, a
sociologia tem o escopo não apenas de cumprir o papel de identificar os novos
ordenamentos jurídicos surgidos a partir da realidade concreta das lutas
sociais preconizadas pelo pluralismo jurídico, em um contexto criativo de novos
direitos, como também de avaliar os impactos sociais causados pelo contexto
crescente de retirada de direitos sociais e da escalada autoritária em um
contexto de globalização.
Nesse
último sentido, é de grande valia o papel da sociologia jurídica trazido no
artigo por Arnaud (1999), no sentido de identificar os valores e ideologias não
explicitados que a legislação, a jurisprudência e a dogmática jurídica contêm.
Assim, cabe à sociologia jurídica identificar o porquê das influências
ideológicas que estão por trás, por exemplo, da retirada de direitos sociais,
da precarização das relações de trabalho e da criminalização de movimentos
sociais, que vêm tomando corpo tanto na produção legislativa nacional, quanto
nas decisões dos tribunais.
Ao
mesmo tempo, em uma perspectiva pluralista, caberá à sociologia jurídica
analisar como tais sujeitos afetados podem agir na construção de novos
ordenamentos jurídicos como forma de sobrevivência em tais contextos de
recrudescimento da opressão.
Observe-se
aqui que, ao contrário do contexto fértil dos novos movimentos sociais das
décadas de 70, 80 e 90, que conseguiram inclusive transformar práticas
jurídicas informais em conquistas jurídico-formais, o que se percebe nos dias
atuais é uma conjuntura de involução no campo dos direitos sociais positivados.
Há
de se ressaltar outros desafios apresentados no atual contexto para o Direito
Achado na Rua. O modelo econômico e cultural da chamada globalização neoliberal
veio a enfraquecer o caráter comunitário da ação político-jurídica e, via de
consequência, os movimentos sociais, uma vez que as relações sociais se
encontram cada vez mais individualizadas e, porque não dizer, muitas vezes,
monetarizadas. Tal realidade pode engendrar a perigosa consequência de
transformação dos ordenamentos plurais em espaços de reprodução de padrões
ideológicos neoliberais, e que, via de consequência, pode ocasionar a perda do
estatuto da cidadania dos trabalhadores e oprimidos propalada por Boaventura de
Sousa Santos
No
mesmo sentido, a chamada “renovação da teoria democrática”, proposta por Lyra
Filho, resultante da articulação entre democracia representativa e democracia
participativa, também se apresenta em uma conjuntura complexa.
A
democracia representativa, de origem liberal, encontra-se fortemente em crise
no mundo, tanto por sua dificuldade em dar respostas concretas aos problemas
dos cidadãos, em uma conjuntura de assenhoramento dos orçamentos públicos pelo
mercado global, quanto pela manipulação maquínica de resultados eleitorais,
como aconteceu no plebiscito do Brexit no Reino Unido, nas eleição
norte-americanas de 2016 e na eleição presidencial brasileira de 2018.
Quanto
à perspectiva da democracia participativa, essa também encontra seus paradoxos,
tanto por conta do enfraquecimento das experiências de Conselhos, dos
Orçamentos Participativos, dentre outras, e, como dito anteriormente, pelo
enfraquecimento dos movimentos sociais e sujeitos coletivos, mas também, por
conta da legitimação de movimentos reacionários e, porque não dizer, fascistas,
que se apossaram de ambientes virtuais e
das ruas para disseminar pautas contrárias às práticas dos direitos humanos e de
movimentos sociais progressistas.
É
inegável a importância que um movimento de auto-reflexividade tem para a
sociologia jurídica nos dias atuais, em uma perspectiva de evolutiva do ponto
de vista epistemológico. Nesse sentido, depois de décadas, o olhar pluralista,
representado pelo Direito Achado na Rua persiste como um paradigma
sociojurídico de grande atualidade, adequado para dar respostas científicas, mesmo
com as rápidas mudanças sociais ocorridas desde a sua criação.
Contudo,
o contexto atual de involução dos direitos sociais, aumento das desigualdades
sociais, precarização das relações de trabalho, enfraquecimento dos movimentos
sociais e dos sujeitos coletivos, enfraquecimento das democracias e escalada do
autoritarismo, do obscurantismo e do fascismo tanto na sociedade quanto nas
instituições apresenta-se, de fato, muito desafiador.
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