O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

 

Educando para os Direitos Humanos

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

       

 

Educando para os Direitos Humanos: pautas pedagógicas para a cidadania na universidade. José Geraldo de Sousa Junior, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Alayde Avelar Freire Sant’Anna, José Eduardo Elias Romão, Marilson dos Santos Santana, Sara da Nova Quadros Côrtes (organizadores). Porto Alegre: Síntese, 2004, 256 p.

(http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/a_pdf/livro_unb_educando_dh.pdf)

             Antes de mergulhar na leitura propriamente dita do livro destacado para este Lido para Você, ponho em relevo de sua própria apresentação, aliás, a meu encargo como um de seus organizadores, os elementos que dão sentido a iniciativa editorial que o motivou e que tem a ver com a institucionalização na UnB, do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos e da Disciplina Direitos Humanos e Cidadania.

            Com efeito, a institucionalização na Universidade de Brasília, da disciplina Direitos Humanos e Cidadania, integrante do módulo livre da estrutura curricular dos cursos de graduação, foi uma das mais importantes iniciativas do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos -NEP, unidade acadêmica vinculada ao CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares.

             Criado em 1º de dezembro de 1986, por ato do Reitor, o NEP representou a mais nítida e pioneira iniciativa concernente ao desenvolvimento de uma consciência acadêmica sobre os direitos humanos, no âmbito da Universidade de Brasília.

Fonte: pixabay

             Além disso, concebido em perspectiva temática e interdisciplinar, a sua organização procurou guardar correspondência ao novo modelo administrativo naquela altura experimentado na UnB, com o objetivo de criar condições para a reunião de pesquisadores, orientados por novas formas multidisciplinares de ensino e de pesquisa, com o estabelecimento de relações recíprocas, entre a sociedade, suas instituições e a própria Universidade.

             A inserção dos temas paz e direitos humanos, para conduzir as reflexões temáticas neste novo modelo, derivou de duas motivações complementares. No primeiro termo, a eleição naquele ano do Reitor Cristovam Buarque para a Presidência do Conselho da Universidade para a Paz, das Nações Unidas, com sede em San José, Costa Rica, havia criado condições para a celebração de um protocolo de intenções entre aquela Universidade e a UnB, para o desenvolvimento de um programa comum.

            O protocolo, assinado na cidade de Yxtapa (México), com a assinatura, na qualidade de testemunha, do escritor colombiano Prêmio de Literatura Gabriel Garcia Marques, pedia um ambiente universitário adequado ao desenvolvimento dos seus termos. Este ambiente foi o NEP, recentemente criado. No segundo termo, a atuação na UnB, notadamente na Faculdade de Direito, de um grupo crítico formado em torno à Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), sob orientação do Professor Roberto Lyra Filho, que havia trabalhado a partir da Revista Direito & Avesso, uma disposição militante para a prática jurídica pensada enquanto estratégia de legítima organização social da liberdade, tendo os direitos humanos como referencial para o reconhecimento do Direito socialmente construído, permitiu a abertura de um espaço de interlocução, até então politicamente limitado e epistemologicamente restringido. Este espaço foi o NEP.

             Para alcançar os seus objetivos o NEP se propôs, conforme os seus documentos constitutivos a:

1. desenvolver pesquisa capaz de produzir conhecimento novo sobre a paz e osdireitos humanos, reunindo investigadores de diferentes campos científicos num esforço interdisciplinar; 2. manter programa permanente de ensino e pesquisa no âmbito da universidade e da comunidade; 3. divulgar os conhecimentos sobre a paz e os direitos humanos, mediante publicações de resultados de pesquisas, do próprio NEP e de centros congêneres, organizar seminários, cursos e atualizações, e, promover conferências, colóquios, exposições e eventos; 4. efetuar intercâmbios com centros similares; 5. oferecer à comunidade acesso às suas atividades.

            A concepção de direitos humanos a que se referem os objetivos do NEP foi inicialmente lançada em um texto que serviu de ponto de partida para as discussões levadas a efeito no “Colóquio sobre Direitos Humanos na América Latina”, promovido no ano de 1997, em conjunto com a Fundação Danielle Miterrand (France-Libertes). Neste texto, o NEP afirmou que na América Latina o problema dos direitos humanos compreende não somente a luta pelos direitos humanos da tradição liberal, como os direitos individuais, políticos e civis; os direitos sociais, dos trabalhadores, desenvolvidos na pauta socialista; mas, também, a transformação da ordem econômica internacional e nacional, contra toda a marginalização, exploração e formas de  aniquilamento que impedem a possibilidade de uma participação digna nos resultados da produção social e o pleno exercício dos direitos da cidadania. Vale dizer, uma concepção abrangente que insere a paz como núcleo de um sistema complexo de relações políticas determinadas pela indissociável vinculação entre direitos humanos, democracia e liberdade.

            É importante assinalar alguns aspectos do contexto epistemológico de criação do NEP, complementando o que mencionei acima. De fato, conforme anotei em outro lugar (Sousa Junior, José Geraldo de, Núcleos Temáticos, in Boletim da UnB, Brasília, 1 a 15 de outubro/1989, pág. 2), “a experiência recente de implantação dos núcleos temáticos na UnB colocou até a altura do debate travado no Congresso Universitário, realizado na Universidade, pelo menos duas indagações liminares: há um lugar institucional para a interdisciplinaridade? Em que medida os núcleos temáticos se constituem um espaço privilegiado para uma prática multidisciplinar no tempo científico presente?”.

            A estas questões respondemos, Roberto Aguiar e eu próprio, num artigo preparado para a Revista Humanidades, editada pela UnB, nº 30, pondo em relevo a situação de transição entre racionalidades decorrente da conjuntura de perda de confiança epistemológica e de ambiguidades que permeiam as nossas convicções atuais sobre os fundamentos da sociedade e do papel que nela é atribuído ao próprio conhecimento.

             Nosso ponto de partida para esta resposta havia sido a indicação feita pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que nas décadas seguintes se notabilizaria como um dos mais fecundos pensadores contemporâneos e que, num colóquio promovido pelo NEP na UnB, em 1987 (“Política, Ciência e Direito e os Desafios da Pós-Modernidade”), chamando a atenção para os limites do conhecimento disciplinar e de seu reducionismo arbitrário contido num modelo datado de racionalidade.

            Se de alguma forma valeu essa discussão, ela de certa maneira contribuiu para o reconhecimento, na proposta dos núcleos e na promessa da interdisciplinaridade que eles portavam uma orientação de mudança de racionalidade em condições de assumir o desafio da transdisciplinaridade e do futuro epistemológico que se abria, ou seja, o de compreender, exprimir e tornar coletiva a experiência do saber produzido, como intervenção fora de seus lugares naturais.

            Isso explica porque, em seguida, na aprovação do novo estatuto da UnB, a promoção da paz e dos direitos humanos se incorporava às finalidades institucionais da Universidade de Brasília.

             A atuação consolidada do NEP levou à especificação de três linhas principais de estudos e pesquisa: a pesquisa para a paz, propriamente dita, atualmente coordenada pelo Professor Nielsen de Paula Pires e focalizada nos estudos de graduação (disciplina pesquisa para a paz) e de pós-graduação; o direito achado na rua, cuja referencia principal é o curso de extensão a distância, com o mesmo título, atualmente configurando uma série editorial (Série O Direito Achado na Rua), com nove volumes já publicados e várias re-edições: vol. 1, 1987, Introdução Crítica ao Direito; vol. 2, 1993, Introdução Crítica ao Direito do Trabalho; e vol. 3, 2003, Introdução Crítica ao Direito Agrário; 2008, vol. 4, Introdução Crítica ao Direito à Saúde; 2011, vol. 5, Introdução Crítica ao Direito das Mulheres; com uma segunda edição, em 2015; 2012, vol. 6, Introducción Crítica al Derecho a la Salud; 2015, vol. 7, Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina; 2017, Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação; 2019, Introdução Crítica ao Direito Urbanístico; enquanto se prepara agora para 2020, o vol. 10, Introdução Crítica ao Direito como Liberdade; e, retomando, a linha direitos humanos e cidadania, compreendendo um conjunto de atividades, eventos acadêmicos e intervenções, entre os quais se destaca a institucionalização na UnB, da disciplina de graduação Direitos Humanos e Cidadania.

             A motivação para institucionalizar a disciplina direitos humanos e cidadania começou a tomar forma quando do encerramento do Colóquio sobre Direitos Humanos na América Latina, um evento realizado em cooperação entre a UnB e a Fondation Danielle Mitterrand (FranceLibertes), realizado em Brasília em 1987.

            Para a convocatória do Colóquio, o comitê organizador e de redação instalado no NEP (José Geraldo de Sousa Junior, Margrit Dutra Schmidt, Alayde Avelar Freire Sant’Anna, Luiz Tarley de Aragão e Nielsen de Paula Pires), preparou um documento, com o título “Conceito,  Estado Atual e Caminhos para a Construção de uma Sociedade de Plena Realização dos Direitos Humanos na América Latina” (in Série O Direito Achado na Rua, vol 1, Introdução Crítica ao Direito, 1ª edição 1987, 4º edição 1993, CEAD/NEP/UnB, Brasília), no qual se procurava estabelecer uma dimensão de concretude histórica para a necessária articulação entre os seus fundamentos teóricos e a sua legítima positivação.

            Esta exigência dialética de validação simultaneamente política e filosófica foi claramente designada no documento, numa afirmação de princípio e na constatação de que “a história das declarações de direitos humanos não é a história de ideias filosóficas, de valores morais universais ou das instituições. É sim, a história das lutas sociais, do confronto de interesses contraditórios. É o ensaio de positivação da liberdade conscientizada e conquistada no processo de criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem”.

            Para essa constatação muito contribuiu o acumulado crítico da reflexão sobre o Direito que se dera em torno à formação do movimento denominado Nova Escola Jurídica Brasileira já mencionado, e que inscrevera, sob a orientação de Roberto Lyra Filho no coletivo Direito & Avesso. Ali, para as discussões em que tomavam parte muitos dos que depois se reencontrariam na fundação do NEP, Roberto Lyra Filho, à medida em que formulou a sua concepção de Direito, na abordagem de sua dialética social – “aquilo que ele é, enquanto vai sendo, nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta dentro do mundo histórico e social” – também indicou como critério de avaliação dos produtos jurídicos contrastantes, na competitividade de ordenamentos, os direitos humanos.

            Nesta perspectiva diz Roberto Lyra Filho (O que é Direito, Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense, São Paulo, 1ª edição, 1982): “Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é a atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração do homem pelo homem; o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas. À injustiça, que um sistema institua e procure garantir, opõe-se o desmentido da Justiça Social conscientizada; às normas, em que aquele sistema verta os interesses de classe e grupos dominadores, opõem-se outras normas e instituições jurídicas, oriundas de classes e grupos dominados, e também vigem, e se propagam, e tentam substituir os padrões dominantes de convivência, impostos pelo controle social ilegítimo; isto é, tentam generalizar-se, rompendo os diques da opressão estrutural. As duas elaborações entrecruzam-se, atritam-se, acomodam-se momentaneamente e afinal chegam a novos momentos de ruptura, integrando e movimentando a dialética do direito. Uma ordenação se nega para que outra a substitua no itinerário libertador. O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda”.

            No documento que o NEP preparou para o Colóquio esta percepção está presente e ela é enunciada, no mesmo diapasão: “A questão dos direitos humanos, assim, se coloca na base de uma correlação não apreendida pelas declarações periódicas que pretendem enunciá-los. E a percepção de que elas possam concretizar uma universalidade não abstrata de direitos positivos construídos no movimento dialético dessas contradições, representa, ainda, nos princípios a que se reduzem, particularizações de interesses historicamente hegemônicos que prevalecem na coexistência conflitual da série de normas possíveis, jurídicas ou não, indicativas do processo político de libertação de grupos, classes e povos e seus respectivos projetos históricos de organização social, no plano interno ou internacional”.

            As conclusões do Colóquio não discreparam desses pressupostos. Reunidas numa declaração de compromisso, elas traduziram o consenso dos participantes sobre a necessidade de mobilização de esforços para:

a) apelar para uma forma de co-responsabilidade mundial no cumprimento dos Direitos Humanos; b) fazer implicar esta co-responsabilidade no dever de cada cidadão do mundo, de mobilizar-se na denúncia constante de toda forma de desrespeito aos Direitos Humanos; c) assumir a denúncia não apenas às formas tradicionais de desrespeito aos Direitos Humanos, mas a todas aquelas maneiras indiretas sob forma de intervenção política, militar e econômica visíveis ou disfarçadas; d) apoiar a construção de mecanismos de proteção, entre os quais o desenvolvimento do princípio de proteção permanente dos Direitos Humanos; e) assumir o compromisso, que é político, científico e cultural, de buscar os paradigmas de democratização da democracia, para instaurar um sociedade nova: a comunidade libertária de concretização dos Direitos Humanos.

            Um outro compromisso foi celebrado ao final do Colóquio, na interação entre as motivações militantes dos dois principais responsáveis pelo encontro, o Reitor Cristovam Buarque a Sra. Danielle Mitterand: a de institucionalizar, na UnB, uma cadeira de Direitos Humanos.

             Alguns anos mais tarde, numa entrevista para as páginas amarelas da Revista Veja, a ex-primeira dama da França referiu-se a esse compromisso, salientando o relevo que tinha em suas lembranças da América Latina, exatamente, o compromisso assumido pela UnB de criação de uma cadeira de Direitos Humanos.

             O NEP tomou a si a tarefa de realizar esse compromisso e no mesmo ano, obteve no Decanato de Graduação da UnB a aprovação para institucionalizar, em módulo livre, no elenco oferecido pelo CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, a disciplina Direitos Humanos e Cidadania.

            A disciplina, de 60 horas e 04 créditos, ofertada para alunos de todos os cursos da UnB, passou a ser oferecida desde então, todos os anos, de 1987 até 2002, sob a minha responsabilidade e, desde este ano, 2003, em co-responsabilidade com a Professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, atual Coordenadora do NEP, que inovou na gestão da disciplina para agregar à sua regência uma monitoria altamente qualificada constituída pelos estudantes-pesquisadores vinculados à linha de pesquisa Educação para os Direitos Humanos e Cidadania, do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania – PPGDH, do CEAM, seus orientandos.

            O programa original incorporou os elementos paradigmáticos que derivam do debate político e epistemológico que serviu de fundamento à concepção da cadeira, com especial atenção ao reconhecimento da força criativa dos movimentos sociais e dos sujeitos coletivos nele constituídos para a criação de direitos: 1. análise das condições teóricas e das condições sociais do conhecimento e dos paradigmas filosófico-jurídicos dos direitos humanos; 2. percepção dos direitos humanos e da cidadania na construção das lutas sociais e na constituição de novos sujeitos de direito; 3. os movimentos sociais e a emergência de sujeitos coletivos de direito; 4. A cidadania como possibilidade de colocar no social estes novos sujeitos capazes de criar direitos como direitos humanos mutuamente reconhecidos e aptos a determinar a sua participação autônoma no espaço da decisão política; 5. critérios para a elaboração de um programa de direitos humanos na construção e reconstrução das democracias latino-americanas; 6. experiência de organização, práticas políticas e estratégias sociais de criação de direitos; 7. educação para os direitos humanos e cidadania.

            Nos anos seguintes à criação da cadeira, este programa básico foi praticado num engajamento crescente dos alunos participantes, sempre na direção de ampliar a consciência acadêmica e profissional para a responsabilidade comum de conhecimento e garantia dos direitos humanos. Com alguma variação em torno do eixo original programático, novos temas foram sendo inseridos no plano do curso. Em 1997, dez anos após a criação da cadeira, algumas dessas variações, tiveram relevo: direitos humanos: direitos de todos; a questão dos refugiados; o direito de morar; os direitos humanos e o sistema penitenciário brasileiro; os direitos dos trabalhadores.

            A partir do ano de 1999, o NEP estabeleceu uma parceria com o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria de Estado de Direitos Humanos e com a UNESCO, inserindo o curso no âmbito da nova política pública definida pelo governo brasileiro, no marco da Conferência de Viena, para o desenvolvimento dos Direitos Humanos.

            Neste ano de 1999, com base nesta parceria, a disciplina foi ministrada com o objetivo de abrir uma agenda para pensar as políticas públicas de direitos humanos, notadamente as contidas no Programa Nacional de Direitos Humanos. A UNESCO, por sua vez, naquele ano, incluiu a disciplina na agenda oficial de comemorações do “2000: Ano Internacional da Cultura para a Paz”.

            A plataforma que tornou possível a parceria para o desenvolvimento do curso, permitiu também, ao seu final, o lançamento de dois livros organizados dentro do princípio que orientou o trabalho conjunto, isto é, o de que a co-responsabilidade “em enfrentar os desafios de seu tempo passa pelo acompanhamento, reflexão, crítica e avaliação das políticas públicas”. Os livros lançados foram organizados sob esse fundamento, ou seja, fazer com que “a reflexão acerca da atual política de direitos humanos, (se faça) a fim de buscar solução para a problemática que aflige a cidadania brasileira”.

            Esta foi a primeira iniciativa que permitiu elaborar bibliografia própria para o curso. Os dois livros, que contaram com a participação dos membros do NEP e de alunos do curso, têm objetivos claros na formulação metodológica para a garantia de direitos e para a valorização de experiências de realização de direitos. No primeiro caso, o volume preparado por Maria Salete Kern Machado e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Ceilândia: Mapa da Cidadania. Em Rede na Defesa dos Direitos Humanos e na Formação do Novo Profissional do Direito. No segundo caso, volume coletivo organizado por mim e pelo Professor Alexandre Bernardino Costa, o livro Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília, título auto-explicativo.

            Em 2000, mantida a parceria e fortalecida a regência do curso com a monitoria que se incumbe agora da organização do presente volume, o foco temático da disciplina orientou-se para “a compreensão acerca das relações entre o fenômeno da intolerância e a violência, partindo do problema real da violência que aflige o Distrito Federal e seu Entorno, procurando articular o Programa Nacional de Direitos Humanos com o Plano Nacional de Segurança Pública”.

            Em 2001, o curso voltou-se para o seu foco originário, numa revisão que procurou inserir na reflexão acerca da atuação dos movimentos sociais, a sua perspectiva internacionalizada sob a referência ideologizada do fenômeno da globalização. Conforme a justificativa do programa, tratou-se de “discutir a problemática da realização dos direitos humanos a partir da reflexão sobre o estado atual da organização e mobilização da sociedade civil, tendo como referência sua articulação local, nacional e global. Neste sentido, buscamos proporcionar aos estudantes da UnB e membros de organizações civis e movimentos sociais, um debate sobre o papel da sociedade civil brasileira no processo de construção de uma democracia e cidadania globais, tendo em vista a afirmação da universalização e indivisibilidade dos direitos humanos, a partir de sua realização e proteção no país e no mundo. Além disso, esperamos estimular o contato dos estudantes com as organizações que trabalham pela realização dos direitos humanos, revalorizando o conhecimento das experiências que informam as políticas relativas a esta temática. Finalmente, pretendemos refletir sobre temas mais atuais que se colocam como desafios para a construção de uma cultura internacional de direitos humanos, e mapear os movimentos sociais e ações coletivas dos anos noventa no Brasil, indicando aquelas que também se articulam globalmente”.

            Os elementos aqui trazidos, com uma ou outra extensão de atualização, estacionam ali em 2004, quando da edição da obra. Para a continuidade das ações acadêmico-sociais, remeto aqui ao texto preparado pelas Professoras Nair Heloisa Bicalho de Sousa e Flávia Beleza – “Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos: 30 Anos” – elaborado para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, no prelo, editado a propósito do Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua (UnB, 2019).

            Voltando ao momento da edição do livro ora Lido para Você, em 2002 e 2003, o objetivo do curso, mantido o seu eixo programático, mais uma vez em estreita parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, atualmente vinculada à Presidência da República, foi o de selecionar temas, identificar os autores e participantes das  várias edições do curso que contribuíram para um maior refinamento de abordagens e, enfim, aferir o potencial pedagógico do próprio curso para construir uma bibliografia relevante para a área e para sugerir pautas pedagógicas de educação para os direitos humanos.

            O resultado é este Educando para os Direitos Humanos: Pautas Pedagógicas para a Cidadania na Universidade. Este livro adensa uma experiência diligentemente acumulada e uma parceria que tornou possível fortalecer o processo pedagógico que com ela se realiza, permitindo ao Curso Direitos Humanos e Cidadania dispor de uma bibliografia própria, que pode ser compartilhada com todos aqueles que se movem por essa causa comum, em direção a uma pedagogia para a emancipação.

            Para bem aquilatar esse sentido de adensamento, consulte-se o rico sumário da obra:

Apresentação – A Institucionalização do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos e da Disciplina Direitos Humanos e Cidadania na UnB, cujos termos estão contidos no texto que abre este Lido para Você, e que me incumbi de redigir.

Módulo I – Educação para os Direitos Humanos

Introdução ao Módulo

Cidadania Planetária: um projeto plural, solidário e participativo, Nair Heloísa Bicalho de Sousa

1.Dilemas e Desafios da Proteção Internacional dos Direitos Humanos, Antônio Augusto Cançado Trindade

2.Pobreza Política Direitos Humanos e Educação, Pedro Demo

3.(Re)Pensando a Inserção da Universidade na Sociedade Brasileira Atual, Miracy B. Sousa Gustin

4.Direitos Humanos: Subjetividade e Práticas Pedagógicas, Luis Alberto Warat

 

Módulo II – Estratégia de Defesa de Direitos

Introdução ao Módulo

A Relação Estratégica entre Violência e Violação de Direitos, José Eduardo Elias Romão

5.A Questão da Violência, Vicente de Paula Faleiros

6.Perspectivas: Proteção a testemunhas no Brasil e no Exterior, Jaime Benvenuto Lima Junior

7.Em Frente da Lei tem um Guarda, Virgínia Feix

 

Módulo III – Globalização, Processos de Participação e Ações Afirmativas

Introdução ao Módulo

Controle Social e ações Afirmativas: em Busca de Novos Paradigmas para a Ação Política Transformadora, Sara da Nova Quadros Cortês

8.Democracia, Cidadania e Direitos Humanos, Francisco Whitaker

9. Globalização: O ‘Assujeitamento’ Da Cidadania, Érika Kokay

10.Os Cidadãos e o Processo Orçamentário – Um Experimento Pedagógico de Participação, Elenaldo Teixeira

11.Ações Afirmativas: Farol de Expectativas, Ivair Santos

 

Módulo IV – Experiências de Realização de Direitos Humanos: o Direito à Igualdade e à Diferença

Introdução ao Módulo

O Direito de Ser Diferente: processos de Singularização com uma Aposta da Vida contra a Exclusão, Alayde Avelar Freire Sant’Anna

Identidade e Reconhecimento como Unidade de Lutas Políticas e Efetivação de Direitos Humanos,  Marilson dos Santos Santana

12. Rap, Juventude e Identidade, Fernanda Souza Martins

13.Os Frágeis Direitos Das Mulheres, Lia Zanotta Machado

14.Negros, Luis Alberto

15.O “Índio” como Sujeito Político: a Democracia Zapatista, Rodrigo de Souza Dantas

16.Direitos Humanos e Cidadania Homossexual no Brasil: Porque os Homossexuais são os Mais Odiados dentre Todas as Minorias?, Luis Mott

17.Experiência Gay na Universidade, Denílson Lopes

18. Idosos: Solidão, Barreiras e Direitos, Maria Laís Mousinho Guidi

19.Deficiência Sob a Ótica dos Direitos Humanos, Izabel de Loureiro Maior

 

Módulo V – Documentos

20.Declaração Universal dos Direitos Humanos

21.Atos Multilaterais em Vigor para o Brasil no Âmbito dos Direitos Humanos

 

            A matéria de que trata o livro, para além de seu valor intrínseco, fortaleceu uma vertente que está em franca expansão no NEP e presentemente conduzida para adensar a linha de pesquisa Educação em e para os Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH – Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania). O seu enunciado e os aportes teóricos que nela são designados podem ser conferidos em “Retrospectiva histórica e concepções da educação em e para os direitos humanos”, de Nair Heloisa Bicalho de Sousa, texto publicado em PULINO, Lúcia Helena Cavasin Zabotto. Educação em e para os direitos humanos. Brasília: Paralelo 15. Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos, volume II, 2016.

            Porém, digno de nota é que a edição abriu uma outra vertente, essa editorial, que já pode se considerar uma Série ou Coleção. Isso porque, depois da publicação do volume ora Lido para Você, e ao impulso dos debates e ações de educação para os direitos humanos, dois novos volumes já foram editados (assunto para novas colunas): Educando para os Direitos Humanos: Pautas Pedagógicas para a Cidadania na Universidade vol. II. Desafios e Perspectivas para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil. Oerganização Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Adriana Andrade Miranda e Fabiana Gorenstein. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, Coordenação de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, 2011. O livro, base para um curso a distância realizado simultaneamente, foi o resultado de promoção do Ministério da Justiça em parceria com o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

            O outro livro, editado em 2008, na mesma vertente, mas com classificação própria, foi Educando para a Paz e Direitos Humanos, organizadores: José Renato Vieira Martins, Nair Heloisa Bicalho de Sousa e Júlia Marton-Lefèvre (ex-Reitora da Universidade da Paz da ONU), resultado de uma parceria entre a Secretaria-Geral da Presidência da República, a Universidade para a Paz das Nações Unidas (UPAZ) e o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos da Universidade de Brasília, reunindo trabalhos apresentados no Seminário Internacional “Educação para a Paz e os Direitos Humanos”, realizado em Brasília, em dezembro de 2005 (livro que será também assunto para outras colunas).

            Mais uma vez dizemos, como já o fizemos, Nair Heloisa Bicalho de Sousa e eu -Direitos Humanos e Educação: Questões Históricas e Conceituais, in 70 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Educação Humanizadora. VIII Congresso Internacional de Educação. Alexsandro Miola, Geonice Zago Tonini Hauschildt, Jolair da Costa Silva (Organizadores). Santa Maria: Biblos Editora, 2019  (a respeito ver em – https://estadodedireito.com.br/70-anos-da-declaracao-universal-dos-direitos-humanos-e-a-educacao-humanizadora/ –   trata-se também de pensar os direitos humanos articuladamente com uma prática de educação, a partir de elementos fundamentais que compõem o processo educativo: uma prática voltada para a promoção e defesa dos direitos humanos; os educandos (indivíduos e povos) são sujeitos de direitos; um  processo de formação  voltado para as diferentes dimensões da educação; o  conteúdo programático inclui princípios, valores, mecanismos e instituições específicas; reconhece uma vinculação direta entre os direitos humanos, a democracia, a paz e o desenvolvimento. Com esta orientação que tem como eixo a formação de sujeitos de direitos, diferentes iniciativas em países latino-americanos foram implementadas, demonstrando que podem ser bem sucedidas, caso os atores do poder público e da sociedade civil, sejam capazes de conduzir projetos e ações efetivas e contínuas, uma vez que a configuração de uma cultura de direitos humanos requer um trabalho de compromisso com as diferentes gerações.

            Esta formulação inicial a respeito da educação em direitos humanos pautada na ideia dos sujeitos de direitos como agentes pluridimensionais se enriquece com novos elementos estruturantes vinculados à resistência à opressão, à violação de direitos, às relações sociais solidárias e à vivência efetiva dos direitos humanos: a educação em direitos humanos é aquela capaz de formar para resistir a todas as formas de opressão, de violação dos direitos; mas também é aquela que forma sujeitos de direitos capazes de solidariamente viabilizar as melhores condições para que todos e todas possam viver concretamente os direitos humanos permanentemente.

            Essa formação de sujeitos de direitos capazes de resistência diante das violações e opressões, além de garantir a defesa, promoção, reparação e conquista de novos direitos, tem chance de se efetivar de forma definitiva por meio da proposta dos direitos humanos como projeto de sociedade. Essa perspectiva pode ganhar força em nosso País se o processo democrático se consolidar, mantendo seu caráter popular e participativo, de modo a contribuir para a construção de uma cultura de direitos humanos que se oriente “por uma visão crítica e emancipatória dos Direitos Humanos, segundo uma pauta jurídica, ética, social e pedagógica”, conforme eu próprio, com Maria Vitória Benevides, deixamos assinalado em outro lugar (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; e BENAVIDES, Maria Vitória. O Eixo Educador do PNDH-3. Revista Direitos Humanos, Especial PNDH-3, n. 05. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, abril 2010).

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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