O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

 

A Vida não é Útil

 

 

       

A Vida não é Útil. Ailton Krenak/Pesquisa e organização Rita Carelli. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, 69 p.     

          Retomo o livro de Ailton KrenakIdeias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, que foi objeto de recensão na Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/ideias-para-adiar-o-fim-do-mundo/). Ali diz-se que “Escrito antes da pandemia do COVID-19 (mas não sem prever a reação antropocena da peste ambulante, o contágio do encontro entre humanos, p. 71), a antevisão de uma Terra canibalizada por uma humanidade que dela se apartou, já apontava para o mau humor que a desolação traria e para a resposta terrível que a natureza daria a tanta insensatez: ‘Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos’”.

          Nesse novo livro, com pesquisa e organização de Rita Carelli, um conjunto de intervenções e de comunicações do Autor são reunidos num texto coordenado, compondo um sumário interpelante à crise da pandemia do novo Coronavírus:

          NÃO SE COME DINHEIRO — Texto elaborado a partir de live de Ailton Krenak e Leandro Demori para The Intercept Brasil, 8 abr. 2020; fala de Ailton Krenak no evento Plante Rio, na Fundição Progresso, Rio de Janeiro, nov. 2017; e entrevista a Amanda Massuela e Bruno Weis, “O tradutor do pensamento mágico”, Cult, 4 nov. 2019.

          SONHOS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO — Texto elaborado a partir de live no Festival Na Janela, da Companhia das Letras, com Ailton Krenak e Sidarta Ribeiro, 24 maio 2020; e entrevista a Amanda Massuela e Bruno Weis, “O tradutor do pensamento mágico”, Cult, 4 nov. 2019.

          A MÁQUINA DE FAZER COISAS — Texto elaborado a partir de live Conversa Selvagem, com Ailton Krenak e Marcelo Gleiser, 17 abr. 2020; entrevista a Fernanda Santana, “‘Vida sustentável é vaidade pessoal’, diz Ailton Krenak”, Correio, 25 jan. 2020; live de Emicida com Ailton Krenak para o canal GNT na semana do meio ambiente, 6 jun. 2020; e live com os Jornalistas Livres, 9 jun. 2020.

          O AMANHÃ NÃO ESTÁ À VENDA — Texto elaborado a partir de três entrevistas com Ailton Krenak, realizadas em abril de 2020: Bertha Maakaroun, “O modo de funcionamento da humanidade entrou em crise”, Estado de Minas, 3 abr. 2020; William Helal Filho, “Voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a Terra é plana”, O Globo, 6 abr. 2020 ; Christiana Martins, “Não sou um pregador do apocalipse. Contra essa pandemia é preciso ter cuidado e depois coragem”, Expresso, Lisboa, 7 abr. 2020 . Publicado em e-book pela Companhia das Letras em abril de  2020.

          A VIDA NÃO É ÚTIL — Texto elaborado a partir de conversa “Como adiar o fim do mundo”, O Lugar, 18 mar. 2020; live com os Jornalistas Livres, 9 jun. 2020 ; e entrevista a Fernanda Santana, “‘Vida sustentável é vaidade pessoal’, diz Ailton Krenak”, Correio, 25 jan. 2020.

          Em comum, nos temas e nas interlocuções que eles provocaram, um chamado a pensar uma humanidade não só referida ao “Homo sapiens”, mas “a uma imensidão de seres que nós excluímos desde sempre”, correspondendo a vidas descartadas, largadas “à margem do caminho do progresso”, vidas que resistem numa “sub-humanidade”, da qual muitos fazem parte dela:

          “É incrível que esse vírus que está aí agora esteja atingindo só as pessoas. Foi uma manobra fantástica do organismo da Terra tirar a teta da nossa boca e dizer: ‘Respirem agora, quero ver’. Isso denuncia o artifício do tipo de vida que nós criamos, porque chega uma hora que você precisa de uma máscara, de um aparelho para respirar, mas, em algum lugar, o aparelho precisa de uma usina hidrelétrica, nuclear ou de um gerador de energia qualquer. E o gerador também pode apagar, independentemente do nosso decreto, da nossa disposição. Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. Não é preciso nenhum sistema bélico complexo para apagar essa tal de humanidade: se extingue com a mesma facilidade que os mosquitos de uma sala depois de aplicado um aerossol. Nós não estamos com nada: essa é a declaração da Terra”.

          Contra a acumulação que canibaliza a Terra e a consome na coisificação que a economia produz, a vida que atravessa tudo, num “atravessamento do organismo vivo do planeta numa dimensão imaterial”, nos ensina que “ninguém come dinheiro” e como vida “é transcendência, está para além do dicionário, não tem uma definição”, só ela e apenas ela, é cura.

          Mas para tal, é preciso “reconfigurar o mundo”, sobretudo após a pandemia, o que, da perspectiva dos povos indígenas, significa passar por transformações, “sonhar, imaginar” de modo coletivo o mundo para re-inserir a humanidade, abrindo frestas “de entendimento nesse entorno que é o mundo do conhecimento”, para poder pensar outros modos de habitar o planeta, de “suspender o céu”:

          “Alguns povos têm um entendimento de que nossos corpos estão relacionados com tudo o que é vida, que os ciclos da Terra são também os ciclos dos nossos corpos. Observamos a terra, o céu e sentimos que não estamos dissociados dos outros seres. O meu povo, assim como outros parentes, tem essa tradição de suspender o céu. Quando ele fica muito perto da terra, há um tipo de humanidade que, por suas experiências culturais, sente essa pressão. Suspender o céu é ampliar os horizontes de todos, não só dos humanos. Trata-se de uma memória, uma herança cultural do tempo em que nossos ancestrais estavam tão harmonizados com o ritmo da natureza que só precisavam trabalhar algumas horas do dia para proverem tudo que era preciso para viver”.

          O curioso é que temos em boa medida, não necessariamente no Brasil, mas onde uma coordenação mais racional sobre o enfrentamento da crise sanitária, uma acuidade que durante a pandemia, nos fizesse aceitar a convocatória para ficar em casa e fazer o distanciamento social. Demonstramos ser capazes de atender a esse chamado, enquanto relutamos ou somos surdos ao apelo para preservar o planeta:

          A experiência de estar dentro desse fluxo nos dá claramente o sentimento de que a pandemia não é a maior desgraça do planeta. Se ficarmos presos a uma concepção de mundo chapada, de mercadorias, de controle e dominação, é claro que vamos morrer de medo, mas experimente sair de dentro desse carro, experimente ter uma relação cósmica com o mundo. Muita gente deve achar que só os pajés, ou pessoas que já alcançaram alguma forma de transcendência, podem ter essa experiência, mas isso que chamam de ciência está aí constatando o tempo todo a relação da Terra com o sistema solar, entre galáxias. Convoquemos a experiência de estarmos harmoniosamente habitando o cosmos: é possível experimentar isso na nossa vida cotidiana sem se render a todo esse terrorismo da modernidade”.

          Enquanto isso, por causa do vírus, “vivemos hoje esta experiência de isolamento social, como está sendo definido o confinamento, em que todas as pessoas têm de se recolher. Se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados da ruptura ou da extinção do sentido da nossa vida, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda. Assistimos a uma tragédia de gente morrendo em diferentes lugares do planeta, a ponto de na Itália os corpos serem transportados para a incineração em caminhões”.

          Experimenta-se uma “dor (que) talvez ajude as pessoas a responder se somos de fato uma humanidade” e que devemos nos re-instalar na totalidade que nos constitui porque “não há um futuro à venda”:

          “Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Depois disso tudo, as pessoas não vão querer disputar de novo o seu oxigênio com dezenas de colegas num espaço pequeno de trabalho. As mudanças já estão em gestação”.

          Uma mudança que estanque a erosão da vida, provocada por uma modernidade que instrumentaliza a existência e a mede por uma escala de utilidade. Que nos restabeleça a sanidade do viver, segundo “aquela orientação de pisar suavemente na terra de forma que, pouco depois de nossa passagem, não seja mais possível rastrear nossas pegadas está se tornando impossível: nossas marcas estão ficando cada vez mais profundas. E cada movimento que um de nós faz, todos fazemos. Foi-se a ideia de que cada um deixa sua pegada individual no mundo; quando eu piso no chão, não é o meu rastro que fica, é o nosso. E é o rastro de uma humanidade desorientada, pisando fundo”.

          Os povos originários ainda estão presentes neste mundo não porque foram excluídos, mas porque escaparam, é interessante lembrar isso. Em várias regiões do planeta, resistiram com toda força e coragem para não serem completamente engolfados por esse mundo utilitário. Os povos nativos resistem a essa investida do branco porque sabem que ele está enganado, e, na maioria das vezes, são tratados como loucos. Escapar dessa captura, experimentar uma existência que não se rendeu ao sentido utilitário da vida, cria um lugar de silêncio interior. Nas regiões que sofreram uma forte interferência utilitária da vida, essa experiência de silêncio foi prejudicada.

          Com Ailton Krenak, e com suas ideias para sonhar e recriar o mundo, pode-se concluir, a vida não tem que ser útil, tem que fluir no ritmo e na cadência da vibração da Terra, num diapasão que nos projete para fora de uma escala intervalada ao máximo de uma oitava acima. 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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