O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 15 de julho de 2020

RELAÇÕES INDECENTES

Relações Indecentes [recurso eletrônico] / organização Camila Milek, Ana Júlia Ribeiro; coordenação Mírian Gonçalves, Wilson Ramos Filho, Maria Inês Nassif, Hugo Melo Filho; 1ª edição – São Paulo: Tirant Lo Blanch /Instituto Defesa da Classe Trabalhadora, 2020, 190 p. Links para acesso gratuito: https://editorial.tirant.com/br/libro/relacoes-indecentes-E000020005394https://bit.ly/DownloadRelacoesIndecentes.

Créditos: PixaBay
     Abrindo o livro, num belo e contundente Prefácio – A HEGEMONIA DA CRUELDADE: COMO UMA ELITE RAIVOSA ENFIOU UMA FACA NO CORAÇÃO DA DEMOCRACIA – Maria Inês Nassif, co-organizadora da obra, estabelece o ponto de relevo que motivou a edição:
     “A Lava Jato que prometia acabar com a corrupção do país se mostrou apenas um instrumento político das elites brasileiras, encerrada em si mesma: não existe Lava Jato para além da armação destinada a tirar o PT do poder, encarcerar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e permitir a ascensão da direita. O resto é fake news.
     Esse processo termina agora numa cisão entre facções de classe e uma situação extremamente perigosa em que o grupo vitorioso é um exército de lumpens comandado por um Napoleão de sanatório que tem apoio das Forças Armadas, dos corpos policiais nacional e estaduais e das milícias que corroem a dignidade da população pobre nas periferias da grandes cidades (normalmente sob a liderança de egressos das forças policiais e militares). E encerra uma verdade incontestável: o Moro que sai de vítima do governo é o mesmo Moro que pariu Bolsonaro. A vítima é o algoz. Ambos são a mesma coisa. Não existe Moro sem Bolsonaro. Não existe Bolsonaro sem Moro. A operação Lava Jato foi a mensageira da destruição de um país que um presidente cruel quer completar. O STF, hoje atacado pela horda bolsonarista, é parte: rasgou a Constituição em 2005, quando passou a ser cúmplice do desastre que se avizinhava com o forjamento de um senso comum segundo o qual os governos do PT eram intrinsicamente corruptos e que o lugar da esquerda era na cadeia – a original saída de condenar sem provas pelo instituto do “domínio do fato” ficará na história da mais alta corte brasileira, marcada em brasa na sua pele. O ministro Teori Zavaschi – o relator da Lava Jato que dava substância jurídica às investigações do caso artificialmente montado por um obscuro juiz de primeira instância do Paraná que ganhou notoriedade nacional – morreu em um acidente aéreo em 2017, e a partir dessa tragédia a máscara do Judiciário caiu completamente: o STF deixou de ser uma corte constitucional para tornar-se o carrasco que leva à forca qualquer um que se configure obstáculo à volta dos donos de poder de fato ao poder de direito. A cruel elite brasileira conquistou a maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) antes de embarcar com armas, bagagens e financiamentos de campanha na eleição da extrema-direita, em 2018.
     Não por outro motivo pareceu tão natural que Moro, juiz concursado, no governo Bolsonaro, fosse escolhido ministro de Bolsonaro nas primeiras horas após a declaração da vitória eleitoral do representante da extrema-direita.
     Os últimos artigos colhidos para esse livro foram escritos nos estertores do ano de 2019, quase um ano depois da ascensão de Bolsonaro ao poder. É uma continuação de Relações Obscenas, editado em setembro do ano passado com a ideia de documentar, para a história, a verdade escrita pela VazaJato. A divulgação das conversas entre os integrantes da Lava Jato feita pelo site The Intercept a partir de 9 de junho de 2019 – material colhido pelo hacker Walter Delgatti das conversas entre os procuradores, policiais e o próprio Moro em chats do Telegram – prova que juiz e procuradores “armaram” condenações, manipularam provas, induziram delações e, junto com a mídia tradicional brasileira, conservadora e oligárquica, construíram o clima que resultaria no impeachment da presidenta petista Dilma Rousseff no final de 2015. E, de quebra, entregaram o poder, de bandeja, a Bolsonaro, em 2018. A denúncia do golpe promovido pela aliança entre a cruel elite brasileira, a mídia oligárquica e o Judiciário (que concedeu ao juiz de primeira instância poderes extralegais e direito de condenar sem provas, impunemente e sob seus aplausos) e da prática de “lawfare” nas sentenças condenatórias que levariam Lula à prisão foram fartamente comprovadas pelos diálogos. Lula, de fato, foi sacrificado na luta sem tréguas da elite brasileira para tirar a esquerda do poder. O Brasil foi sacrificado. Depois do golpe de Estado de 2015, houve uma fraude eleitoral com o uso do substrato cultural cultivado pela Lava Jato para a elaboração de uma campanha sórdida de fake news pelas redes sociais contra o candidato do PT, Paulo Haddad. Mais uma vez, repetindo, e sempre à exaustão: Moro é Bolsonaro, Bolsonaro é Moro. E ambos não existiriam sem o STF.
     Após a edição de Relações Obscenas, parte da grande mídia que havia se ajuntado ao The Intecept para divulgar os diálogos recuou. Houve um hiato que tirou a visibilidade das denúncias. Os últimos acontecimentos que levaram o país uma crise institucional extrema – quando o livro for para a gráfica, ainda não saberemos se Bolsonaro efetivou o golpe contra a democracia – deixam o país cada vez mais próximo de uma ruptura institucional. A escalada se intensificou desde a divulgação, pelo STF, das imagens de uma reunião ministerial do dia 22 de abril de 2019, onde impropérios contra os outros poderes e articulações para saquear a economia são troco perto da declaração principal de Bolsonaro: iria, sim, armar a população, para “lutar pela liberdade”. Depois disso, a palavra “guerra civil” passou a fazer parte das ameaças do governo eleito pelo voto direto, inclusive nas notas de ministros oriundos das Forças Armadas, seus seguidores da reserva e os comandantes militares.
     O Exército bolsonarista, neste momento, rompeu com as demais frações da classe dominante que deram o golpe na esquerda em 2015 e colocaram Lula na cadeia em abril de 2018. O incrível exército de desclassificados de Bolsonaro deu um passa-moleque na elite que considerava a hipótese de manietar o presidente que apoiou para realizar o programa ultraliberal de seu ministro Paulo Guedes (o pretexto dos setores conservadores para apoiar, nas eleições, um cabo do Exército, extremista caricato e ignorante). Bolsonaro cumpre a promessa de Guedes, mas o governo é ele.
     É nesse momento de crise extrema que a chamada VazaJato, que divulgou os diálogos do braço jurídico de sucessivos golpes desferidos contra a democracia, volta a ganhar importância. Se Bolsonaro fosse tirar uma radiografia, teria mostrado em suas entranhas o tumor do golpe desferido contra Dilma, Lula e a imensa maioria os brasileiros que têm horror à ditadura. A Lava Jato foi o câncer; Bolsonaro, sua metástase.
     A indignação com a crueldade e com a injustiça é o legado que devemos deixar quando denunciamos, para que se registre na história, que o povo e a democracia brasileiros, na última década, são vítimas de uma elite vil, que prefere sacrificar a própria democracia a “conceder” a um projeto socialdemocrata de inclusão social onde pobres, pretos, mulheres, índios, quilombolas e LGBTs aspirem à igualdade”.
     Conquanto a Lava Jato,  comece a se revelar como  um dos episódios mais característicos da história recente do Brasil, com enorme retrocesso nas lutas sociais por cidadania e direitos no que serviu uma grande aliança das elites no poder, dos mídia, e de uma boa parte do sistema judicial,  a ponto de muitos o considerarem degradado, em face de gritantes ilegalidades, o simbólico da luta contra a corrupção que ela logrou instituir, começa a deixar à mostra os seus desvios e a necessidade do conhecimento processual e os meandros que permitam identificar os casos de irregularidade e o contexto jurídico e político de como tudo isso se processou.
     Assim que,  todo esse processo, o engendramento funcional para conduzi-lo e as motivações dos agentes que o armaram, aos poucos vai-se desnudando e expondo aqueles que se disfarçaram com a aparente institucionalidade, especialmente aquele homem que, logrando transmitir, com o que já tem como exagero, o passo de uma ação jurídica regular ocultando o caráter político da Lava Jato, desde o momento em que aceitou ir para o ministério do esquema beneficiado conforme a lógica e os objetivos do poder que se instalou com seus mais obscuros compromissos.
     Em conferência dada em Brasília, Boaventura de Sousa Santos [Da expansão judicial à decadência de um modelo de justiça, no âmbito da abertura das comemorações dos 30 anos de O Direito Achado na Rua, no lançamento do Programa de Doutorado em Direitos Humanos da Universidade de Brasília, no dia 26 de Outubro de 2019, e que será publicada no volume X da Série O Direito Achado na Rua. Introdução Crítica ao Direito como Liberdade (no prelo)], com muitos dados do departamento de justiça dos EUA, sustentou que o então juiz, depois Ministro da Justiça Sergio Moro é o candidato preparado para a presidência do Brasil no interesse dos norte-americanos para 2022, por isso poupado pela mídia mais influente.
     Em seu argumento mostra como no seu projeto de hegemonia o Capitalismo pela ação estratégica norte-americana, desenvolvida como um redimensionamento da lógica de guerra, inclui a “guerra” contra a corrupção, uma forma sutil e envolvente de múltiplos e intestinos engajamentos.
     Para Boaventura de Sousa Santos“a luta contra a corrupção é defendida pela USAID como a grande luta para garantir o desenvolvimento económico e permitir a transparência económica. É o fim explícito. Qual é o fim implícito? É liquidar toda a concorrência às empresas multinacionais norte-americanas”. Na sua argumentação ele mostra sutis variações táticas desse processo, geo-político, mas constata que “a luta contra a corrupção vai ser, portanto, uma medida muito interessante e muito eficaz de destruir a concorrência” e que no caso do Brasil, “os serviços do departamento de justiça consideraram que as três empresas alvo no Brasil eram a Embraer, a Odebrecht e a Petrobras. Estão nos documentos do departamento de justiça. E esses documentos, obviamente, são documentos que dizem que elas vão ser alvo de atividades de corrupção e essas atividades vão ter lugar através de todo o programa da luta contra a corrupção da USAID, e que vai ter, obviamente, toda a intervenção também nos países amigos, onde há, também, a luta contra a corrupção. E aí surge uma medida muito interessante: é que a USAID, o departamento de justiça, vai apoiar, ativamente, todos os países que tenham leis e iniciativas contra a corrupção, e, privilegiadamente, os campeões da reforma contra a corrupção. E é nessa altura que começa uma ligação entre o departamento de justiça e o sistema judiciário brasileiro”. E é aí que entra o desenho da Lava Jato, projetada desde fora para cumprir os objetivos táticos dessa guerra.
     “A partir de 2014 – diz ele – quando se lança o Lava Jato, começam as visitas regulares entre o departamento de justiça e Curitiba. Estão assinaladas. Tudo o que vos estou a dizer é do domínio público. É tudo público, está publicado. São regulamentos. O secretário assistente do departamento da justiça, Keneth Blanco, em 2017, num discurso público, tendo a seu lado Rodrigo Janot, diz o seguinte: “É difícil imaginar uma melhor cooperação do que a que existe entre os magistrados de Curitiba e o departamento de justiça dos Estados Unidos, sobretudo porque ela assentou…”, e cito “… em comunicação direta que eliminou os atrasos burocráticos.” Este discurso é uma ilegalidade, é um crime. Uma autoridade brasileira não pode entrar em contacto, informalmente, com uma autoridade de outro país, só o pode fazer perante um protocolo, cartas precatórias, pedidos à embaixada, tudo por escrito. É tudo por telefone. Isto para vos dizer que em 2014 a Lava Jato não pôde garantir a too big to fail, nem à Embraer, nem à Odebrecht, nem à Petrobras, como fez à Goldman Sachs e à Volkswagen. Porquê? Porque eram empresas que se queriam adquirir ou destruir, ou adquirir a baixo preço. A Petrobras para desmantelar e ser adquirida, a Embraer pela Boeing, a Odebrecht destruída. Quinhentos mil postos de trabalho. Os cálculos é que, em 2015, o PIB do Brasil desceu 2.5 devido à crise da Odebrecht. Os mais velhos talvez se lembrem que na ponta final do governo do Allende foram utilizadas estratégias deste tipo para destabilizar totalmente a política de Allende e que levaram ao golpe de setembro de 1973. Não estaremos aqui a assistir à mesma guerra económica para destabilizar a economia brasileira? É uma pergunta que voz faço e para a qual eu não tenho uma resposta”.
     Mas a resposta começa a se fazer eloquente. Em matérias desses dias, a partir de novas revelações do Intercept Brasil, a tese do Professor Boaventura de Sousa Santos vai se confirmando, ao menos ao demonstrar as relações não só impróprias mas ilegais, de ações entre funcionários brasileiros (Lava Jato) e estrangeiros (FBI):
     “………………………………………………………………………………………………………………..“Ren” McEachern chefiou a Unidade de Corrupção Internacional do FBI até dezembro de 2017 e supervisionou o grosso das investigações da Lava Jato em nome do Departamento de Justiça americano. Segundo os documentos vazados ao The Intercept Brasil e analisados em parceria com a Agência Pública, ele esteve na primeira delegação de investigadores americanos que esteve em Curitiba em outubro de 2015, sem autorização do Ministério da Justiça, conforme revelamos nesta reportagem.
     Ren nunca escondeu sua participação nos casos ligados à Lava Jato. “Você precisa compartilhar informações [com outros países]. Porque agora todos os negócios são globais. Uma empresa que paga propina no Brasil paga também em outros países”, disse à Folha em fevereiro de 2018. Pouco antes, Ren deixara o FBI para passar ao setor privado. Na empresa de consultoria Exiger, ele viaja o mundo para ensinar métodos de “compliance” a leis anticorrupção para empresas evitarem investigações como as que ele liderava no FBI.
     Em 2015, “Ren” foi o grande responsável pela ampliação do foco do FBI em corrupção internacional, com a abertura de três esquadrões dedicados a isso, em Nova York, Washington e Los Angeles. No seu perfil no site da Exiger, é descrito como aquele que “desenvolveu e implementou uma nova estratégia global proativa no FBI para investigar crimes financeiros complexos e temas de corrupção. Essa nova estratégia foi coordenada proximamente com o DOJ e a SEC [a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA]. Além disso, representou um aumento de quase 300% em novos recursos anticorrupção para o FBI”. O plano misturava investigações proativas por parte de polícias dedicadas a decifrar a corrupção internacional com tecnologia e análises de ponta sobre temas financeiros.
     “Por volta de 2014, 2015, o FBI estava buscando maneiras de ser mais proativo nas investigações sobre corrupção internacional”, disse ele em uma conferência em Nova York sobre “o mundo após a Lava Jato”, em novembro de 2019. “Então começamos a olhar para países que poderiam convidar agentes do FBI até o país para analisar investigações de corrupção que tivessem um nexo com os Estados Unidos, em jurisdições como FCPA e lavagem de dinheiro”.
     Foi assim que o FBI se engajou na Lava Jato.
     “……………………………………………………………………………………………………………..”
     Assim, vai tomando contundência a repreensão ao desvio já inquinado de criminoso desses agentes públicos. Em peça assinada pelos advogados Eugênio Aragão e Ângelo Ferraro, o PT por meio de representação a PGR entrou, nessa sexta-feira, 03 de julho, com uma reclamação disciplinar contra os procuradores da Lava Jato Dallagnol e Vladimir Aras, e também com notícia-crime.  Os advogados citam prevaricação, abuso de autoridade e condescendência criminosa:
     “Ao compartilhar informações de modo extraoficial com agentes americanos do FBI, a força-tarefa desrespeitou a soberania nacional e utiliza, de forma ilegal, dados sigilosos de empresas brasileiras”, dizem os advogados. “A cooperação entre Brasil e EUA é regulada por um acordo entre os dois países, o MLAT [Tratado Legal de Assistência Mútua], celebrado em 14 de outubro de 1997 e promulgado no Brasil por meio do Decreto 3.810/2001, tendo força de lei federal.” (https://www.cartacapital.com.br/justica/dallagnol-e-denunciado-na-pgr-por-articulacao-com-agentes-dos-eua/#.XwFQozV3ZY0.email). Acesso em 05.07.2020.
     Na epígrafe que abre este Lido para Você ofereci os links para acesso gratuito à edição. Aqui, para despertar o interesse, apresento o sumário do livro, seus instigantes entre-títulos, por si, uma contundente ementa do que grita o conteúdo: UMA ELITE CRUEL, primeira parte, com os capítulos: COMO MORO E A LAVA JATO BUSCARAM DESTRUIR LULA E A DEMOCRACIA BRASILEIRA , de Jessé de Souza; DA (NÃO) JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO À LAVA JATO, de Eugênia Augusta Gonzaga e Luis Nassif; A FORÇA-TAREFA E A TAREFA DA FORÇA, de Pedro Pulzatto Peruzzo e Vinicius Gomes Casalino; outro capítulo,  A SUBVERSÃO DO DIREITO, com os artigos DIÁLOGOS PROMÍSCUOS: A VAZAJATO, O DUPLIPENSAMENTO E O ATO DE TENTAR ENGANAR-SE A SI MESMO OU DE COMO 2 + 2 = 5!,   de Lenio Luiz Streck; A IMPRUDÊNCIA INCONSTITUCIONAL, de José Eduardo Martins Cardozo e Marco Aurélio de Carvalho; HERÓIS, MITOS E PROVAS ILÍCITAS: OS PARADOXOS DA OPERAÇÃO LAVA JATO, de Tânia Maria de Oliveira; ASSOCIAÇÕES DE CLASSE E A VAZA JATO, de Hugo Cavalcanti Melo Filho; “AS INSTITUIÇÕES ESTÃO FUNCIONANDO NORMALMENTE” E OUTRAS VERDADES DA JUSTIÇA, de Mariana Marujo Velloso. Terceiro capítulo O PODER DE DESTRUIR UM PAÍS, contendo: EFEITOS DA OPERAÇÃO LAVA JATO NA ECONOMIA BRASILEIRA, de Rosa Maria Marques; FUTURO POSTERGADO, de Marilia Carvalho Guimarães e ALIANÇAS INDECENTES, de Anjuli Tostes. Quarto capítulo: O PODER DE DESTRUIR AS PESSOAS, com os textos e seus alotes e autoras: PROCURADORES DA LAVA JATO IRONIZAM A MORTE DE MARISA LETÍCIA, de Elika Takimoto; ENTRE OS MAUS, QUANDO SE JUNTAM, HÁ UMA CONSPIRAÇÃO. NÃO SÃO AMIGOS, MAS CÚMPLICES, de José Geraldo de Sousa Junior; LAVA JATO: ENTRE COMPROMISSOS HERMENÊUTICO/IDEOLÓGICOS E A IGNORÂNCIA, de Everaldo Gaspar Lopes de Andrade; MENINOS MIMADOS, de Cristiana de Faria Cordeiro. Quinta parte: A ALIANÇA COM A MÍDIA. Aqui as contribuições: PUBLICIDADE OPRESSIVA E OPERAÇÃO LAVA JATO, de Simone Schreiber; VAZAJATO: A GRANDE MÍDIA BRIGA COM A NOTÍCIA. E PERDE, de Franklin Martins; A VAZAJATO E O REPOSICIONAMENTO DOS JORNALÕES NACIONAIS, de Bia Barbosa. Última parte O USO DA RELIGIÃO, contendo POLÍTICA E RELIGIÃO – DALLAGNOL EM CAMPANHA JUNTO À COMUNIDADE EVANGÉLICA, de Marcelise de Miranda Azevedo; e NEOLIBERALISMO E NEOPENTECOSTALISMO: O QUE HÁ PARA ALÉM DO PREFIXO, de Rute Noemi Souza
     Presente na obra, a convite de Wilson Ramos Filho, elaborei o texto Entre Os Maus, Quando Se Juntam, Há Uma Conspiração. Não São Amigos, Mas Cúmplices, a tanto me instigou o quadro de degradação funcional, sobre o qual, aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, tenho me manifestado.
     Começo o meu texto, fazendo referência a que entre os registros do site Intercept Brasil, divulgados em setembro, uma nota traz especial incômodo, pelo seu inusitado e sobretudo pelo que esconde: “Vaza Jato: Procuradores redigiram ocultamente pedido de impeachment de Gilmar Mendes”.
     Segundo o registro, que logo ganhou repercussão, uma procuradora integrante da força-tarefa do Ministério Público Federal em Curitiba, aliás, conforme o noticiário, “cotada para integrar equipe do novo Procurador Geral da República”, já sabatinado e nomeado, em articulação com o chefe da Força-Tarefa, “atuaram auxiliando advogado conservador que queria apresentar impeachment de Gilmar Mendes”, ministro do Supremo Tribunal Federal.
     A revelação ecoa com a virulência da indecência, agravando a enfermidade de relações que a cada novo registro revelam a inversão perversa do institucional que se deteriora no arranjo cúmplice de engajamentos clandestinos, nada republicanos, fortemente conspiratórios, afrontando subjetividades no plano individual e atentando corrosivamente contra a Democracia, o Estado de Direito, a Ética Funcional e os Direitos Humanos. São relações indecentes tais as catalogadas neste segundo volume, pasme-se, do que já se constitui uma série, pois são reincidentes, continuadas, agravadas pelo concurso de violações a direitos e garantias fundamentais.
     Nessa nova revelação, conforme divulgada, a procuradora foi convocada por advogado sabidamente engajado em ações que se ajustam aos interesses altamente politizados do emprego do sistema judicial (lawfare) “para redigir pedido de impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes”: “O Professor … vai arguir o impeachment de Gilmar. Ele pediu para eu minutar para ele”, disse a procuradora na conversa (divulgada) com o chefe da Força-Tarefa, que respondeu: “Sensacional… Manda ver”.
     Por isso o título deste artigo que remete ao texto visceral de  La Boétie, em A Servidão Voluntária, de onde, bem a propósito, extraí a passagem, já não referida a amizade saudável, lícita, mas a conspiração: “A amizade é um momento sagrado, é uma coisa santa; ela nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se deixa apanhar pela mútua estima; se mantém não tanto através de benefícios como através de uma vida boa; o que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento que tem de sua integridade; as garantias que tem são sua bondade natural, a fé e a constância. Não pode haver amizade onde está a crueldade, onde está a injustiça; e, entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma companhia; eles não se entreamam, mas se entretemem; não são amigos, mas cúmplices”.
     Desgraçadamente, todas essas revelações, em expor as entranhas de um sistema que foi construído com tantas expectativas e que levou para a Constituinte de 1988, ao impulso de reivindicações convergentes do social organizado, o esboço de um Ministério Público, menos “procurador da Coroa” e mais “procurador do povo” (VASCONCELOS, Carlos Eduardo. Ministério Público: De procurador da Coroa a procurador do povo ou a história de um feitiço que às vezes se vira contra o feiticeiro, In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). Série O Direito Achado na Rua, vol. 1: Introdução Crítica ao Direito. Brasília, Universidade de Brasília, 4a. Edição, 1993), só não esgarça definitivamente toda a Instituição, porque ela se mostra apta, com suas reservas utópicas constituídas pela dignidade funcional da maioria de seus membros, em condições de regenerar-se do abscesso que vai sendo drenado até poder ser finalmente extirpado e assim preservar o tecido sadio no qual esse cancro oportunisticamente se instalou.
     De fato, é um espasmo delirante nesse quadro de infecção institucional, tomar conhecimento em depoimento no plano do vitupério, também divulgado nesses dias, pelo Jornal Estado de São Paulo dando conta de que ex-procurador-geral da República deu uma declaração fortíssima afirmando que “o momento mais tenso da sua passagem pelo cargo foi quando chegou a ir armado para uma sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) com a intenção de matar a tiros o ministro Gilmar Mendes”. Parece que estamos na Macondo descrita por Garcia Marquez, tanto mais fantástica porque é real. Expressões elevadas da república avaliando soluções que se oferecem em arco que vai do impeachment ao assassinato.
     Presente no Seminário Ética, Justiça e Direito, o ex-Procurador-Geral da república Claudio Lemos Fonteles, advertiu por meio de recomendação dirigida a advogados, promotores de justiça, procuradores públicos, magistrados, para a exigência de abraçar seus misteres, tanto com aprumo técnico, quanto por imperativo de vocação, menos carreirismo, emulação e mais função social e, assim, partilharem “de experiência real em situações de flagrante injustiça social a que sopesassem a verdadeira dimensão da vocação sentida, e com elas se comprometessem” (FONTELES, Claudio Lemos. Posicionamento diante do Judiciário. In PINHEIRO, José Ernanne; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; DINIS, Melillo; SAMPAIO, Plínio de Arruda. Ética, JustiCa e Direito. Reflexões sobre a reforma do Judiciário. Petrópolis: Editora Vozes, 1a. Edição, 1996).
     Contra essa forma maliciosamente corporativa enquistada, de ação possessivamente apropriadora da institucionalidade, mais que nunca se faz interpelante a lição de Jacques Távora Alfonsin, pensando criticamente para algumas aberturas em concursos públicos para promotores de justiça e agentes públicos da alta administração: prevenir para que no exercício de suas atribuições não sejam “meros repetidores daquele tipo de afirmação de poder da autoridade pública que desconhece não ser um fim em si, sabe que a lei, igualmente, só merece respeito quando se traduz em respeito, também, à dignidade humana, aos direitos humanos fundamentais, cujas garantias não permaneçam apenas previstas em qualquer ordenamento, mas efetivadas no dia a dia da população” (ALFONSIN, Jacques Távora. O Direito Achado na Rua é indispensável às carreiras jurídicas, https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2015/07/o-direito-achado-na-rua-e-indispensavel-as-carreiras-juridicas-por-jacques-tavora-alfonsin/), acesso em 04.07.2020.
     Que as dores da cura desse mal, depois de sazonado o tumor, levem a reposicionar a integralidade da Instituição, tal como projetada em sua relatoria na Constituinte por Plínio de Arruda Sampaio, para ser o Ministério Público da Cidadania, em todo caso, funcional e axiologicamente, respondendo a um modelo, assim ele foi projetado na Constituição, correspondente a fundamentos e a práticas emergentes segundo valores éticos” (PINHEIRO, José Ernanne; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; DINIS, Melillo; SAMPAIO, Plínio de Arruda. Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do Judiciário. Petrópolis: Editora Vozes, 1a. Edição, 1996).
     Algo que não se compadece com os desvios a pouco e pouco desnudados pelos registros do Intercep Brasil, revelando, contra essa expectativa de um ethos funcional que seja a expressão legitimadora da própria Instituição, o seu aviltamento pela sanha de mercadores que expõem esses valores num balcão de negócios para pechinchar ingressos em saraus, em cultos, em púlpitos ou em cátedras agenciadas por especuladores de um mercado de palestras e de publicações de discutível qualificação.
     Ou ainda, como se dá conta em auto-declarações estarrecedoras, que por trás de apresentações formais do peticionário e de cotas do ofício, se oculta o ensaio de boudoir arrastando para o litúrgico da função a reputação de vizinhos e de familiares, quando não alimente o recalque insano do ato extremo e letal. Em nota pública do mesmo ministro alvo de tantas diatribes, vem a denúncia que confirma a perda de referências de agentes públicos dos quais é inadmissível essa conduta: “…Se a divergência com um ministro do Supremo o expôs a tais tentações tresloucadas, imagino como conduziu ações penais de pessoas que ministros do Supremo não eram. Afinal, certamente não tem medo de assassinar reputações quem confessa a intenção de assassinar um membro da Corte Constitucional do País…” (https://www.conjur.com.br/2019-set-27/recomendo-procure-ajuda-psiquiatrica-gilmar-janot), acesso em 27.09.2019.
     É nesse ponto que, sob manto da “desburocratização,  eficiência e do combate à corrupção” estatal,  que se arma a investida  que armou no País a estratégia de um golpe contra o Estado, a Constituição e à Democracia. Com ações de intuito reformista, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de seus enunciados, sob a ilusão de uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, o tremendo interesse de apropriação do sistema constitucional-jurídico, em atentado à democracia, num modo de tradução, sem nenhuma sutileza, do que se tem denominado Estado de Exceção, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas, gerando por sua vez um estado de coisas inconstitucional (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Estado democrático da direita. In BUENO, Roberto (org). Democracia: da crise à ruptura. São Paulo: Editora Max Limonad, 2017; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Resistência ao Golpe de 2016: Contra a reforma da Previdência. In RAMOS, Gustavo Teixeira et al. (coords.). O Golpe de 2016 e a Reforma da Previdência: narrativas de resistência. Bauru: Canal 6 (Projeto Editorial Praxis), 2017).
     Para a tarefa de uma institucionalização engradecida que balizasse o agir do órgão redefinido constitucionalmente, apontou com agudo discernimento José Paulo Sepúlveda Pertence, o primeiro Procurador-Geral pós-Constituinte, sempre muito consciente da responsabilidade de operar diligentemente na “obra sempre inacabada de realização da Democracia”.
     Que se trata de uma tarefa, mediada pela metodologia afluente da invenção democrática, pela afirmação de espaços participativos e de controle social da racionalidade burocrático-estatal e pela instrumentalidade dos direitos humanos, eis a exigência da conjuntura. Conforme lembramos Renata Carolina Corrêa Vieira e eu próprio em publicação recente, com a Constituição e a Democracia bloqueadas – https://odireitoachadonarua.blogspot.com/2019/09/que-se-vayan-todos.html?spref=fb&fbclid=IwAR3J6CY0_ibbfWipYiRitatWKHh_56F-FO7bRJ9GlfoiWaEggY7vZBviNiE – hoje no Brasil, o cansaço e a decepção parecem também conduzir a um despertar de um protagonismo prestes a eclodir. Aos poucos vai se revelando um cancro institucional que se enquistou na tessitura democrática da política e contaminou a própria história do País. Uma cumplicidade nefasta, ardilosa, traiçoeira ampliou-se nessa tessitura numa metástase dilaceradora. Setores institucionais e do sistema de justiça engolfaram-se na necropolítica que produz a exceção. Julgavam-se aliados num arranjo semelhante a um partido. Não são, agora se revela, correligionários, são cúmplices, sacrificam a ética funcional configurada como “filigrana jurídica” no descaminho da política e, em última análise, da Justiça.
     Já não são agentes da cidadania e da justiça, mostram os registros, são justiceiros. Não seguem o Direito, querem fazer justiça pelas próprias mãos. Não promovem a dignidade garantista do devido processo legal, lincham. E vão amealhando moedas com isso.
     Finalizo com uma nota de mais amenidade, até para atenuar o trágico de que se reveste qualquer abordagem sobre esse tema e as tramas, na verdade, conspirações, que põe a nu. “Baixei”, como se diz na nova meta-linguagem desses tempos digitais, o arquivo do e-book para mandar imprimi-lo, e poder recuperar o sensorial da leitura no seu suporte mais íntimo que é, para mim, o livro impresso.
     Quando a reprografia me avisou que o exemplar estava disponível, sai de meu recolhimento sanitário, a que obriga a quarentena do coronavírus, principalmente a um leitor septuagenário, e com a minha jovem assistente, paramentada, luvas, máscara e frasco de álcool em gel, lá fomos retirar o “livro”, eu no automóvel, protegido, ela jovem, grupo de menor risco, para retirar o livro. Eis que me retorna a assistente, entre espantada e com alguma malícia. “Ora veja, não é que o balconista me questionou se era mesmo esse livro que eu buscava: Relações Indecentes”?!
     Assim a saga de alguns livros. Na minha universidade (UnB), nos anos de chumbo, entre invasões, expurgos e interdições, uma obra preciosa escapou à censura ignorante. Ao final da razia, entre os livros confiscados de filosofia, ciências sociais e ciências humanas, o esbirro separou Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda e em tom prepotente de reprimenda, recomendou ao bibliotecário repor a obra na seção de botânica.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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