O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 1 de julho de 2020

LIDO PARA VOCÊ: CEILÂNDIA MAPA DA CIDADANIA

CEILÂNDIA: MAPA DA CIDADANIA. Em Rede na Defesa dos Direitos Humanos e na Formação do Novo Profissional do Direito. Maria Salete Kern Machado; Nair Heloisa Bicalho de Sousa. Brasília: Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, 1998, 107 p.
Créditos: PixaBay
       O livro Lido para Você na edição ora publicada da Coluna traduz o enlace de três referenciais que o tornam singular. Primeiro, por ser um projeto interinstitucional levado a campo pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, do Ministério da Justiça, que depois se autonomizaria com o status de Ministério e a Faculdade de Direito, da Universidade de Brasília. Segundo por assumir no tema dos direitos humanos enquanto diretriz do Programa Nacional de Direitos Humanos lançado em 1996, adotando nessa interinstitucionalidade, disse o Secretário de Estado de Direitos Humanos José Gregori, a atribuição de promover apoio “a programas de informação, educação e treinamento de direitos humanos”, de modo “a aumentar a capacidade de proteção e promoção dos direitos humanos na sociedade brasileira”. Terceiro, a partir da parceria estabelecida, realizar seu objetivo, enquanto política pública, de “estreitar o diálogo entre os movimentos sociais e a instituição universitária, por meio do estabelecimento de pólos de assessoria jurídica e de defesa da cidadania e dos direitos humanos em comunidades”, no caso, do Distrito Federal.
       Reponho esses pontos até para recuperar um tempo e as circunstâncias de integração entre Estado e Sociedade, por meio de políticas públicas de educação, justiça, cidadania e direitos humanos, tanto mais que em contraponto a uma conjuntura em que esse modelo de integração se esgarça e a educação para a cidadania e para os direitos humanos sofrem funcional retração em ações governamentais de traço autoritário, que não apenas se põem em antagonismo, como de fato, hostilizam ao limite da criminalização, iniciativas que buscam essa integração, políticas de promoção e defesa dos direitos humanos, de educação do campo, de apoio a comunidades e povos indígenas e tradicionais, de reconhecimento – identidade, titularidade, reivindicações, de ações afirmativas, étnicas, de gênero, raciais. Enquanto escrevo, um Ministro da Educação que se notabilizou por desqualificar e reduzir o valor constitucional da educação como bem social, é destituído da Pasta e oferece de modo melancólico e inócuo (porque incapaz de alcançar o núcleo constitucional e jurídico da matéria), o gesto baldo de qualquer empatia ao revogar uma portaria ministerial que simplesmente estimulava iniciativas universitárias de inclusão na pós-graduação de segmentos raciais e étnicos, incluíveis no sistema por políticas de cotas. Não é só incompetência, como se vê na educação e na saúde, é gente má, índole ruim.
       Bem que, em boa hora agiu o Ministério Público Federal no Rio Grande do Norte, em recomendação conjunta (nº 3/2020) promovida pela Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão (Titular do 4º Ofício) Caroline Maciel da Costa Lima da Mata  e pelo Procurador Luis de Camões Lima Boaventura, em peça circunstanciada alcançando várias dimensões dessa aguda questão, mas preambularmente, indicando aos Reitores que desconsiderem a Portaria nº 545, de 16 de junho de 2020, e “sigam aplicando e aperfeiçoando as ações afirmativas e políticas de cotas nos processos seletivos para ingresso no corpo discente dos cursos de pós-graduação”. 
       Assim é que o projeto de que trata o livro, consumado nessa pareceria em 1998, refere-se ao trabalho desenvolvido em duas vertentes, uma que se realizou na Comunidade da Vila Telebrasília, no Plano Piloto de Brasília e que está relatada em outro livro que será Lido para Você em outro momento (Direito à Memória e à Moradia. Realização de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade do Acampamento da Telebrasília); a outra, aqui apresentada, desenvolvida na Cidade de Ceilândia, no Distrito Federal, tendo como eixo “a identificação dos movimentos sociais mais representativos e um estudo sobre a potencialidade para a formação de uma rede de defesa dos direitos humanos”.
       Um registro de precedência e de relevância. O projeto, nas duas vertentes, desenvolvido no ano de 1998, começou a ser concebido um pouco antes, ao tempo em que se retomava no âmbito do Conselho Federal da Ordem dos Advogados, com a criação em 1991, da Comissão de Ensino Jurídico e no MEC a Comissão de Especialistas de Ensino do Direito, que se incumbiram da revisão das diretrizes curriculares da área, afinal aprovadas pela Portaria MEC 1886 de 30/12/1994. Sobre esse percurso consultar aqui na Coluna (https://estadodedireito.com.br/a-pratica-juridica-na-unb-reconhecer-para-emancipar/https://estadodedireito.com.br/a-descoberta-de-novos-saberes-para-a-democratizacao-do-direito-e-da-sociedade/https://estadodedireito.com.br/a-descoberta-de-novos-saberes-para-a-democratizacao-do-direito-e-da-sociedade/) . Chamo a atenção, na Portaria 1886/94, de cuja redação participei, a designação núcleo de prática jurídica, para organizar as atribuições de estágio e de práticas jurídica (art. 10), em substituição à antiga designação escritório modelo, adotada até então: “O núcleo de prática jurídica, coordenado por professores do curso, disporá instalações adequadas para treinamento das atividades de advocacia, magistratura, Ministério Público, demais profissões jurídicas e para atendimento ao público”.
       Pois bem, posso afirmar ter sido canal para fazer transitar um experimento tornando-o um conceito, reproduzindo na Portaria a representação do empírico praticado na UnB, no projeto que também coordenei, juntamente com o Professor Alexandre Bernardino Costa que denominamos: Núcleo de Prática Jurídico e Escritório de Direitos Humanos e Cidadania.
       O tema de que trata o livro surge dissemos eu e o professor Alexandre Bernardino Costa na sua Introdução por termos constatado logo no início das atividades do projeto  Núcleo de Prática Jurídica e Escritório de Direitos Humanos e Cidadania, em Ceilândia, “a deficiência de dados específicos e atualizados, não apenas sobre a cidade, mas que dessem conta da natureza e do tipo de demanda por direitos submetidos à atuação das entidades”.
       Os estudos disponíveis (Gerência de Planejamento da Administração Regional de Ceilândia), abordava aspectos de segurança pública e justiça, ocorrências nesse campo sem discriminação e listagem de entidades e serviços sem indicação sobre a sua natureza: “essa realidade impôs ao projeto a necessidade de realizar uma cartografia para a identificação das entidades existentes em Ceilândia, mas sobretudo com o intuito de proporcionar ou tornar possível, a partir desse conhecimento, um intercâmbio de ações, visando à construção de uma rede de defesa de direitos, como condição para atender as demandas imediatas da comunidade e como pressuposto qualificado da prática dos estagiários de Direito ao impulso das novas diretrizes curriculares da área”.
       Com esse objetivo, que dá título ao livro, cuidou-se de criar condições para a comunidade aos seus direitos. Tratava-se de configurar no espaço urbano de Ceilândia o potencial para nele desenvolver-se verdadeiro pólo de cidadania, requerendo tal objetivo, procedimentos de aproximação com as instituições formais e informais da cidade, vocacionadas para a defesa de direitos.
       Assim que requisitamos a contribuição de duas colegas especialistas, importantes estudiosas das instituições, dos movimentos populares e da história social do Distrito Federal, as professoras doutoras em Sociologia Maria Salete Kern Machado e Nair Heloisa Bicalho de Sousa.
       Cuidaram elas de construir, e é o que relatam no livro, uma metodologia para o conhecimento da realidade e do potencial de conscientização da comunidade para atuar organicamente enquanto rede de um sistema de garantias de direitos. No termo de referência do estudo, como indicação das autoras, adotou-se o conceito de rede, tal como formulado por Ilse Scherer-Warren (Redes de movimentos sociais. São Paulo: Edições Loyola, 1993), “referindo-se às articulações que visam as trocas de experiências, as realizações de atividades conjuntas, o encaminhamento de projetos políticos de cidadania e a expansão do voluntariado, (e) realizam-se através de redes intra-organizacionais (organizações da mesma categoria) e inter-organizacionais (organizações da sociedade civil num sentido mais amplo” (conforme também, SCHERE-Warren, Ilse. Organizações voluntárias de Florianópolis. Florianópolis: Editora Insular, 1996). Sempre considerando, segundo essa autora, “os modos pelos quais a sociedade civil se organiza, quais e como se caracterizam os tipos de condutas sociais que levam a essa organização e qual o significado, o alcance e as características da ação de organização da sociedade civil articulada em redes amplas de pressão, resistência ou defesa de direitos” (SCHERER-WARREN, Ilse. Op. Cit.).
       O livro representa o resultado do trabalho das duas pesquisadoras. Certo que esse trabalho guardou algum caráter exploratório, mas em si, como proposta e produto, trouxe uma riqueza de elementos estruturantes para a montagem de um modelo de excelência para intervenção realizadora dos direitos humanos e da cidadania.
       As autoras, no texto, partem do chão da história para conferir a espacialidade demarcável da pesquisa: “A história de Ceilândia retrata um processo segregador na constituição do espaço urbano de Brasília, onde predominou a expulsão para as cidades-satélites de inúmeros trabalhadores que vieram para construir a capital. Esta história pode ser compreendida por meio de três períodos significativos: a fase de remoção dos favelados, a implantação da rede urbana e a atualidade”.
       As Autoras demarcam essa reconstrução, caracterizando o período da remoção: autoritarismo, sofrimento e exclusão; período da implantação: conflitos urbanos e organização coletiva; Ceilândia hoje (1998): as organizações civis, política e cultura; num caldeamento que vai habilitar poder situar a realidade dos direitos humanos: configuração de uma rede em Ceilândia.
       Elas expõem a metodologia do trabalho da pesquisa, valendo-se dos enunciados já aplicados por  Ilse Scherer-Warren e a classificação que logrou estabelecer (não-governamental, grupos de ajuda-mútua e associativismo de bairro) para chegar às categorias que elas próprias adotaram para classificar os achados organizativos em Ceilândia, todos por ela definidos: Organizações Não-Governamentais (ONGs), Organizações Estatais (OEs), Associativismo de Bairro (AB),  Grupo de Informação (GI) e assim, formular a modelagem de tipos de organizações pesquisadas, até chegar a um Cadastro das Organizações Sociais de Ceilândia.
       Uma particularidade da pesquisa. A Professora Nair Bicalho incumbiu-se, naquele ano de 1998, período da pesquisa, da regência da disciplina Direitos Humanos e Cidadania, do NEP – Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (CEAM/UnB), que ela atualmente coordena, e que naquele ano foi ministrada  em Ceilândia, no Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito, da UnB. A disciplina desenvolveu-se ao longo do semestre, nas tardes de sábado, e os alunos, provenientes de todos os cursos da universidade (a disciplina integra o módulo-livre optativo para qualquer aluno), engajando os alunos  no exercício de coleta de dados da pesquisa, como trabalho final planejado no protocolo da investigação.
       O roteiro foi estruturado para obter dados, posteriormente refinados, que serviram ao cadastro das organizações: nome da organização, endereço, data de fundação, natureza da organização (ONG, Grupo de Informação, Organização Estatal, Associativismo de Bairro), objetivos/finalidades, direção atual, principais demandas recebidas, assessoria jurídica própria, forma de encaminhamento das demandas jurídicas, serviços prestados, número de pessoas atendidas em 1998, forma de atendimento (individual/coletivo), parcerias.
       Conquanto num balanço de revisão, as autoras tenham constatado a intermitência de funcionamento determinada por diferentes razões conjunturais (injunções e re-arranjos de alianças político-partidárias, alcance dos objetivos, fusões inter-organizacionais, esgotamento da capacidade gestora e tantas outras), o modelo se conservou íntegro para atualização das informações e para replicação em outros espaços sociais.
       E também se prestou para definir outros projetos que buscavam com outras metodologias e concepções, também exercer função mobilizadora para promoção de direitos humanos, cidadania e acesso à justiça.
       Assim, por exemplo, o premiado projeto Justiça Comunitária, com continuidade institucional, encontrou no referencial deste livro, a fidedignidade cartográfica para o seu elemento constitutivo conhecimento de locus e mapeamento social (cf. Justiça Comunitária. Uma experiência. Redação e organização Juíza Gláucia Falsarella Foley. Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria de Reforma do Judiciário, 2006FOLEY, Gláucia Falsarella. Justiça Comunitária. Por uma justiça da emancipação. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010).
       Conforme dissemos eu e o Professor Alexandre Bernardino Costa, na Introdução do livro, resguardando os pressupostos teórico-políticos de O Direito Achado na Rua que balizaram o projeto, o trabalho nele apresentado, acrescentou ao dinamismo atuante, a partir dos elementos da pesquisa, a possibilidade de construir modelos num sistema permanente de ampliação do acesso à justiça. Nesse sistema, cabe, certamente redefinir habilidades e perfis profissionais para afeiçoá-los às exigências de razão e de sensibilidade que lhes são próprios. Mas cabe, ainda, inserir-lhe nota de maior interesse social. E a questão, neste sentido, nós afirmamos, “é a de abrir-se a temas e problemas críticos de atualidade e, ao mesmo tempo, dar-se conta das possibilidades de aperfeiçoamento de novos institutos jurídicos para indicar novas alternativas para sua utilização”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário