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quarta-feira, 3 de junho de 2020

Pela liberdade. A história do habeas corpus coletivo para mães & crianças

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito



       
Pela Liberdade. A história do habeas corpus coletivo para mães & crianças. Vários Autores. São Paulo: Instituto Alana, 2019, 213 p.
     O cárcere não é lugar adequado para o exercício da maternidade e para a vivência plena e integral da infância”. Essa é uma das reflexões propostas no livro “Pela Liberdade – a história do habeas corpus coletivo para mães e crianças”, que aborda as violações pelas quais passam mães, gestantes, adolescentes privadas de liberdade e seus filhos e filhas no Brasil. A publicação destaca a trajetória de diversas organizações brasileiras que pediram ao Supremo Tribunal Federal o deferimento do habeas corpus coletivo 143.641, visando assegurar o direito de prisão domiciliar em favor de todas as mulheres gestantes, puérperas ou mães com crianças com até 12 anos de idade, submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional, bem como adolescentes gestantes e mães em internação provisória, acusadas de cometerem atos infracionais.
     o Supremo Tribunal Federal o deferimento do habeas corpus coletivo 143.641, visando assegurar o direito de prisão domiciliar em favor de todas as mulheres gestantes, puérperas ou mães com crianças com até 12 anos de idade, submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional, bem como adolescentes gestantes e mães em internação provisória, acusadas de cometerem atos infracionais.
     Realizado pelo Programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, e pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADhu), o livro lançado em Brasília,  está disponível para ser baixado gratuitamente. Recheada com dados e pesquisas, a publicação traz artigos produzidos por especialistas de diversas organizações que participaram e contribuíram para o julgamento do STF. O livro expõe as situações precárias às quais mulheres e seus filhos e filhas são submetidos dentro do sistema prisional brasileiro; traz relatos de uma mulher contemplada pela decisão, textos temáticos de cada instituição que atuou no caso; e o acórdão do Habeas Corpus Coletivo, com votos dos ministros do STF, deferido em fevereiro do ano passado.
     Não é possível assegurar os direitos das crianças sem permitir que essas mães possam cuidar adequadamente de seus filhos e filhas. ‘Pela Liberdade’ mostra a urgência de romper esse ciclo de violência na vida de todas as crianças com mães em prisões, já que mantê-las dentro do sistema carcerário ou separá-las prejudica severamente o desenvolvimento infantil, e viola a regra da prioridade absoluta do melhor interesse das crianças brasileiras, prevista na Constituição. “O livro reúne as informações fundamentais que justificam essa decisão histórica e nos faz refletir que, apesar dos avanços conquistados, ainda há muito a ser feito por essas mães e suas crianças, para que seus direitos sejam assegurados”, diz Pedro Hartung, coordenador do programa Prioridade Absoluta e um dos autores do livro.
     Eloisa Machado, advogada do CADHu e professora da FGV, reforça que “este livro concretiza uma das experiências mais relevantes em direitos humanos nos últimos anos. Contar a história desse habeas corpus coletivo nos permite entender o direito como prática emancipatória e a força que a sociedade civil tem para promoção e realização dos direitos humanos”. (https://prioridadeabsoluta.org.br/acessojustica/pela-liberdade-a-historia-do-habeas-corpus-coletivo-para-maes-e-criancas/). A ilustração é do Portal Prioridade Absoluta.
Créditos: PixaBay
     Há habeas corpus célebres. Durante a Ditadura do Estado Novo no Brasil (1937-1946), o advogado católico Sobral Pinto impetrou perante o Tribunal de Segurança habeas corpus em favor dos comunistas Luiz Carlos Prestes e Harry Berger, submetidos a torturas degradantes enquanto detidos pela polícia política (ver do jornalista David Nasser, FALTA ALGUÉM EM NUREMBERG. Torturas da Polícia de Filinto Strubling Müller; ver também Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere). O inusitado dessa peça é que à falta de uma lei de apoio para a impetração, Sobral se valeu da lei de proteção aos animais, pedindo aplicação analógica de um instrumento jurídico editado para prevenir maus tratos aos animais não humanos, em favor de animais humanos. O Tribunal, por óbvio, não acatou o pedido, mas a comoção suscitada pelo inusitado, acabou levando à libertação dos pacientes. Prestes, a tempo de se integrar ao queremismo com Getúlio e Berger, todavia, já inutilizado, em desrazão, a tanto o levou as torturas (ver ainda o livro Olga, de Fernando Morais).
     A solução ficou, e o habeas corpus como instrumento de defesa da liberdade só se alargou em alcance, para além da mera garantia do ir e vir, no que se denomina teoria brasileira do habeas corpus. Nos anos 1980 em Brasília, aliás, com o mesmo fundamento, a lei de proteção aos animais, foi concedida ordem de salvaguarda, requerida pela Comissão Justiça e Paz de Brasília e Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF, a favor de famílias sem-teto submetidas a despejo forçado em ocupação no Plano Piloto da cidade, depois assentadas em perímetro urbano de uma cidade-satélite de onde postura administrativa local pretendia interditar a sua ocupação (cf. Habeas Corpus da 110 Norte, em Série O Direito Achado na Rua, vol. 1: Introdução Crítica ao Direito. Brasília: CEAD/NEP, 1987). Graças a essa ordem de liberdade a comunidade concretizou o seu direito de morar instalando-se desde então na atualmente bem organizada Vila Nova Esperança.
     Não é difícil encontrar alianças políticas e teóricas quando se trate de temas sociais, mesmo os que envolvem mobilizações de assistência, de compensação ou de gestões emancipatórias. Nesse campo, no limite, sempre há um elemento de consideração, ainda que incidental, de exclusão sob a forma de inclusão. Não é o mesmo quando o destinatário dessas mobilizações é o excluído da exclusão, principalmente os encarcerados, estigmatizados, os bodes expiatórios das assimetrias normalizadoras, os descartáveis, os que são marcados para a função sacrificial, numa sociedade que prefere estigmatizar os que lhe são marginais do que debater as razões da marginalização.
     Mas essa questão aparece em magistério de caráter pastoral, sobretudo quando a disposição misericordiosa, franciscana, rara entre os Papas no cristianismo católico, mas forte no papado de Francisco, cuja agenda pontifícia se abre aos temas da fraternidade, enquanto caridade elevada à dimensão sublime da política (Evangelii Gaudium, nº 205).           
     Agora no último 06 de abril, o Papa Francisco presidiu a Missa na Capela da Casa Santa Marta, no Vaticano e ao introduzir a celebração, rezou pelo problema da superlotação nos cárceres: “Penso num grave problema que existe em várias partes do mundo. Gostaria que hoje rezássemos pelo problema da superlotação nos cárceres. Onde há uma superlotação – muita gente ali – há o perigo, nesta pandemia, de que se acabe numa grave calamidade. Rezemos pelos responsáveis, por aqueles que devem tomar as decisões nisso, a fim de que encontrem um caminho justo e criativo para resolver o problema”.
     Sem dúvida é forte o sentido pastoral que anima o Papa Francisco em suas exortações. Em relação aos encarcerados, uma frase tem sido recorrente, sempre que passa diante de uma prisão e ele a repetiu em cerimônia de lava-pés, em missa da Ceia em recente Semana Santa (2017), elegendo presidiários para esse gesto de elevado carisma: “Por que eles e não eu?”.
     A sua atenção, entretanto, tem sido mais funcional no diálogo com o mundo e nas interlocuções com o campo do Direito e da Criminologia. Em entrevista para o Portal do IHU (Instituto Humanitas, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos), tendo como ponto de partida as inspirações do discurso do Papa Francisco no XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, realizado em Roma em 2019, o que permite refletir sobre o direito penal à luz da realidade, inclusive a brasileira, a síntese da minha análise na longa entrevista que concedi com esse objetivo, pode ser assim enunciada:  “Seu discurso abre um debate ao qual não nos podemos furtar: vale a pena abrir mão dos direitos e das garantias fundamentais em nome do combate à criminalidade moderna e à criminalidade organizada?”. Ao que  respondi: “é preciso recuperar a real dimensão da tutela penal, o que implica, necessariamente, a restauração dos valores constitucionais capazes de assegurar a eficácia dos bens e direitos fundamentais e o núcleo irredutível de dignidade sem o que nem se realiza a Democracia, a Paz e a Justiça” (http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/594778-havera-justica-na-sede-de-vinganca-direitos-e-garantias-fundamentais-nao-podem-ser-suprimidos-em-nome-do-combate-a-criminalidade-entrevista-especial-com-jose-geraldo-de-sousa-junior).
     Desligada dessa referência teológica, assiste-se no plano estritamente jurídico uma adesão aos princípios de um constitucionalismo fraternal, no qual se inscreve politicamente, o princípio esquecido do tríduo que marca a era dos direitos modernos. No próprio Supremo Tribunal Federal, em apelo à inclusão dos desassistidos, têm sido recorrentes as decisões que se apoiam nesse fundamento, vale dizer, que externalizam a necessidade de se colocar no lugar do outro.
     Não é extravagante aferir a adoção desse fundamento, por exemplo, na decisão proferida na ADPF 347 – STF, relator Ministro Marco Aurélio, 2015. O Plenário, como é conhecido, concluiu o julgamento de medida cautelar em arguição de descumprimento de preceito fundamental em que discutida a configuração do chamado “estado de coisas inconstitucional” relativamente ao sistema penitenciário brasileiro. Na mesma ação também debateu a adoção de providências estruturais com objetivo de sanar as lesões a preceitos fundamentais sofridas pelos presos em decorrência de ações e omissões dos Poderes da União, dos Estados-Membros e do Distrito Federal. No caso, alegou-se estar configurado o denominado, pela Corte Constitucional da Colômbia, “estado de coisas inconstitucional”, diante da seguinte situação: violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades.
     Em que pese a fixação desse entendimento no STF, o Judiciário ainda reluta em reconhecer esse estado de coisas inconstitucional. O Superior Tribunal de Justiça indeferiu na sexta-feira (3/4) um Habeas Corpus da Defensoria Pública da União impetrado em favor de todas as pessoas presas ou que venham a ser presas e que estejam nos grupos de risco do novo coronavírus (Covid-19). Em sua decisão o relator ao analisar o novo Habeas Corpus, afirmou não ter verificado constrangimento ilegal na decisão do TRF-3. “A questão em exame necessita de averiguação mais profunda pelo tribunal regional, que deverá apreciar a argumentação da impetração e as provas juntadas ao Habeas Corpus no momento adequado”, sentenciou. Isso, apesar de a DPU ter sustentado que o Brasil tem mais de 800 mil presos, provisórios ou não, e que não pretendia discutir a legalidade de cada uma das prisões no momento em que foram decretadas. Mas alertou que a pandemia “tem o potencial de atingir praticamente todos os presos do país, amontoados em cadeias superlotadas, sem ventilação adequada e sem as mínimas condições de higiene”. Ou seja, apesar de presentes aquelas condições que o STF indica como caracterizadoras do estado de coisas inconstitucional.
     Por isso ganha relevo a concessão do habeas corpus coletivo cuja história é registrada e comentada no livro aqui Lido para Você. O livro recolhe o inteiro teor do acórdão, uma peça preciosa que nos faz evocar o vaticínio de uma das forças criativas da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Victor Nunes Leal. Com efeito, professava o notável magistrado, que posteriormente seria compulsoriamente afastado do Tribunal por ato de força do regime de 1964, a necessidade de uma jurisprudência sensível, capaz de sentir as agruras dos jurisdicionados.
     Jurista, professor e escritor, o autor de Coronelismo, Enxada e VotoVictor Nunes Leal pertence àquela estirpe que sabe exercitar a compreensão plena do ato de interpretar a realidade e proferir juízos acerca de nosso agir no mundo, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, a Justiça não deve encontrar o empecilho da leiVictor Nunes Leal, com efeito na UnB e no Supremo Tribunal Federal, lembrei eu em homenagem ao grande magistrado e notável interprete da brasilidade levou, em significativa antecipação, o direito a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto” (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. UnB homenageia Victor Nunes Leal no seu centenário. Brasília: Correio Braziliense, 17/11/14, Seção Opinião, pág. 11).
     A dimensão fraternal (alusão ao princípio esquecido do tríduo liberal) da decisão pode ser incluída nessa categoria sensível do jurídico, posta em relevo pelo relator ministro Ricardo Lewandowski, conforme excerto de sua manifestação: “Há, como foi reconhecido no voto, referendado por todos os ministros da Corte, uma falha estrutural que agrava a ‘cultura do encarceramento’, vigente entre nós, a qual se revela pela imposição exagerada de prisões provisórias a mulheres pobres e vulneráveis. Tal decorre, como já aventado por diversos analistas dessa problemática seja por um proceder mecânico, automatizado, de certos magistrados, assoberbados pelo excesso de trabalho, seja por uma interpretação acrítica, matizada por um ultrapassado viés punitivista da legislação penal e processual penal, cujo resultado leva a situações que ferem a dignidade humana de gestantes e mães submetidas a uma situação carcerária degradante, com evidentes prejuízos para as respectivas crianças”.
     O alcance dessa crítica ao viés punitivista que se exacerba numa “cultura” hierarquizante numa escala em que as coisas (bens) estão acima do humano, não vem de agora e sempre foi forte mesmo no STF, se podemos recuperar o posicionamento de um outro ministro, contemporâneo de Victor Nunes Leal e com ele também compulsoriamente afastado da Corte, no mesmo ato de arbítrio: Evandro Lins e Silva.
      Com efeito, a crítica ao punitivismo  é uma leitura de um sentido civilizatório, cujo roteiro, sustenta Evandro Lins e Silva, revela a história do Direito Penal como a história da contínua mobilização na direção da abolição da pena de prisão. Num  texto de Evandro (De Beccaria a Filippo Gramatica. Uma visão global da história da pena. Rio de Janeiro: Edição do autor, 1991), ele  traz e acolhe para nossa atenção uma leitura do então Ministro Francisco de Assis Toledo, ex-integrante do Superior Tribunal de Justiça, que presidiu a Comissão Especial  para reforma do Código Penal, segundo o qual “em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente. Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como espécie de panaceia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como fator criminógeno ou como intolerável meio de opressão”. Repeti esse argumento em meu depoimento perante a Comissão instalada para debater o PL 4850/16 – (Estabelece Medidas Contra Corrupção), conforme expus aqui nesse espaço em outro texto (http://estadodedireito.com.br/crime-organizado-e-direitos-fundamentais/).
     É precioso o conjunto de textos que sumaria a riqueza de pontos-de-vista sobre o tema e que se oferecem como material substancial para um estudo de caso, em suas abordagens interdisciplinares, num pano de fundo invisibilizado, salvo por estudos antropológico-feministas que um conhecimento sensível escancara (cf. DINIZ, DeboraCadeia. Relatos sobre mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015); ou que se deparam com uma escuta profunda, disposição que até pouco (continuará?) orientava as Ouvidorias do sistema penitenciário (http://estadodedireito.com.br/ouvindo-as-ouvidorias-do-sistema-prisional/):
     Filhos & algemas nos braços: o enfrentamento do encarceramento feminino & suas graves consequências sociais,Bruna Angotti, Hilem Oliveira, André Ferreira;  Para além das grades, Dafne Sampaio; Participação social para uma justiça mais inclusiva & democráticaPedro Hartung, Isabella Henriques; Infância & maternidade sem grades, Mayara Silva de Souza, Thais Nascimento Dantas; Saúde materna e infantil nas prisões: contribuições para o habeas corpus coletivo, Luciana Simas, Maria do Carmo Leal, Alexandra Sánchez, Barnard Larouzé, Vilma Diuana, Vilma Ventura O caos prisional e a atuação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo na defesa de mães no cárcere, Maria Eduarda Dacomo Coelho Borges, Paula Sant’Anna Machado de Souza, Thiago de Luna Cury; Seletividade penal, encarceramento em massa e a decisão pela prisão domiciliar de mães & grávidas, Débora Nachmanowicz de Lima; Prisão domiciliar para quem não tem casa: a situação das mulheres migrantes em conflito com a lei no Brasil,Carolina Vieira da Costa, Michael Mary Nolan, Viviane Balbuglio; O direito a uma mudança de olhar,Guilherme Ziliani Carnelós, Ana Fernanda Ayres Dellosso, Gustavo de Castro Turbiani; Na luta por medidas imediatas, de médio e longo prazo, pelo desencarceramento, Pedro Rivellino Lourenzo, Luisa Musatti Cytrynowicz.
     Em outras palavras conforme já mencionei em exposição sobre obra aqui neste espaço Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/a-razao-da-idade-mitos-e-verdades/), certas categorias, entre elas a categoria criança, são de algum modo uma criação social e histórica e não apenas um fato biológico. Não é o que apenas é, parafraseando Hegel, mas o que ela se torna em sua vida, realizando-se valorativamente, a partir das contradições que a constituem inicialmente.
     Emílio Garcia Méndez, digo ali, respeitado oficial de projetos do Unicef e reconhecido criminólogo, levou às últimas consequências esse processo demonstrando, num texto antológico El Niño y el Sistema de la Justicia Penal: Elementos para una Historia Latinoamericana, publicado na coletânea Criminología en America Latina, organizada por Lola Aniyar de Castro, para Unicri – Instituto Interregional de Naciones Unidas para Investigaciones sobre el Delito y la Justicia, Roma, mayo 1990, o nascimento de uma nova categoria, a criança, retirada como identidade do mundo dos adultos.
     Para ele, que confronta seus estudos analíticos com percepções que incluem análises históricas como as de Philippe Ariès, a partir do exame de pinturas (retratos de famílias) que captam o universo de sistemas sociais e os lugares dos indivíduos nesses sistemas, uma tese plenamente reconhecida é a de que na sociedade tradicional, e até já bem entrado o século XVI, a infância tal como ela é entendida hoje não existia: “refutando las tesis de la psicologia positivista que vinculan la categoria niñez a determinadas características de la evolución biológica, el enfoque histórico la presenta como el resultado de una compleja construcción social que responde, tanto a condicionamentos de caráter estrutuctural cuanto a sucessivas revoluciones en el plan de los sentimentos”.
     É um percurso de fato dramático. Nele atuam imperativos de procedência diretamente estrutural, como as de ordem econômica, ao miniaturizar o trabalhador espoliado, uma não-criança apta às peculiaridades da produção nas minas de carvão ou nos teares de uma Europa forjadora de um proletariado abundante necessário à primeira revolução industrial, sem identidade e sem direitos. Atuam também imperativos de ordem cultural que fazem contrastar o processo de desenvolvimento da noção de criança, num largo itinerário no qual se insere a luta evidente pela diminuição de seu sofrimento moral e físico, com a tolerância nas relações entre pais e filhos tornando, por exemplo, o infanticídio uma prática tolerada e até considerada normal até o século XIX (Méndez, op. cit.).
     Não é demais aludir ao acontecimento em si emblemático, recolhido por Emílio Méndez, para demonstrar o que forte na obra que comento, a importância de romper, à força de marreta, obstáculos teóricos, epistemológicos e jurídicos, que bloqueiam o avanço dos direitos.
     Os estudos reunidos no volume ora Lido para Você, entre muitos outros aspectos, chamam a atenção por dois fundamentos que penso devam ser postos em relevo. O primeiro é constatar o vaticínio de Victor Nunes Leal, quando ainda no Supremo, antes de ser arbitrariamente afastado pelo autoritarismo do regime de 1964 sobre a necessidade de a jurisprudência andar nas ruas. Então, aqui no livro, ao lado do pioneirismo de “pela primeira vez em sua história, o STF reconhecer um habeas corpus coletivo, isto é de força social normativa”, o assistir uma disposição de sensibilidade da Corte, sintetizada no voto do Relator ministro Ricardo Lewandowski, diante “a duríssima – e fragorosamente inconstitucional – realidade em que vivem as mulheres presas, a qual já comportou partos em solitárias sem nenhuma assistência médica ou com a parturiente algemada ou, ainda, sem a comunicação e presença dos familiares” (p. 26).
     Foram essas histórias de vida que deram rosto às estatísticas, transmutando números abstratos a existências, que permitiram fazer emergir “o direito de encontrar conforto no colo de sua mãe, o direito de correr até se cansar, o direito de poder ver o dia amanhecer sem grades” (p. 39) de sujeitos que, fosse ainda o tempo dos tribunais de El-Rei, teriam como os filhos, a descendência e a casa de Tiradentes sido incluídos numa sentença que se expande muito para além do contraventor: na corda (enforcado), no ferro (esquartejado) e no sal (esterilizados o solo e as raízes de seus bens e amaldiçoados a sua descendência).
     O segundo fundamento, inscrito no coletivo que designa a peça de habeas corpus, e que vai demarcar, sobretudo com a presença e a atuação de amici curiae, a presença no Judiciário “da participação de atores de diversos espectros da sociedade, demonstrando a abrangência e repercussão de caso em análise” revelando a força instituinte do social, alargando ainda mais o alcance do habeas corpus e a doutrina brasileira de seu uso para ampliar a liberdade (com extensão de ofício do pedido para incluir as “adolescentes grávidas ou mães no sistema socioeducativo e seus filhos, cujas condições da privação de liberdade vividas nas instituições juvenis, apesar de contemplar mecanismos mais efetivos de ressocialização, são igualmente incompatíveis com o exercício do cuidado e o crescimento de uma criança” (p. 34).
      A decisão afinal adotada, muito fortemente orientada pelo voto do Ministro Lewandoviski, representa um salto jurisprudencial relevante, por trazer o Supremo para uma disposição ativa que se realiza em sua função de legislador positivo quando se trate de concretizar normas que tenham fonte no jus cogens inscrito na agenda civilizatória dos direitos humanos, e que represente “fomentar a implementação e a internalização eficaz pelo Brasil das normas de direito internacional dos direitos humanos”. Atento a essa agenda que reivindica um programa de capacitação do próprio sistema judicial para aferir a juridicidade dos direitos humanos (confira-se o discurso do ministro quando tomou posse na presidência do Supremo Tribunal Federal), o voto do relator coloca a Justiça no rumo da concretização material da dignidade do humano e afasta o aparto da sua morna, conformista e desatenta demanda por reconhecimento de direitos, acomodada a uma papelização da Justiça, não apenas de olhos vendados, mas com tampões nos ouvidos para o clamor e os movimentos que se organizam na rua (sobre o sentido de papelização da Justiça e a necessidade de uma escuta profunda ver  http://estadodedireito.com.br/ouvindo-as-ouvidorias-do-sistema-prisional/http://estadodedireito.com.br/a-quem-posso-contar/; ver ainda Gabriela Jardom, Um “tribunal achado na rua”: seria possível? Seria útil? Ou não passa de uma quimera?. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, v. 1 n. 2 (2019); e Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça. https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/223/212, v. 10, n. 90, 2008). Para abrir o sistema de acesso à justiça a outras interpelações: PINHEIRO, Carolina de Martins. Escuta criativa: sobre a possibilidade de uma justiça moderna e democrática. Brasília: Sindjus-DF, [S.D.].
     Um salto, convenhamos, ainda arriscado por conta de retrocessos que afrontam o exercício democrático que foi no Brasil, o legado das mobilizações do final do século XX para as expectativas do século XXI, na atual conjuntura sob ameaça autoritária. Mas que não desarma as energias utópicas acumuladas na experiência de participação, mesmo que os retrocessos se tornem reais. De novo, então, como Sobral Pinto, ainda apelaremos ao imaginário que escandaliza as consciências contrapondo a elas os direitos dos animais não humanos em face da perda de direitos do social alienado de humanidade.
     Ou, para terminar, como comecei, de forma mais radical, tomando um registro de Emílio Méndez (o. cit.), lembrando que foi a Sociedade de Proteção aos Animais, de Nova Iorque, como protagonista de uma intervenção da sociedade civil para exigir do Estado atuação protetora em face de abusos sobre criança praticados por familiares, que acicatou a formação de uma consciência social para assimilar novas categorias no imaginário da própria sociedade. O relato, devidamente documentado, da atuação da Sociedade de Proteção aos Animais, em 1875, mobilizando a opinião pública para a consciência de proteção à criança, a partir da subtração da menina Mary Ellen, de 9 anos de idade, do pátrio poder de familiares que a maltratavam, coincide, na narrativa do criminólogo argentino, com a criação da New York Society for the Prevention of Cruelty to Children, pré-condição de um processo político-cultural importante para que em 1899, por meio do Juvenile Court Act de Illinois, se criasse o primeiro tribunal de menores nos Estados Unidos.
     Aqui não chegaremos a tanto. Os textos que estão reunidos no livro mostram a força da participação da sociedade civil, que levou o habeas corpus coletivo a se constituir “uma intersecção complexa de direitos fundamentais, temas e casos reais na sociedade brasileira, como a condição do sistema prisional brasileiro, de sua seletividade e perversidade, da mulher em privação de liberdade, de suas crianças, da pessoa com deficiência, complexidade esta que não seria totalmente observada se não houvesse a participação qualificada de agentes da própria sociedade civil” (p. 35).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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