O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Retratofalado

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito



Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem. Textos Danielle Martins, Gabriela Jardon, Mariana Carvalho. Fotografias Wanessa Montoril. Brasília: Edição das Autoras/Athalai Gráfica e Editora, 2019, 103 p.

       Rebuscando a memória, posso dizer que minha mais sensível reminiscência em relação ao tema da fotografia e da narrativa, vem do impacto de Blow-Up, o filme de Michelangelo Antonioni vencedor do Grand Prix do Festival de Cinema de Cannes de 1966, por sua vez baseado no conto Las Babas del Diablo, de  Julio Cortázar. A fotografia é o elemento narrativo num enredo no qual o suspense está contido no espaço entre o real e a sua captura imagética que faz esvanecer entre o olhar físico e o olhar da câmera, toda a certeza do acontecimento ou que transforma em real, como na cena do jogo de tênis imaginário, o som da bola tocando o chão.
       Mas, meu mergulho pessoal na descoberta da fotografia como liame narrativo se deu em três momentos autorais. O primeiro quando da edição do volume 3, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Agrário, quando se tratou de definir a natureza e a forma da ilustração. Todos os volumes da Série, hoje caminhando para o 10º, têm um relevo artístico, ilustrações (cartoons, caricaturas, Gou-Gon, Fernando Lopes), pinturas (pacientes de programas terapêuticos em hospitais-dia para acompanhamento de transtornos mentais), desenhos gráficos e fotografias. O volume 3 teve fotos do grande artista Sebastião Salgado cedidas para a edição por mediação do MST – Movimentos dos Trabalhadores Sem-Terra.
       O segundo momento se deu durante o FLAAC 2012 (Festival Latino-Americano e Africano de Arte e Cultura) realizado por ocasião do cinquentenário da UnB (http://estadodedireito.com.br/registro-arquitetonico-da-universidade-de-brasilia-unb/). Numa das atividades do sofisticado programa, com a exposição e o lançamento de catálogo da obra do artista o fotógrafo argentino Daniel Mordzinski, participei de mesa-redonda sobre a relação entre fotografia e literatura, com o professor Antônio Miranda da UnBo escritor colombiano Santiago Gamboa e com a escritora cubana Wendy Guerra, ela própria retratada na obra, logo da abertura da exposição 200 x 200 Duzentos Anos das Independências em Duzentos Retratos de Escritores, uma ambicioso atlas humano da literatura ibero-americana (Revista FLAAC2012. Brasília: FLAAC2012/Decanato de Extensão da UnB, 2012; Catálogo da Exposição. Brasília: FLAAC2012/Decanato de Extensão/Casa de Cultura da América Latina/Universidade de Brasília, 2012).
       O terceiro momento é conferido aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, ao trazer para indicações obras que, de modo simbólico ou que tomem como pretexto, aludem à fotografia como um ponto de partida para o seu fio narrativo. Assim, por exemplo: http://estadodedireito.com.br/foto-de-uma-conversa/, título de um livro de Cristovam Buarque que contem entrevista com o grande economista Celso Furtado, o título referindo-se a foto dessa entrevista na casa do grande brasileiro em Paris, foto, aliás, que eu bati, presente no encontro e http://estadodedireito.com.br/25767-2/ – RETRATOS ESCRITOS. Homenagem a ANTÓNIO AVELÃS NUNES.
       Contudo, o que tenho a dizer é que, para além da impressão ingênua, devo o meu aprendizado para orientar o olhar esclarecido como narrativa fotográfica, a dois grades artistas desse métier, ambos tradutores do significado social de BrasíliaLuis Humberto e José Roberto Bassul.
       De Luis Humberto, retenho a lição do duplo olhar intimista, para o dentro e para o fora (HUMBERO, Luis. Do Lado de Fora da Minha Janela. Do Lado de Dentro da Minha Porta. Brasília: tempo d’imagem, 2010). De meu dileto amigo José Roberto Bassul, o arquiteto convertido em fotógrafo, a exibição de uma Brasília recriada por sua lente: nas paisagens modernista, concretista formando linhas de sombra, para a inscrição de poéticas mínima,inspiradas em desmemórias olímpicas,  e afinal, exibindo uma paisagem que traduz a concepção de que a cidade é um vão.
       Agora me deparo com esse instigante Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem. Leio na apresentação de seu projeto editorial que ele foi concebido como uma proposta visual-literária que pretende reunir o que, então, na realidade, produz-se em par: ver e narrar, narrar ver num amálgama a partir das imagens da fotógrafa Wanessa Montoril, pré-condição para as autoras Danielle Martins, Gabriela Jardon e  Mariana Carvalho, se lançarem em histórias que, rompendo com a simples descrição das fotografias, deem corpo ao olhar lírico e à voz poética muito pessoal de cada uma.
       No livro, diz o cronista Daniel Cariello que o prefacia, “não sabemos se os escritos preenchem os espaços em branco sugeridos pelas fotografias ou se são as imagens que ilustram os textos”. E eu até diria mais, retomando minha reminiscência original em Blow-Up, fazer esvanecer toda a certeza sobre acontecimentos que se  transformam em real, quando o real talvez se manifeste como imaginário. Assim enfabula um narrador-personagem no texto Buenos Aires, assinado por GJ: “(Ou pensei que entendi. Ou fingi que entendi. Ou queria tanto que tivesse entendido que de fato entendi.)”.
       Já adiantei, inclusive aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, ter presente que no plano epistemológico, a propósito, tem sido estimulante a vertente que trabalha a interlocução interdisciplinar e complexa para acentuar o diálogo entre saberes, demonstrando que o conhecimento não se realiza por uma única racionalidade, mas, ao contrário, pela integração entre diferentes modos de conhecer que nos habilitem a discernir o sentido e significado da existência e a elaborar sínteses interpretativas que além de nos permitir compreender o mundo, contribuam para transformá-lo, conforme, entre todos, sustenta Boaventura de Sousa Santos. Trata-se, como acentua Roberto Lyra Filho (A Concepção do Mundo na Obra de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972; Filosofia Geral e Filosofia Jurídica, em Perspectiva Dialética, in Palácio, Carlos, S.J., coord. Cristianismo e História, São Paulo: Edições Loyola, 1982), de operar padrões de esclarecimento, recusando o monólogo da razão causal explicativa, para abrir-se a outras possibilidades de conhecimento: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica; o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; o divertir-se, da atitude lúdica; o revelar, da atitude mística.
       Tem razão Eduardo Lourenço, não só em sustentar a unidade da poesia fernandiana (Fernando Pessoa), mas em suscitar a totalidade que abarca os seus aparentes fragmentos heterônimos, para indicar que nesse processo o problema central continua a ser o do conhecimento. Para Lourenço (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, publicado na edição brasileira do livro O Mito da Saudade, Editora Companhia das Letras), os avatares de Pessoa “representam uma tentativa desesperada de se instalar na realidade” (para mais ver http://estadodedireito.com.br/coluna-lido-para-voce-direito-no-cinema-brasileiro/).
       Das autoras conheço bem Mariana Carvalho e Gabriela Jardon. Não foi surpresa para mim, compartilhando com ambas espaços acadêmicos e profissionais, ver o revelar-se dessa disposição para o exercício de modos de conhecer que dialoguem, no caso delas, direito e literatura, como mediação inteligível e sensível para instalar-se na realidade.
       Com Mariana dividi, juntamente com outros parceiros e parceiras do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, na UnB, a mobilização editorial e co-autoral que resultou na edição dos 4º e 6º volumes da Série O Direito Achado na Rua, respectivamente Introdução Crítica ao Direito à Saúde e Introducción Crítica al Derecho a la Salud (Brasília: Editora UnB, 2008 e 2012). Já ali pressentia nos temas e estilo, a dimensão dupla da pensadora hábil no discurso científico e da escritora, sensível e exímia no trato da crônica e do ensaio. Não a via há tempos e é com alegria que a reencontro nesses ensaios em estado de imagem.
       Com Gabriela Jardon – GJ, não há surpresa. Eu já suspeitava que por trás ou por dentro da Juíza togada, ardia a quentura de um vulcão prestes lançar larvas incandescentes. Antes de acolhê-la como colega pesquisadora nos grupos de pesquisa da UnB (Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), já tinha divisado as frestas de uma vivacidade literária, na leitura de sua Coluna Enquanto Isso na Sala de Justiça, publicada no Jornal Metrópoles. Ali, na crônica Reflexões sobre uma inspeção judicial: “A lei é morta, o juiz é vivo”, ela se indaga: “A cruzada judicial contra a corrupção vem sendo feita por um juiz vivo? Será que as ruas, o povo, o passado, a história vêm sendo devidamente inspecionados tanto por este juiz quanto pelos que o criticam? A decisão do HC foi uma vitória de juízes vivos sobre uma lei morta? Ou ali, ao contrário, na intenção de se vivificar uma lei, a realidade foi apagada, ninguém se lembrando de “inspecionar” o que de fato ocorreu travestido de processo?”
       Então ela se apresenta como uma juíza viva e ativa, sensível, juízes que se deem conta conta, como mostra Bistra Apostolova (Perfil e habilidades do jurista: razão e sensibilidade, Notícia do Direito Brasileiro, nº 5, Faculdade de Direito da UnB, Brasília), de que prefigurar o sentido dos conflitos é a tarefa que lhes cabe e que mediá-los requer compreender o significado que eles alcançam em seu próprio tempo. Como disposição e como atitude, sem o desespero aniquilador que Tolstoi impõe ao juiz de sua narrativa (A morte de Ivan Ilich), para abrir-lhe a consciência que desnuda a sua trajetória profissional, social e familiar como “monstruosa mentira camuflando vida e morte”.
       No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja, para caracterizá-las como “ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social”.
       Não se trata, nessa referência a uma justiça poética, o que poderia parecer à primeira vista, a uma busca de relação entre a justiça e a literatura, para por em relevo a inclinação de magistrados para o uso da linguagem artística. Não que isso deixe de ocorrer ou que se rejeite o pendor estético quando se trata de desenvolver o discurso jurídico.
       Aplicadas aos juízes, essas categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional já destacada por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade): como “a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender, essencial na formação do bacharel”.
       O juiz, dizia meu querido avô também juiz Floriano Cavalcanti de Albuquerque, assume sim uma missão e nela incorpora a dimensão orgânica que institucionaliza a sua judicatura. Ele o faz, hoje é sabido e aceito, no plano coletivo quando se associa para ampliar a sua participação política. Atualmente, os juízes assumem essa expressão politizada de seu agir coletivo, mas nem sempre foi assim e há registros dramáticos para confinar em sofrimento percursos impulsionados por compromissos de classe. Também nesse terreno Floriano Cavalcanti abriu sendas pioneiras. Tome-se, por ilustração, o discurso pronunciado em 1954, na sede do Tribunal de Justiça, na solenidade de fundação da Associação dos Magistrados Brasileiros no Rio Grande do Norte, da qual foi o primeiro presidente (O Juiz e a importância de sua missão). Depois de estabelecer a relação entre o agir insular , fragmentário e aritmético do juiz que caracteriza a soma quantitativa de seu esforço para determinar o quadro de suas  necessidades e de mostrar  a exigência de cooperação assim articular o prestígio qualitativo do agir enquanto classe, ele elabora um dos mais bem definidos esboços do que pode ser definido como perfil de um magistrado: “Judex, é como os latinos intitulavam a autoridade encarregada de aplicar as Leis. Dizer o Direito, é a sua significação etimológica – Jus discere. Equivale a prestar Justiça, desde que esta é a sua finalidade. O Juiz não é o ‘ente inanimado’, a que aludia Montesquieu, e sim, o ‘oráculo vivo’, como lhe chamava Blakstone. É figura dinâmica e não estática. A sua cultura tem que ser universal, para que dele não se chasqueie, como Lutero, ‘Pobre coisa o juiz que só é jurista!’, ou se reduza a nada, como D’Holbach, ‘Quem só o direito estuda, não sabe direito’. Vê-se que de nós, cuja ‘honrosa e difícil condição é poder tudo para a justiça e nada poder para nós mesmos’, na bela frase de D’Aguesseau, muito se exige e pouco se nos dá. Conhecimentos gerais e especializados, a par de qualidade excepcionais de inteligência, de caráter e moralidade – são os requisitos e predicados ordinários do Juiz. É que somos, na expressão de Carlos Maximiliano, ‘um sociólogo em ação, um moralista em exercício’”.
       Anatole France, ainda acrescentava a essas qualidades próprias do bom juiz, certamente inspirando-se no Presidente Magnaud, a combinação entre o espírito filosófico e a simples bondade (A Lei é morta o juiz é vivo, op. cit.).  Algo que permita o salto humanizador que o exalte para além daquele lugar automático que já no século XIV mereceu a reprimenda de Bartolo de Sassoferrato (“I meri leggisti sono puri asini”). Um lugar veementemente recusado por Floriano Cavalcanti (O Juiz e a importância de sua missão): “Assim apercebido, estará a altura do seu nobre ofício, capaz de exercer a função de criador do Direito e humanizador da Lei, dando movimento aos textos imotos dos Códigos, adaptando os velhos preceitos às novas condições sociais. Nesse trabalho reajustativo torna-se ele o artífice da formação e do aprimoramento da norma jurídica, plasticizando-a ou suprindo as suas deficiências e omissões, ou fazendo sentir ao legislativo a necessidade de sua revisão ou reforma. Dessa maneira, o Juiz faz com que o Direito, estratificado na Lei, não se fossilize, e evolva como um organismo vivo. E os julgados proferidos em Tribunal (Jurisprudência), além de fontes documentárias da evolução jurídica, são preciosos repositórios para o estudo da Sociedade, pelos flagrantes das épocas em que foram pronunciados”.
       Juízes da estirpe da querida amiga, a Juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que recebeu em 2009 o título de Cidadã Honorária de Brasília, concedido pela Câmara Legislativa do Distrito Federal. Fui o orador para o elogio da homenageada, por seus méritos acadêmicos, com mestrado em Direito obtido na Universidade de Brasília – UnB, com a dissertação “Justiça Comunitária: por uma justiça da emancipação”, tema que a projetou como pioneira na criação de um espaço inédito para abrir acesso à Justiça, a partir da institucionalização do premiado projeto Justiça Comunitária. Juíza sensível no sentido a que alude Martha Nussbaun, mas que sabe expressar-se simultaneamente como a grande artista que é, sambista de raiz, vocação reconhecida desde seu primeiro trabalho gravado e performatizado Meu Canto. Agora em dezembro de 2019, Gláucia Foley marcou participação eloquente no Seminário Direito Como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua, na mesa Educação para a Paz e Práticas Emancipatórias de Mediação de Conflitos – 30 Anos do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos e com o texto que vai integrar o 10º volume da Série O Direito Achado na Rua: Justiça Comunitária. Justiça e democracia muito além dos tribunais. Gláucia, no fecho de sua mesa e no encerramento do evento, apresentou-se artisticamente, com poções preciosas de seu rico repertório, de seus cantos.
       Volto a Gabriela e suas crônicas, dando vida a leis inanimadas: “Pela primeira vez na vida, fiz uma inspeção judicial. Inspeção judicial é um meio de prova previsto no Código de Processo Civil e praticamente morto. Este nosso novo mundo de números, estatísticas, massificação de processos, pressas e agonias não deixou mais espaço para que um juiz, na dúvida sobre alguma coisa, pegue seu bocadinho de tempo, desloque-se, vá até o local do problema, veja com seus próprios olhos, roce sua pele e sinta o cheiro das controvérsias, não se contentando só com as suas tão desconfiáveis narrativas. Pois outro dia fui. Dois prédios geminados de quitinetes nas setecentos da Asa Norte. Os moradores, com os anos, foram invadindo aqui, deixando o vizinho entrar ali, mudando as paredes internas, de modo que existe lá hoje o estranhíssimo fenômeno arquitetônico de haver quitinetes localizadas metade em um prédio e metade em outro. Um dos edifícios foi a leilão e arrematado. O arrematante quer que os moradores saiam do imóvel adquirido por ele. Devemos precisar então, exatamente, onde cada quitinete se localiza. Nomeei um perito engenheiro civil e ele orçou alto a perícia. As quitinetes são simplórias, as pessoas envolvidas não têm o dinheiro e estávamos nesse impasse. Sabe de uma coisa? Vou lá com minha trena – eu sempre gostei de uma reforma. Em 15 minutos, tive todas as respostas que precisava e voltei para a vara com uma noção do que estava em jogo poucas vezes alcançada por mim em outro processo”.
       É esta juíza sensível que chega à pós-graduação em direitos humanos na UnB, para abrir os debates sobre a escuta profunda tão necessária nos espaços de mediação institucional: “Não há dúvida de que o Judiciário tradicional, calcado quase que apenas na operação pretensamente matemática da subsunção do fato à norma estatal, dá conta, se é mesmo que dá, de uma parcela ínfima do que pode se entender por direito e distribuição de justiça. É urgente que se alarguem as possibilidades, que se trabalhe com outras racionalidades e caminhos de formação de decisão. Não se está falando, necessariamente, de direito alternativo ou de ativismo judicial. Sem descartá-los, a apologia a estas inclinações também seria encerrar o fenômeno do direito e da justiça em quadrantes menores do que sua real natureza. O Judiciário precisa se fazer permeável aos fenômenos sociais de uma maneira ampla, aguçando sua escuta e levando em consideração em seus processos decisórios argumentos que não sejam estritamente os do direito positivado”. (Gabriela JardomUm “tribunal achado na rua”: seria possível? Seria útil? Ou não passa de uma quimera?. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, v. 1 n. 2 (2019): Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras).
       Chego ao fim, saboreando um duplo regalo. Por dentro uma leitura evocativa, familiar, conduzida pelos tipos gráficos que me recordaram a minha velha Smith Corona depois substituída pela Olivetti Lettera 22 de meus primeiros escritos (aqui com a fonte Zai-Olivetti Regular. Por fora, a plasticidade do encontro entre capa e contra-capa (ou quarta capa), na combinação co-autoral, assim apresentada: “Marcha com passos certos, porém exaustos, o caminho inevitável entre as duas casas. Resignada, risca no chão o mesmo trajeto toda manhã de domingo. Vai buscá-lo, como faz há tanto. Bate na porta e a mulher abre sem que se olhem, apontando de costas a cadeira para que se sente. Espera por ele de pé na cozinha, onde, ainda àquela hora, chegam do quarto os calores desgrudados dos dois. Ele aparece, sujo e torto, e a segue de volta para casa, sem hesitar. Passa então o café e arruma os lençóis. Ele se deita esgotado. Não trocam palavra, mesmo quando, já passadas horas, ela vai ao encontro daquele corpo gasto, na cama que é deles, embalada pelo cheiro melado e persistente de uma outra mulher, conseguindo por um segundo, e só assim, amar aquele homem”.
       Um primor. Lembrou-me Ítalo Calvino, em Amores Difíceis. Uma percepção convincente destacada por Bruna Fontes Ferraz (Sapore, Sapere: por uma poética dos cinco sentidos em Italo Calvino / Tese de Doutorado, USP, 2018).  Em Calvino, a tese constata, “a partir de indagações sobre a possível atrofia dos sentidos e o declínio da experiência no homem moderno, problematiza-se se a linguagem tornaria o homem insensível aos estímulos externos, ou se ela permitiria que as experiências sensíveis se tornassem acessíveis a ele”. Nesse livro de Calvino, o conto “A Aventura de um Esposo e de uma Esposa”, descreve como “naquele nicho de tepidez que ainda conservava a forma do corpo dela, e afundava o rosto em seu travesseiro, em seu perfume”, o personagem adormecia.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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