Por Catherine Fonseca Coutinho*
O Brazil está matando o Brasil.
Está matando os povos indígenas e tradicionais, as populações ribeirinhas, as comunidades camponesas, os trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade.
O Estado Brasileiro se insere cada vez mais na realidade de uma economia de mercado para produção massiva de bens e a exportação das suas riquezas naturais. Em progressões aritméticas (quiçá geométricas), atende as demandas dos grandes bancos, mineradoras, construtoras e outras corporações em face daquelas da população local.
As antes infindas regiões que se compunham por uma vasta biodiversidade, da qual também faziam parte os sujeitos locais e suas cosmovisões, foram gradualmente devastadas, exploradas, censuradas, violadas, violentadas, estupradas e assassinadas.
É necessário esclarecer que não se faz a separação entre a terra e os sujeitos coletivos de direito, todos os dolorosos adjetivos supramencionados servem para o mesmo personagem: a natureza. E nós somos a natureza.
Essa é a lição ensinada por Ailton Krenak, ao repassar com maestria uma das mensagens compartilhadas por povos originários: a Terra e a Humanidade caminham juntas. Precisamos compreender que somos uma ínfima parcela que compõe a natureza e que, mais do que nunca, está a impossibilitar a vida.
Parece prepotente e ignorante o imaginário metropolitano da necessidade incessante de ampliação de polos industriais, da exploração excessiva de recursos naturais e da extinção de modos de viver que experienciam o meio ambiente com zelo e respeito.
E aparentemente, a aparência só consegue ser confirmada pela coletividade quando instalado o caos, como na pandemia que enfrentamos na atualidade decorrente da tirania antropocêntrica de violação da vida silvestre.
Segundo Boaventura de Sousa Santos, a cruel pedagogia do vírus pode ser instrumento de ruptura do imaginário neoliberal que impede a discussão de alternativas de gestão as quais não envolvam a destruição ambiental, o consumo em massa e a precarização de direitos trabalhistas.
Alternativas que só conseguem ser reveladas pela indispensável entrada de um debate de processo civilizatório no âmbito do espaço político, como sempre deveria ter sido e permanecido.
O Brazil está matando o Brasil.
Está matando as culturas locais, as cidades interioranas, a agricultura familiar, a gestão ambiental consciente, a produção adequada de bens.
A atuação do Brazil é coordenada e bem administrada para o fim principal que se propõe, a acumulação do capital, nada obstante tropece em certos obstáculos provocados pelas suas irresponsabilidades. É o caso das tragédias em Mariana e Brumadinho, ocasionadas pela mineradora Vale, com o tempo silenciadas e esquecidas da fraca memória do povo brasileiro.
O Brazil transcende o ato da devastação ambiental de regiões ao se ofertar como única solução viável para o crescimento econômico do Brasil, o que parece estar quase que impregnado no pensamento de boa parte da população.
Diante de outra perspectiva, vejamos o caso de Cavalcante, município de Goiás localizado na Chapada dos Veadeiros. A mineração está se tornando a atividade preponderante da região, todavia, a atividade econômica que mais movimenta renda para a população local é o ecoturismo.
A lambança da alta exploração de minérios impede a atividade de turismo ecológico da região, esta que é de fonte limpa, pura e cristalina de renda. Cavalcante é apenas um exemplo das muitas realidades de localidades do Brasil que sofrem com o mito do urgente desenvolvimento econômico, conquanto disponha de uma vasta diversidade que pode ser usufruída e explorada de forma adequada e consciente.
É evidente que a entrada de uma atividade de enorme magnitude e impacto como o é a mineração irá gerar um sistema rentável, mas que possui prazo de validade, consequências irreversíveis de devastação ambiental e acarreta na expulsão das pessoas do campo.
O Brazil está matando o Brasil.
E o Brazil nada mais é que a representação da vontade das corporações que se sobrepõe às necessidades do povo brasileiro. Brazil é a representação do capitalismo como ordem econômica globalizada.
É a placa enganosa na estrada que indica uma bifurcação, de um lado o precipício que é gerir o país sem as premissas do neoliberalismo, do outro a estrada asfaltada, segura e acessível mediante oneroso pedágio para usufruir as maravilhas do capitalismo.
Estamos a pagar a taxa do pedágio.
Por muito tempo o pagamento esteve encarregado dos que estão nas margens, nas beiradas, nas periferias, nos abismos, os que estão no local do esquecimento, da inospitalidade, da irrelevância, do desagrado, do fedor, da rejeição.
Mas aos poucos essa conta vai começando a ser compartilhada, porque, apesar de muito mais custosa e penosa aos antigos pagantes, os danos sociais e ambientais atingem os que estão em pedestais mais elevados.
É como a elevação do nível do mar que começa a alcançar os degraus antes inatingíveis, como na circunstância da pandemia do coronavírus, em que todos e todas se sujeitam ao ressarcimento pela fruição desenfreada de liberdades individuais, oriundas da perspectiva de uma ordem pretensiosamente global de consumo desenfreado, inexistência de barreiras geográficas e super exploração de recursos naturais.
O Brazil está matando o Brasil.
Como diria Aldir Blanc, cantor e compositor de grandes obras brasileiras como “Querelas do Brasil”, morto recentemente pelo COVID-19:
“O Brazil não conhece o Brasil
O Brasil nunca foi ao Brazil
Tapir, Jabuti, Illiana, Alamandra, Ali, Alaúde
Piau, Ururau, Aqui, Ataúde
Piá-carioca, Porecramecrã
Jobim Akarone Jobim-Açu
Oh oh oh
Pererê, Camará, Tororó, Olererê
Piriri, Ratatá, Karatê, Olará
O Brazil não merece o Brasil
O Brazil tá matando o Brasil”
Que a sua mensagem seja eternizada para impulsionar a transformação e impedir o presságio.
Referências:
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras. 2019.
KRENAK, Ailton. O amanhã não está a venda. São Paulo: Companhia das Letras. 2020.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Lisboa: Ed Almedina. Abril, 2020.
Documentário Ser Tão Velho Cerrado. Lançamento em 02 de junho de 2018. Direção: André D’Elia. Disponível em: Netflix.
* Catherine Coutinho é mestranda em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB), integrante do grupo de pesquisa O Direito Achado Na Rua coordenado por José Geraldo de Sousa Junior, Advogada no escritório Cezar Britto Advogados Associados.
** Publicado originalmente em Rede de Mídias Brasil. Jornal Estação Brasília (edição do Jornalista João Negrão)
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