O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019


Carta ao Direito Achado na Rua.
Do céu de Brasília, 15 de dezembro de 2019.

Querido professor José Geraldo (Zé),
Finalmente, escrevo minha carta. Mas não a escrevo desde Lima, como o senhor me pediu. Escrevo desta ponte, por você imaginada, e que agora trilho, ida e volta e ida, entre Brasília e Lima, após o Seminário dos 30 anos de O Direito achado na Rua. Aqui me permita um parêntese nestas linhas introdutórias. Compreendo agora o que é esse momento de estar em suspensão diante de um turbilhão de emoções, e aqui remeto a carta tão emocionante de Isis, também escrita em transito há pouco tempo atrás. Esse momento de solidão, em que já sozinhas nos deparamos com todos os sentimentos e sensações juntos a uma só vez: a melancolia acompanhada já da nostalgia que trazem as partidas, e a ansiedade confundida com a alegria que as chegadas trazem. Entre a despedida e o encontro, escrevo esta carta.
Hoje, por coincidência (ou não), o facebook me trouxe uma recordação. Se tem uma coisa que gosto nesta ferramenta moderna de comunicação, são essas lembranças que aparecem quando a gente menos espera. Curiosamente, recebi uma notificação de que há exatos dois anos, recebia de presente o seu livro “O Direito como Liberdade”, nele estava escrito uma dedicatória, mais ou menos assim: “Querida Renata (Rê), na expectativa de que os termos aqui propostos possam gerar projetos de vida comuns..”.
Não poderia imaginar, há dois anos atrás, que estaria hoje voltando depois da realização desse lindo encontro em Brasília. Tampouco, poderia imaginar que estaria voltando de Brasília para Lima. O projeto comum, traçado em tímidas linhas, parece que encontrou um solo fértil, generosamente cultivado ao longo desses anos. Deste cultivo, junto com tantas outras sementes germinadas, nasceu este grande evento celebratório, que foi nosso Seminário Internacional dos 30 anos do Direito como Liberdade. Um evento que reuniu os mais jovens estudantes da graduação de vários rincões do Brasil, Turmas do PRONERA, Assessorias Jurídicas Populares, lideranças de movimentos sociais, pesquisadores e pesquisadoras de todas as partes do Brasil, o mais alto intelecto de pensadores e pensadoras da teoria crítica do direito e do pluralismo jurídico. Foram mais de 400 trabalhos recebidos, 27 oficinas, mais de 500 pessoas frequentando os jardins, as salas de aula, o auditório, os espaços, entre sorrisos, produção intelectual, abraços e experiências compartilhadas. E eu, estava lá.
Percorrendo a história de O Direito Achado na Rua, e sua larga e fecunda trajetória, me parece pouco o tempo em que nossos caminhos se cruzaram. Porém, tenho não apenas a sensação, como a certeza de que sempre caminhamos juntos. Esse direito que “é, sendo” proposto como libertação dos oprimidos e oprimidas, esse direito como “legítima organização social da liberdade”, sempre esteve em mim. Sempre fui Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR) sem saber. Lyra Filho, em seu artigo “Pesquisa em QUE Direito” (1984), gentilmente nos fala “se você produz, intelectualmente, coisas harmonizáveis com os nossos princípios, já entrou, sem sabe-lo”. E, assim, ouso assumir meu papel nessa escola desde quando meus motivos para ingressar na Faculdade de Direito sempre foram o de lutar pelos oprimidos e oprimidas de minha região, no caso, os povos das florestas.
Me atrevo a dizer, hoje, com muita consciência, de que o percurso de minha história atual se confunde com o percurso de O Direito Achado na Rua em minha vida. (Re)construiu não apenas a minha mirada profissional, mas ofereceu as ferramentas de reconstrução de minha subjetividade, ressignificando a minha própria existência. Aqui começo a compartilhar um pouco dessa trajetória.
Saindo de uma crise de depressão grave, após um divórcio traumático, decidi voltar a Academia depois de uma longa viagem pela Amazônia Brasileira, seguida de uma incursão pelas Guianas e Suriname. A reconexão com a minha terra, me remeteu a um desejo sempre existente em mim: produzir intelectualmente e por meio de uma práxis emancipatória contribuir para a luta dos povos indígenas. Assim cheguei aos corredores da Faculdade de Direito da UnB, decidida a re-começar, encontrei ali um homem de cabelo branco, estatura média, magro, com um chapéuzinho panamá e um sorriso gracioso, sempre andando com uma pastinha na mão direita, com um ar jovial e alegre. Meu primeiro pedido como aluna especial na sua turma foi indeferido. Lembro-me da sensação de tristeza quando vi que tinha sido negado meu pedido. Com toda razão, ele não me conhecia. Diante de uma turma concorrida, com tantos pedidos para deferir, por que me selecionaria, vindo eu sem nenhuma referência? Me bastou um sorriso, para que então mudasse o cenário (aqui agradeço a intervenção de Zizi, se não fosse o sorriso dela, talvez meu pedido continuasse indeferido).
Comecei a frequentar suas aulas, era agosto de 2017. Esperava ansiosamente as sextas-feiras, que sem dúvida, eram minhas melhores horas da semana. Ali escutava sobre um tal direito que poderia ser emancipatório, um direito que poderia libertar os oprimidos, novos encontros, novos caminhos, novas chaves de acesso para um mergulho interno que começaria nessas tardes de sextas-feiras. Ali encontrava também palavras que ecoavam em minha alma ao mesmo tempo que estabelecia uma ponte de reconciliação com o direito. Dizia sempre aos amigos que aquelas tardes me ensinavam não apenas sobre teoria crítica do direito, mas aprendia sobre a existência humana, eram aulas e classes de ensinamentos sobre a vida e de como ser gente.
Aos poucos, foi chegando ODANR em minha vida, carinhosamente foi se acomodando nas prateleiras da minha estante de livros, nas minhas tardes de sexta-feira, nas minhas manhãs de domingo nas caminhadas no parque Olhos D’água. Os caminhos foram se costurando, tecendo histórias de vida, projetos em comum. A parceria construída a doses de cumplicidade foi se solidificando.  Por muito tempo me perguntava: “por onde eu andava que não conhecia essas pessoas?”, “O que eu estava fazendo que ainda não tinha lido esse livro?”, “por onde eu andava que não frequentava esses lugares?”. Sempre me foi tudo tão familiar, aquela doce sensação de quando encontramos um velho conhecido que há muito não vemos. Me parecia tudo muito incompreensível não estar neste lugar antes.
Voltando após este Seminário, refletindo sobre o percurso de O Direito Achado na Rua, penso que o nosso encontro se deu no momento certo. O encontro me proporcionou não apenas o mergulho mais profundo com a teoria crítica do direito, como também me ofereceu as ferramentas necessárias para meu processo pessoal e subjetivo de emancipação. Como ninguém se emancipa sozinho, me reconheço em um duplo movimento de libertação, nesse movimento dialético: a minha, que atravessa esse coletivo; e a do coletivo, que atravessa a minha. Juntos lutamos pela emancipação dos sujeitos coletivos de direito; nesse “é, sendo” eterno.
O Direito Achado na Rua marca um divisor de águas na minha vida; de fato, um recomeço, novas páginas em branco a serem escritas, novas possibilidades, novas amizades, novas esperanças, novos sonhos, novos e velhos encontros comigo mesma. Sem O Direito Achado na Rua, não estaria aqui hoje voltando para Lima. Aqui me alegro de poder compartilhar um pouco do que este encontro reverberou nesses últimos três meses.
Me atrevo a dizer que sem O Direito Achado na Rua, não existiria esse encontro com las calles de Lima, cujo ensurdecedor barulho de suas buzinas anunciam os efeitos de um neoliberalismo nefasto já incorporado no quotidiano, na vida e na subjetividade dos limeños. Sem O Direito Achado na Rua, não caminharia num frio intenso por meses, sob um constante céu gris, que me traria mau humor e saudades de Brasília (ali descobri que não há nada melhor do que o calor e o céu azul do cerrado).
Sem ODANR, não haveria este encontro com as ruas tomadas em uma convulsão social por protestos, que culminou na dissolução do congresso peruano. Na minha primeira semana em Lima, acompanhei as marchas que tomavam as calles de Lima sobre o signo “Que se vayan todos”, vozes de um povo cansado de um fujimorismo enraizado, porém ainda sem alternativas para disputar um projeto de sociedade de libertação de seu maior algoz: o neoliberalismo implementado pelo ditador peruano de forma tão atroz, cujo projeto de poder continua encrustado nas elites peruanas que detém a maioria no Congresso e em toda a institucionalidade.
Sem ODANR, não caminharia pelas charmosas vielas de Barranco, onde ali encontraria meu cantinho dessa cidade, o Café “Gato Tulypan”, um lugar que reúne arte independente e música criolla, que resiste como um centro cultural por insistência e valentia de seu jovem curador, Patrício. Sem ODANR, não encontraria na rua Quilca e seus antigos sebos, as primeiras edições das poesias de Cesar Vallejo e seus Heraldos Negros, não encontraria o Perú indígena, do Amauta Mariátegui, não conheceria a Miraflores de Vargas Llosa, e o pôr do sol do oceano pacífico. Sem ODANR, não existiria as prosas de domingo no Mercado de Jesus Maria com o senhor Rafael, que sempre tem o melhor queijo andino para oferecer daquela semana ou mesmo aquela imensidão de frutas, batatas, vegetais, que sem saber os nomes levaria para casa cheia de receitas após divertidas conversas com algumas mulheres no mercado – sempre com um rol de ingredientes que eu dificilmente entendia. 


Sem ODANR, não existiria o encontro com a Amazônia peruana e a recepção calorosa da caudalosa chuva, que só o calor e a humidade provocada pelas árvores centenárias da Amazônia nos oferece; não sentiria esse sentimento de chegada, de volta ao lar, ao ver o céu desabar em forma de água, ali entendi – e senti - que não existem fronteiras que separam as árvores, os rios e os povos. Sem ODANR, não haveria uma viagem de avião, avioneta, caminhão, barco, chalupa, dois dias e meio rio adentro para chegar ao Pueblo Ashuar del Pastaza, não encontraria ali este povo alegre, que escuta canções tão semelhantes àquelas acostumadas a ouvir nos rincões mais profundos do Pará. Não conheceria mulheres e homens guerreiros, que lutam contra a exploração do extrativismo, combatendo vorazmente os projetos de mineração e lotes petroleiros, projeto colonialista que continua sendo a matriz econômica peruana; não tomaria banho no rio com as mulheres ashuares, e descobriria que o que temos em comum além do sorriso e a condição de ser amazônica, é a dificuldade de se expressar em castelhano – nossa língua materna é outra.

Sem ODANR, não teria meu encontro com as Rondas Campesinas, o maior movimento do campesinato peruano, não chegaria a 4.200 metros de altitude nos Andes peruanos, em Cajamarca, para conhecer um povoado campesino (descendente de indígenas) de mil habitantes, cujo modo de vida está imbricado com a proteção de seu território, suas lagoas, sua água, sua vida; não seria convidada a desayunar em suas casas, a almoçar no melhor (e mais modesto) restaurante do povoado; não voltaria com eles em uma Kombi, ouvindo seus cânticos de melodia triste, mas que anunciam a vitória após conseguirmos visitar as lagoas de Yanacocha, e atravessar as tranqueiras que lhes impediam de pisar em seu território sagrado depois de nove anos; não chegaria com eles até Quito, depois de 40 horas de estrada, para a reunião da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para apoia-los na defesa no caso Conga, projeto de mineração de extração de ouro maior da América do Sul, que secaria todas as suas lagoas e acabaria com toda a água da região. Não participaria de um evento sobre consulta prévia na Universidade andina Simón Bolivar, e não conheceria as lideranças indígenas que protagonizaram uma série de protestos anti-neoliberais contra medidas autoritárias de um governo que lhes traiu, e que inaugura uma série de insurgências populares em toda nuestra latino-américa.
Sem ODANR, não existiria tardes e tardes compartilhadas com toda a equipe do Instituto Internacional de Derecho y Sociedad, tantos aprendizados entre sorrisos e guloseimas peruanas, fartura e abundância de tantos sabores deste Peru. Foi por meio de ODANR, que também encontrei a querida Raquel Yrigoyen Fajardo, que me abriu as portas para todos esses novos encontros, por meio do pluralismo jurídico, da litigância estratégica, amizade também tecida a base da cumplicidade e confiança. Também pelo ODANR, cheguei na Universidade San Marcos, para as minhas aulas de antropologia da Amazônia, com a professora Luiza Elvira Belaunde, que me colocou em crise com todo meu marco teórico da minha pesquisa de dissertação de mestrado e que me faz voltar cheia de dúvidas – terei que me entender depois com meu orientador.
Foram tantos os encontros proporcionados por meio deste primeiro encontro com O Direito Achado na Rua, que me caem as lágrimas só de pensar. E já sinto saudades daquele que sorri um sorriso sempre esperançoso e que levanta o chapeuzinho para se despedir, me fazendo rir e chorar ao mesmo tempo. Já sinto saudades dos que ficaram e sinto saudades de tudo aquilo que ainda não vivi.
Volto a Lima feliz, ansiosa para a chegada nesse novo lar, que aprendi a amar, que me abriu novos caminhos e que expandiu a minha alma. Volto a Lima para encerrar esse ciclo de tantas novas Renatas, de tantos novos começos, de tantas e múltiplas possibilidades. Mas volto mais feliz ainda porque sei que meu retorno a Brasília se aproxima e com ele novos desafios, novas aventuras, novos caminhos nesse grande coletivo que é O Direito Achado na Rua.
Queria lhe dizer, professor José Geraldo, que trago O Direito Achado na Rua comigo para onde quer que eu vá, pois já não sei onde ele começa e onde eu termino.
Obrigada Zé,
Obrigada Professora Nair,
Obrigada a todos e todas que juntos compartilhamos estes últimos três dias de seminário, que estiveram presente e espiritualmente conosco.
Obrigada a todos que são e constroem a Nova Escola Jurídica Brasileira, Nair.
Com amor,
Renata Vieira.



Brasília,  15.12.2019
    
Mulher Ashuar, Territorio Ashuar del Pastaza, 30.10.2019


Rondero,  Laguna Seca - Cajamarca, 07.11.2019



Quito, 10.11.2019

Com os movimentos sociais, Universidade Simón Bolivar, Quito, 13.11.2019


Com o Amalta Mariátegui – Centro de Lima, novembro 2019



Pôr do sol no Oceano Pacífico - Lima, 13.10.2019


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