O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

terça-feira, 1 de outubro de 2019

BEAU GESTE ou O Jeito de Ser Luiz Carlos Sigmaringa Seixas


BEAU GESTE ou O Jeito de Ser Luiz Carlos Sigmaringa Seixas

                                    José Geraldo de Sousa Junior[1]

Não é só o vocábulo, com a elegância da língua francesa que expressa a fidalguia, a generosidade e a honradez de Luiz Carlos Sigmaringa Seixas. Seu modo de ser e agir sempre foi a representação do cavalheirismo que o escritor inglês Percival Christopher Wren imprimiu ao personagem título do seu romance de 1924, BEAU GESTE .
Todos os que conhecemos o Luiz Carlos, sabemos bem desse seu jeito de ser tomando forma invariavelmente em gestos nobres, porque ao contrário de muitos fariseus e doutores da lei, sempre foi exaltado sem necessitar sentar-se no primeiro banco (Lucas, 14).
No livro organizado por Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz ADVOCACIA EM TEMPOS DIFÍCEIS Ditadura Militar 1964-1985, publicado pelo FGV,  Luiz é naturalmente um dos entrevistados e, mesmo com um roteiro que apreende em detalhe a força de uma biografia, pronta para o diálogo, porém sem desvios, altiva e corajosa,  ele próprio contemporiza o reconhecimento que granjeou para não se deixar envaidecer.
Quando os entrevistadores abrem a oportunidade para se auto-definir: Doutor Sigmaringa, gostaria que o senhor ficasse à vontade para dizer as suas palavras finais, a sua resposta é a sobriedade que não se esbanja em arrogância narcísica: “Primeiramente, agradecer a escolha de meu nome para este depoimento. Depois, deixar claro que o meu papel na luta dos advogados de presos políticos não teve a importância de tantos outros colegas. Por fim, dizer que trabalhos desse tipo são muito importantes, pois ficam como registro para a memória do país, para a história do Brasil, talvez no seu período mais sombrio. O registro de uma luta heroica, empreendida por gente corajosa, e que deve servir de exemplo para as novas gerações. E é também uma homenagem àqueles que na sua luta contra uma ditadura sanguinária, foram presos, torturados e deram as suas vidas para que o Brasil retomasse o caminho da liberdade e da justiça social”.
Esse modo discreto de ser, que vai do anonimato de uma solidariedade que jamais desassistiu um desvalido,  sem exigência de retorno ou um projeto que valesse o apoio para seu seguro credenciamento, foi o balizador para definir, aceitando ou recusando, convocações para o exercício de altos cargos, na administração ou no sistema de justiça. Para ele o exercício de cargos públicas só pode dar-se por meio de requisitos que se orientem pela função social desses misteres, jamais pelo obséquio ou o carreirismo. Note-se que nesse quesito se inclui, três vezes recusada, a indicação de seu parceiro político de anos, o Presidente Lula, que o queria com assento no Supremo Tribunal Federal.
Os livros e entrevistas que registram a sua biografia trazem um rol expressivo de situações relevantes nas quais se distinguiu. Seu colega e irmão por filiação afetiva, no acolhimento patriarcal que seu pai e nosso mestre comum na advocacia Antônio Carlos Sigmaringa Seixas estabeleceu por agnação, acompanhei ou compartilhei muitos desses momentos e das tensões que eles provocavam, na Ordem dos Advogados do Brasil, no DF, na composição da primeira Comissão de Direitos Humanos instalada depois da 8a. Conferência Nacional da OAB (1980); na Comissão Brasileira de Justiça e Paz da CNBB e na fundação da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (na continuidade da luta por dignidade, contra a tortura, a violação sistemática de direitos humanos, mas para inserir na agenda dos direitos fundamentais os direitos sociais, econômicos e culturais e o reconhecimento político do protesto e da reivindicação de movimentos sociais até então criminalizados pela aplicação da legislação de exceção em forma de lei de segurança nacional); no CEBRADE – Centro Brasil Democrático, em Brasília, na mobilização pela autonomia e a representação política do Distrito Federal, em conjunto com as mobilizações por eleições diretas no país, por anistia e por uma constituinte que permitisse a mediação política para um regime civil de enunciado democrático, valores que depois ressignificaria na própria experiência constituinte em seu trabalho de relatoria do capítulo do Distrito federal e da institucionalização de um ministério público, menos representação da Coroa e corporativa e mais defensor do povo e da cidadania.
Na costura desse grande tecido para a confecção do figurino de um novo país, o nosso Luiz alinhava o fio consistente de um cotidiano feito de dias, noites e madrugadas de escaramuças, de enfrentamentos, num movimento contínuo, diuturno, sem esmorecimento para resistir e avançar num campo minado, muitas vezes cruento, sempre em disputa entre a exceção e a luta por democracia. Ora, o mandado de segurança para assegurar o voto da representação estudantil no Conselho Universitário da UnB e começar a erodir a intervenção militar na universidade; ora, a carga nos processos do STM para poder copiá-los e formar matéria empírica para o projeto Brasil: Tortura Nunca Mais, à custa de logo o Tribunal, contra as prerrogativas da advocacia, interditar a retirada de autos do cartório, acessíveis apenas à consulta em balcão. Ou vamos encontrá-lo em meio à poeira da remoção forçada de sem-teto na ocupação da Quadra 110 Norte em Brasília, na linha de proteção às violações que seguem tais operações e a seguir na mobilização em busca de alternativas para assegurar moradia digna no espírito da Constituição que ajudou a elaborar e  da Declaração do Habitat que inscreveu a moradia no rol dos direitos humanos cogentes, e assim, contribuindo para as gestões que permitiram a esses cidadãos se instalarem, contra as políticas de repatriação, onde hoje se encontram no Distrito Federal, formando a comunidade da Vila Nova Esperança. Aqui, reproduzindo as mesmas atribuições de defesa de direitos, tal como em outro momento o fez com colegas da OAB-DF, para garantir os títulos históricos reivindicados pelo protagonismo da Associação Incansáveis Moradores de Ceilândia.
Os exemplos podem se desdobrar indefinidamente nessa remissão de testemunho. Já não é o caso, dado o protocolo da cerimônia de homenagem e as manifestações dos ilustres oradores e oradoras inscritos para as suas homenagens.
Aqui, me incumbe assinalar que a mais importante homenagem que se pode tributar a Luiz Carlos Sigmaringa Seixas é a que expresse o seu legado de homem público, de amigo leal, de companheiro afetuoso, de filho, irmão, pai, avô, perante a sua comunidade de afetos aqui presente ou representada. Um legado que o projeta para os tempos presentes, mais uma vez tempos sombrios, mas que trazem o alento de que enquanto existir compromisso de luta como Luiz travou, são tempos contados, que mais uma vez serão vencidos.
É nesse ponto que seu legado contribui para desvelar o que se proclama sob manto da “desburocratização,  eficiência e do combate à corrupção” estatal,  mas que alavanca uma investida  armada no País sob a forma de um golpe contra o Estado, contra a Constituição e a Democracia. Com ações de intuito reformista, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de seus enunciados, sob a ilusão de uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, o tremendo interesse de apropriação do sistema constitucional-jurídico, em atentado à democracia, num modo de tradução, sem nenhuma sutileza, do que se tem denominado Estado de Exceção, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas, gerando por sua vez um estado de coisas inconstitucional (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Estado democrático da direita. In BUENO, Roberto (org). Democracia: da crise à ruptura. São Paulo: Editora Max Limonad, 2017; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Resistência ao Golpe de 2016: Contra a reforma da Previdência. In RAMOS, Gustavo Teixeira et al. (coords.). O Golpe de 2016 e a Reforma da Previdência: narrativas de resistência. Bauru: Canal 6 (Projeto Editorial Praxis), 2017).
         Luiz Carlos Sigmaringa Seixas continua presente entre nós, ele e advogados como José Gerardo Grossi, tantas vezes juntos na mesma trincheira, na expressão do Gesto Nobre (Beau Geste) e da disponibilidade solidária para confrontar o arbítrio. Eles nos inspiram para a tarefa que a conjuntura propõe para aqueles que se comprometem com a causa democrática, porque a democracia é invenção como nos ensinou José Paulo Sepúlveda Pertence outra de nossas referências, felizmente ainda na linha de frente da luta democrática, porque a democracia é obra inconclusa, sempre inacabada.
Mas não é tarefa fácil. Hoje no Brasil, o cansaço e a decepção parecem também conduzir a um despertar de um protagonismo prestes a eclodir. Aos poucos vai se revelando um cancro institucional que se enquistou na tessitura democrática da política e contaminou a própria história do País. Uma cumplicidade nefasta, ardilosa, traiçoeira ampliou-se nessa tessitura numa metástase dilaceradora. Setores institucionais e do sistema de justiça engolfaram-se na necropolítica que produz a exceção. Gente que se apresenta aliada num arranjo semelhante a um partido, agora se revelam , não correligionários, mas cúmplices, sacrificam a ética funcional configurada como “filigrana jurídica” no descaminho da política e, em última análise, da Justiça.
Contra esse estado de coisas nos inspira a atuação de Luiz Carlos Sigmaringa Seixas. Em 2007 colhi dele, também, em longa entrevista que está publicada no Periódico Observatório da Constituição e da Democracia (Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, pp. 12-13), na qual percorrendo os caminhos de uma atuação em defesa dos direitos humanos, das liberdades públicas e dos perseguidos políticos, estudantes, sindicalistas, professores e ativistas,  durante os anos da ditadura instalada no Brasil com o golpe civil-militar de 1964, que seu agir, seu modo de ser político-profissional só pode ser o da  “prática da advocacia para a posição de confronto direto entre a civilidade e o arbítrio”.







[1] Professor Titular e ex-Reitor da UnB. Discurso proferido na Sessão Solene de Homenagem aos advogados Luiz Carlos Sigmaringa Seixas e José Gerardo Grossi, na CIamara dos Deputados, em 1/10/2019.

Nenhum comentário:

Postar um comentário