O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Carta do céu. 
 

Querido Professor José Geraldo, enfim, te envio minha carta, mas não é uma carta da China, da Rússia, do Egito, da Romênia, da Itália, da Grécia, da Espanha, ou mesmo da Holanda. É uma carta do caminho, é uma carta do céu - de algum lugar do céu entre China e Holanda; e eu tenho dois motivos para escrevê-la. 

Primeiro, é uma carta do céu porque mais bonito que chegar ao destino é entender e apreciar a travessia. É uma carta do céu porque eu gosto da incerteza sobre a chegada. Nesses nove meses, oito países e três continentes, o que eu descobri é que muito melhor que achar as respostas é fazer perguntas e deixar que elas nos guiem enquanto perambulamos por aí. Eu sinto que a imaginação e a curiosidade são muito mais estimulantes que esse conhecimento hegemônico que se considera pronto e acabado, eu gosto do conhecimento que é movimento, que é curiosidade e criatividade, parafraseando nosso Lyra Filho, eu gosto do conhecimento “que é, sendo”!

E o que poderia ser mais movimento e mais curioso que sentir essa imensidão de céu, olhar pro infinito e imaginar: Como será quando eu chegar? Que música tocará? Será música de carros acelerando ou passarinhos cantando? Haverá risadas altas e sorrisos grandes ou silêncio e sorrisos tímidos? Como dançarão? Dançarão com todo o balanço possível do corpo ou mexerão apenas o olhar e, talvez, timidamente os calcanhares? 

Quem cruzará meu caminho? Será tímida/o ou expansiva/o? Rude ou doce? Que roupas usará? Falaremos em mímica ou em língua falada? Quando eu precisar de ajuda, quanto tempo demorarei pra encontrar alguém? Quais histórias carregarão as pessoas que meu olhar cruzará? 

Como será a comida? Será servida em pratos? Comerei com a mão, com colheres, garfos ou palitos? A comida será apimentada, bem condimentada ou terá o sabor natural de cada alimento? 

Onde dormirei? Dormirei na palha dos cavalos, em uma cama confortável, em um trailer abandonado, em um barco atracado ou em um colchão inflável de um quarto emprestado? Haverá banheiro ou farei xixi no mato? Se houver vaso sanitário, será ocidental ou aprenderei a técnica chinesa de agachamento? 

Como me receberão? Serei bem vinda como uma “brown Brazilian PhD student” viajando sozinha? Quantos verei serem barrados nos controles policiais e de passaporte? Quantas vezes meus olhos encherão de lágrimas e, discretamente, os enxugarei ao ver sonhos de outras pessoas terminarem “por no llevar papel”? Quantas vezes nessas filas de “passport control” em silêncio cantarei com Manu Chao indignada “Argelino clandestino, Nigeriano clandestino, Boliviano clandestino, Mano negra ilegal”? 

Em segundo lugar, eu também escrevo uma carta do céu por pulsarem em mim histórias que me contaram de minha primeira infância e quero compartilhar. 

Contaram que o meu Vô Celso me deixava tagarelar sem fim enquanto lia jornal na sua poltrona, e balançava a cabeça positivamente quando eu terminava minhas longas histórias e perguntava: Né, Fô? Ele tinha um jogo que me fascinava porque tinha rainhas, reis e cavalos em um tabuleiro branco e preto; e ele dizia que meus olhos eram de jabuticaba, nada me divertia (e diverte) mais que pensar que podemos ter olhos de fruta.


Mas o mais importante de nossa relação era que ele tinha um balanço em seu jardim e a maior paciência do mundo pra me balançar a tarde toda. Um dia entrei correndo em sua casa e gritei: Fô! Fô! Fô Celso, vem me balançar! Todas/os estavam chorando, e eu corria pela casa procurando pelo meu avô, insistentemente. Então, minha mãe me levou ao balanço e me contou que o Vô Celso não morava mais na Casa do Balanço, ele tinha se mudado pro céu. 

Na semana seguinte, apareceram manchas na pele dos meus joelhos e cotovelos, manchas que me acompanharam por 14 anos. Foi minha primeira perda e meu corpo quis tatuá-la em todos os meus quatro membros. Quase um ano depois, minha mãe me contou que iríamos de avião visitar a família em Sergipe. E eu respondi: Já sei! A gente visita a família de Sergipe e no caminho, de avião, meu “Fô Celso” que mora no céu!  
  
Todas/os que me contam essa história a consideram graciosa! Mas, na realidade, me parece um pouco menos graciosa, mais longa e, talvez, mais pesada. Parece me que eu arrastei no chão, na árdua estrada da vida, essa e outras pesadas perdas até meus 20 e tantos anos, que foi quando subi em um avião pela segunda vez em minha vida. 
 
 

Em minha segunda visita ao céu, já na fase adulta, encontrei meu avô, minha mãe, minha grande amiga Danaise, e outros tantos queridos que hoje têm o céu como residência. Foi tão emocionante, eu chorei, ri, sorri, contei pra todo mundo do voo e até pedi (insistindo muito) pra tirar uma foto com o piloto, que, naquele dia, era meu herói. Definitivamente, fui a adulta mais criança que já encontrei em um avião.

Eu ainda não sabia, mas depois dessa segunda viagem de avião, minha vida mudaria, eu não cuidaria mais de crianças ricas, nem mais trabalharia em loja de roupas, eu seria advogada, logo mestra, doutoranda e professora. Tornar-se-iam possíveis e frequentes minhas visitas ao céu. 

E foi assim que, especialmente nesse último semestre, eu passei muitas horas no céu, da Holanda fui à China, à Rússia, ao Egito, à Romênia, à Grécia, à Itália e à Espanha, e ainda passearei mais um pouco pela imensidão do Oceano Atlântico afim de voltar à minha terra brasileira. 

Pra finalizar, quero te dizer, Professor, que eu gostaria muito de ter te escrito uma carta de cada um desses lugares, como havia prometido, mas eu não pude. Eu gostaria de ter escrito também uma carta sobre cada uma das incríveis histórias que ouvi de cada uma das amigas e amigos que fiz no Instituto Internacional de Ciências Sociais na Universidade de Roterdão onde eu estava (há mais de 150 nacionalidades entre as/os pós-graduandas/os e pesquisadoras/es), mas eu não pude, Professor. 

Sinto que havia tanto a ser visto, ouvido, observado e experimentado que minha cabeça não pôde fazer mais que perguntar e procurar as respostas, sinto que não tive tempo para pensar sobre cada uma delas e muito menos para descrevê-las com a devida sensibilidade que cada história merece. Hoje, eu sinto que toda uma vida tentando entender essa diversidade que conheci não me bastaria. 

Tudo que, agora, eu posso escrever é sobre o caminho adorável que liga tudo isso, sobre o céu, esse espaço que podemos visitar e matar as saudades nossos amores mais antigos, podemos nos encontrar com nossas histórias do passado, reencontrar nossos sonhos ainda não realizados e, inevitavelmente, é o lugar onde um dia encontraremos nosso destino. É no céu que visito minhas saudades, que encontro minhas dúvidas, faço minhas perguntas, me preparo para buscar as respostas e reafirmo minhas poucas certezas.

É desse lugar especial que te escrevo e sobre a travessia chamada vida e a diversidade possível de se ver, sentir e viver que te conto, Professor! 

Um grande abraço e muitas saudades. 
Até breve. 

Desde o céu, Ísis. 

(P.S.: Eu tenho anotações de cada um dos países, que vão virar carta, eu prometo! Mas agora elas precisam da ajuda “de um dos Deuses mais lindos: o Tempo.”)

Um comentário:

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