O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

domingo, 25 de agosto de 2019

A rua pode ser espaço de conquistas?[1]


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Sabrina Durigon Marques 


A novidade
Que tem no Brejo da Cruz
É a criançada
Se alimentar de luz
Alucinados
Meninos ficando azuis
E desencarnando
Lá no Brejo da Cruz
Eletrizados
Cruzam os céus do Brasil
Na rodoviária
Assumem formas mil
Uns vendem fumo
Tem uns que viram Jesus!
Mas há milhões desses seres
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde essa gente vem
Brejo da Cruz – Chico Buarque



Nesta semana ocorreram diversas atividades de resistência realizadas pela população em situação de rua. O dia19 de agosto foi escolhido como o Dia Nacional da População em Situação de Rua em razão do massacre ocorrido na Praça da Sé, em São Paulo, há quinze anos, que vitimou 15 pessoas que lá dormiam, deixando 7 mortos e 8 feridos.

Até o momento não houve responsabilização pelos crimes. Apesar da investigação ter identificado alguns responsáveis, apenas dois foram presos, mas por terem sido condenados pela morte da única testemunha que havia, Priscila, que também estava em situação de rua.

A morte é fato sempre presente na vida da população de rua. Seja a morte física, seja a morte social, nas palavras de Padre Júlio Lancellotti, a mistanásia, à qual sempre é submetida a população de rua.


O Diagnóstico. Um dos argumentos utilizados como obstáculo à elaboração de políticas públicas para a população em situação de rua é a dificuldade em se realizar um diagnóstico, identificar quem e quantas são essas pessoas, uma vez que o IBGE não dispõe de tal metodologia. Apontam dificuldade para encontrar as pessoas, além da restrição orçamentária do Instituto. De acordo com última pesquisa divulgada pelo IPEA em 2016, o Brasil tem mais de 100 mil pessoas em situação de rua.
Estudo feito pelo antigo Ministério do Desenvolvimento Social[2] estimou em 2009 que apenas 47% delas estejam inscritas no Cadastro Único e dessas, somente 11% recebam algum benefício, como aposentadoria, bolsa família, BPC, entre outros.

No Distrito Federal, não há dados precisos sobre o quantitativo da população em situação de rua, mas sabe-se que pelo menos 3 mil pessoas já passaram por algum atendimento, de acordo com dados da Secretaria de Trabalho e Desenvolvimento Social e Direitos Humanos – Sedestmidh, isso significa que o numero total é maior que esse.


Causas e Dificuldades. As causas que levam as pessoas a tal situação podem ser diversas, como problemas de relacionamentos e até rupturas familiares, doenças mentais, dependência química, desemprego entre outros.
Nas ruas a violência sofrida é cotidiana, retirada de cobertores, jatos de água fria pela manhã para limpeza das calçadas, spray de pimenta, e a sempre presente invisibilidade.
Essa violência, que perpassa pela ausência total de alteridade e compreensão do outro como pessoa dotada de dignidade humana, contribui para a ruptura de laços sociais e para a ausência de autoestima, dificultando tal mudança de status. Vislumbrar-se como sujeito de direitos possuidor de potência transformadora é combustível necessário para que as pessoas se coloquem em movimento.


Trabalho e moradia são centrais. As políticas públicas de moradia e emprego devem abarcar a população em situação de rua, precisam ser elaboradas com e para essas pessoas. As políticas não podem se limitar a apartar esse grupo, com medidas penais e assistenciais, mas devem trabalhar com elas e para elas.

O ex-prefeito de São Paulo, João Doria, na contramão desse pressuposto, durante a Operação Cidade Linda envelopou viadutos em que a população de rua morava para “protege-los”, e, como consequência, impedia que fossem vistos por quem passava pelas ruas e calçadas, a fim de que a cidade de São Paulo merecesse seu título de beleza.



Foto: Kleber Ribeiro/Arquivo pessoal e Will Soares/G1



A Política Nacional para População em Situação de Rua, estabelecida pelo Decreto n. 7.053, de 2009, traz em seu artigo 1º a importância da moradia para essa população enquanto que o artigo 7º prevê como objetivo da Política assegurar o acesso amplo à moradia. O artigo 8º, por sua vez, prevê a necessidade de articulação com programas de moradia popular promovidos pelos Governos Federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal.
A Relatoria Especial da ONU para moradia adequada[3] propõe enfoque tridimensional para esta questão: i) a ausência de moradia reflete carência absoluta do aspecto material de uma habitação enquanto local seguro; ii) a situação de rua como forma de discriminação sistêmica que reconhece que a privação de lar dá lugar à identidade social de grupo estigmatizado; iii) esses grupos são compostos por titulares de direitos resilientes na luta pela sobrevivência. Assim, como compreensão única dos sistemas que negam seus direitos, devem ser reconhecidos como agentes da transformação social para a realização do direito à moradia. Nos dizeres do professor José Geraldo de Souza Júnior, sujeitos aptos a “servir a um projeto de organização e de ampliação da capacidade popular de auto exercitar a sua participação como agente determinante ativo e soberano no encaminhamento de seus interesses e na direção de seu próprio destino.”[4]
Dentre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, traçados pela ONU, o ODS 11 trata de “Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”, enquanto a meta 11.1 prevê o compromisso de “Até 2030, garantir o acesso de todos à habitação segura, adequada e a preço acessível, e aos serviços básicos e urbanizar as favelas”.
No âmbito nacional é fundamental que se monitore como as gestões vêm trilhando caminhos para atingir tal meta.

Muitas políticas tratam a moradia para esse grupo como proposta transitória, e não como local permanente de segurança e conforto, como estabelecem os requisitos do Direito à Moradia adequada. Ousar pensar e criar pode contribuir para essa política. Portugal inovou com a Casa Primeiro de Lisboa, programa que garante moradia individual e permanente, com casas distribuídas pela cidade, evitando a guetização desse grupo, além do estímulo ao trabalho, e da possibilidade de contribuição com 30% de sua renda para pagamento da locação.

Conforme pesquisa realizada em 2015 pela UNB, 90% dos moradores de rua do Distrito Federal exercem atividades remuneradas, mesmo que informal, como vigiar carros ou coletar material reciclável. Tal dado é importante para mitigar os efeitos da estigmatização, do qual essa população é vítima.  O GDF publicou, em 2018, a lei n. 6.128, que reserva um percentual mínimo de vagas de trabalho em serviços e obras públicas para pessoas em situação de rua.

Brasília passa nesse momento por um debate sobre a destinação do Setor Comercial Sul, um dos locais onde a população de rua se concentra. Somado a isso, lá já ocorrem algumas iniciativas de geração de emprego local para esse grupo. É então uma boa oportunidade para pensar políticas de trabalho e moradia com e para essa população. Que não deixemos passar.


Sabrina Durigon Marques é professora universitária, mestra em Direito do Estado pela PUC/SP, conselheira regional do IBDU – Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e coorganizadora do Volume IX da Coleção Direito Achado na Rua – Introdução Crítica ao Direito Urbanístico.



[1] Texto escrito como base para palestra realizada na Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF, representando o Grupo Direito Achado na Rua.
[2] Rua. Aprendendo a Contar. Ministério do Desenvolvimento Social. Disponível em: <https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Livros/Rua_aprendendo_a_contar.pdf> acesso em 23 de agosto de 2019.

[3] Organização das Nações Unidas. Relatório da Relatora Especial sobre moradia adequada como componente do direito a um padrão de vida adequado à não discriminação nesse contexto. Dis[ponível em <https://terradedireitos.org.br/wp-content/uploads/2016/11/Relat%C3%B3rio_Popula%C3%A7%C3%A3o-em-situa%C3%A7%C3%A3o-de-rua.pdf>, acesso em 23 de agosto de 2019.
[4] SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Fundamentação teórica do Direito de Moradia. Revista  Direito e Avesso, Brasília, ano 1, n. 2, 1982.

domingo, 18 de agosto de 2019

O lançamento do Livro "Do Direito Autoconstruído ao Direito à Cidade", no Bairro de Saramandaia: uma história cheia de camadas


Por Adriana Nogueira Vieira Lima,
Professora da UEFS e Autora do livro;
Membro dos Grupos de Pesquisa "O Direito achado na Rua (UnB) e Lugar Comum (UFBA). 




O dia 03 de agosto de 2019 começou cedo, com o carro de som percorrendo as ruas, vielas e becos de Saramandaia, convidando os moradores para o lançamento do Livro. A Escola Marisa Baqueiro Costa, primeiro equipamento público do Bairro, conquistado através luta da Associação Beneficente das Senhoras de Saramandaia, foi escolhido para sediar o evento.




Ao longo do dia, esse espaço foi sendo cuidadosamente transformado em lugar de festa e partilha do comum. Arranjos de  flores, toalhas coloridas, equipamento de som, café, suco, frutas e bolos compunham a mística, cuidadosamente preparada pela Diretora da Escola e pela família de Sr. Armandio, grande liderança do Bairro, que faleceu este ano e cujas falas compõem as narrativas que conferem vida à obra lançada.

Os convidados foram chegando aos poucos. Alguns mais desconfiados, outros mais à vontade. A tecnologia permitiu que os ausentes se tornassem presentes, "através de espírito e coração", como afirmou irmã Paula, no vídeo enviado a partir do Mosteiro de Santa Sé do Sul. Para ela, o Livro serviu como um dispositivo de memória que lhe fez lembrar "a  garra e a coragem dos moradores na luta para a construção do Bairro, reivindicação de direitos e construção da cidadania".

Sonho, recordação, vivência compartilhada, luta e visibilidade foram as palavras acionadas pelos presentes (professoras, agentes de saúde, diretora do posto médico, artistas do bairro, moradores, comerciantes,  representantes de instituições atuantes no  Bairro  - Associação de Moradores de Saramandaia, Grupo Arte Consciente,  Balanço das Latas Brasil, Conselho de Moradores, Liga Esportiva de Futebol, Paróquias, Igrejas Evangélicas, Batista, etc.) para fazer referência à obra lançada.


O evento seguiu marcado por reencontros entre três gerações - uma condensação de tempos em um pequeno espaço de sala de aula. O lançamento do Livro comportava-se com pretexto para produção de novas narrativas, e a obra se confundia com a realidade. As falas orgulhosas em transformar "lama em cidade", tecidas pelas lideranças da primeira geração, eram enlaçadas  por repertórios discursivos lançados pelos jovens presentes, que transversalizaram a conquista do território pelas dimensões de gênero e raça, projetando novos desejos e aspirações.


Os discursos foram atravessados pela arte, em forma de poesia e canções de autoria dos artistas do Bairro, e também por homenagens à autora, à Diretora da Escola Marisa Baqueiro, professora Joseana Rocha, e ao cinegrafista Lúcio Lima, produtor do documentário Retalho: a memória de Saramandaia.


O último comentário sobre o Livro não foi feito através de palavras, mas pela entrega de uma tela grafitada pelo artista plástico Tito Lama. Neste momento, em que o país está marcado pelo ódio tóxico que se infiltra no nosso cotidiano, a arte subverte, materializando a luta pela moradia em uma tela que transpira oxigênio e emoção terna.





Assim, o Livro, resultado de uma tese de doutorado defendida na Universidade Federal da Bahia, que busca analisar a produção e (des) construção dos direitos urbanos em suas diversas escalas,  sob orientação da professora Ana Fernandes, comporta-se como obra viva e utopia compartilhada, que rompe os muros da academia e é reapropriada pelos "sujeitos coletivos de direito", no dizer do professor José Geraldo Sousa Júnior, fazendo crer que vale a pena produzir uma ciência militante e afetada pelo ser, fazer e saber, como nos propõe o jurista Roberto Lyra Filho.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Nota de Repúdio à Censura da CAPES e de Solidariedade à EMAE/UFSC

Brasília, 13 de agosto de 2019. 

O grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua, da Universidade de Brasília, com 30 anos de atuação destacada na área da pesquisa jurídica, e um dos mais antigos grupos do CNPQ, vem a público manifestar repúdio à violação da pluralidade e liberdade de cátedra promovida pela CAPES, por ocasião da negativa de fomento ao “Congresso Internacional Constitucionalismo e Democracia”, bem como externar sua solidariedade ao organizador do evento, o Núcleo de Estudos Avançados em Meio ambiente e Economia no Direito Internacional (EMAE), da Universidade de Federal de Santa Catarina.

Os fundamentos para a negativa de financiamento são preocupantes e refletem o clima de perseguição e censura vivenciado pelas universidades no país: “organizadores e palestrantes de elevada relevância para comunidade de militância política na área do direito. O aspecto negativo é a necessidade de recorrer aos cofres públicos para realização de congresso que não apenas voltado à construção científica, mas também à crítica política. A capes não pode destinar verbas públicas para eventos, publicações ou formações de cunho político partidário”.

O parecer da CAPES, ao mesmo tempo em que nega o fomento, contraditoriamente ressalta a qualidade técnica da proposta e de seus organizadores, qualidade essa inerente a um evento consolidado e que caminha para 9a Edição.

Ao agir assim, a instituição acaba por reforçar ainda mais a natureza discriminatória, personalizada, imoral e ilegal da decisão em face do artigo 37 da Constituição Federal. Resta claro, portanto, que, a pretexto de não destinar verbas para eventos supostamente “de cunho político partidário”, pretende em verdade sufocar qualquer pensamento que não seja o chancelado pelo grupo político que ocupa no momento o Poder Executivo, tentando assim suprimir a autonomia didática e acadêmica das universidades públicas.

Não podemos nos calar diante de tal cenário e repudiamos toda e qualquer forma de censura ao trabalho desenvolvido por profissionais das universidades públicas brasileiras que possuem reconhecimento internacional pelo trabalho de excelência desenvolvido no Brasil.

Pesquisadores e pesquisadoras de O Direito Achado na Rua 

domingo, 4 de agosto de 2019

A lei e os dramas humanos:angústias de um verdadeiro magistrado:J.B. Herkenhoff

A lei e os dramas humanos:angústias de um verdadeiro magistrado:J.B. Herkenhoff

02/08/2019
João Batista Herkenhoff do Espírito Santo é um conhecido magistrado, grande defensor dos direitos humanos, especialmente em tempos sombrios de nossa história e escritor nos mostra aqui com sinceridade as angústias de um magistrado que sabe distinguir o que é a lei, o que é o direito e o que é a justiça. E mostra as angústias de um juiz quando deve decidir, especialmente, quando se depara com situações complexas, sabendo dos dramas humanos aí subjacentes. Ele se mostra um pensador que vai além do estabelecido e sabe interpretar o espírito do direito e os limites da lei em função de realizar o bem maior que é a justiça verdadeira. Em tempos como os nossos, quando cada um se tornou mais ou menos um advogado de uma ou de outra causa política, especialmente, quando vemos que autoridades se sobrepõe à própria ética jurídica e decidem por “convicções” ou passam por cima do pacto social estabelecido por toda uma sociedade que se expressa pela constituição.Então estamos a um passo da anomia e do puro arbítrio. Este texto nos revela o interior de um juiz sério e filosofante que toma absolutamente a sério sua função/missão não sem as angústias a que estão submetidos todos os seres humanos conscientes e responsáveis, também os juizes. Agradecemos a Herkenhoff por seus livros e pela sinceridade deste testemunho.  Lboff
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Em outros tempos o cidadão comum supunha que o território do Direito e da Justiça fosse cercado por um muro. Só os iniciados – os que tinham consentimento dos potentados – poderiam atravessar a muralha. O avanço da cidadania, a partir da Constituição de 1988, principalmente em razão do Movimento Constituinte que precedeu a votação da Constituição, modificou substancialmente este panorama.
O mundo do Direito não é apenas o mundo dos advogados e outros profissionais da seara jurídica. Todas as pessoas, de alguma forma, acabam envolvidas nisto que poderíamos chamar de “universo jurídico”. Daí a legitimidade da participação do povo nessa esfera da vida social.
Cidadãos ou profissionais, todos estamos dentro dessa nau. De minha parte foi como profissional que fiz a viagem. Comecei como advogado, integrei depois o Ministério Público. Após cumprir o rito de passagem, vim a ser Juiz de Direito porque a magistratura era mesmo o meu destino. Eu seria juiz no Espírito Santo, como juiz foi, em Pernambuco, meu avô – Pedro Carneiro Estellita Lins. Esse avô, estudioso e doce, exerceu tamanho fascínio sobre mim que determinou a escolha profissional que fiz.
Meu caminho, nas sendas do Direito, foi marcado de sofrimento em razão de conflitos íntimos.
Sempre aprendi que o juiz está submetido à lei. E continuo seguro de que este princípio é verdadeiro. Abolíssemos a lei como limitação do poder e estaria instaurado o regime do arbítrio.
Não obstante a aceitação de que o “regime de legalidade” é uma conquista do Direito e da Cultura, esta premissa não deve conduzir à conclusão de que os juízes devam devotar à lei um culto idólatra.
Uma coisa é a lei abstrata e geral. Outra coisa é o caso concreto, dentro do qual se situa a condição humana.
À face do caso concreto a difícil missão do juiz é trabalhar com a lei para que prevaleça a Justiça.
Não foram apenas os livros que me ensinaram esta lição, mas também a vida, a dramaticidade de muitas situações.
Há uma hierarquia de valores a ser observada.
Não é num passe de mágica que se faz a travessia da lei ao Direito. Muito pelo contrário, o caminho é difícil. Exige critério, sensibilidade e ampla cultura geral ao lado da cultura simplesmente jurídica.
O jurista não lida com pedras de um xadrez, mas com pessoas, dramas e angústias humanas. Não é através do manejo dos silogismos que se desvenda o Direito, tantas vezes escondido nas roupagens da lei. O olhar do verdadeiro jurista vai muito além dos silogismos.
Da mesma forma que os cidadãos em geral não podem fechar os olhos para as coisas do Direito, o estudioso do Direito não pode limitar-se ao estreito limite das questões jurídicas. O jurista que só conhece Direito acaba por ter do próprio Direito uma visão defeituosa e fragmentada.
Estamos num mundo de intercâmbio, diálogo, debate.
Se quisermos servir ao bem comum, contribuir com o nosso saber para o avanço da sociedade, impõe-se que abramos nosso espírito a uma curiosidade variada e universal.
João Baptista Herkenhoff Magistrado aposentado (ES) e escritor.
E-mail: jbpherkenhoff@gmail.com
Homepage: http://www.palestrantededireito.com.br<http://www.palestrantededireito.com.br/&gt;

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Carta do céu. 
 

Querido Professor José Geraldo, enfim, te envio minha carta, mas não é uma carta da China, da Rússia, do Egito, da Romênia, da Itália, da Grécia, da Espanha, ou mesmo da Holanda. É uma carta do caminho, é uma carta do céu - de algum lugar do céu entre China e Holanda; e eu tenho dois motivos para escrevê-la. 

Primeiro, é uma carta do céu porque mais bonito que chegar ao destino é entender e apreciar a travessia. É uma carta do céu porque eu gosto da incerteza sobre a chegada. Nesses nove meses, oito países e três continentes, o que eu descobri é que muito melhor que achar as respostas é fazer perguntas e deixar que elas nos guiem enquanto perambulamos por aí. Eu sinto que a imaginação e a curiosidade são muito mais estimulantes que esse conhecimento hegemônico que se considera pronto e acabado, eu gosto do conhecimento que é movimento, que é curiosidade e criatividade, parafraseando nosso Lyra Filho, eu gosto do conhecimento “que é, sendo”!

E o que poderia ser mais movimento e mais curioso que sentir essa imensidão de céu, olhar pro infinito e imaginar: Como será quando eu chegar? Que música tocará? Será música de carros acelerando ou passarinhos cantando? Haverá risadas altas e sorrisos grandes ou silêncio e sorrisos tímidos? Como dançarão? Dançarão com todo o balanço possível do corpo ou mexerão apenas o olhar e, talvez, timidamente os calcanhares? 

Quem cruzará meu caminho? Será tímida/o ou expansiva/o? Rude ou doce? Que roupas usará? Falaremos em mímica ou em língua falada? Quando eu precisar de ajuda, quanto tempo demorarei pra encontrar alguém? Quais histórias carregarão as pessoas que meu olhar cruzará? 

Como será a comida? Será servida em pratos? Comerei com a mão, com colheres, garfos ou palitos? A comida será apimentada, bem condimentada ou terá o sabor natural de cada alimento? 

Onde dormirei? Dormirei na palha dos cavalos, em uma cama confortável, em um trailer abandonado, em um barco atracado ou em um colchão inflável de um quarto emprestado? Haverá banheiro ou farei xixi no mato? Se houver vaso sanitário, será ocidental ou aprenderei a técnica chinesa de agachamento? 

Como me receberão? Serei bem vinda como uma “brown Brazilian PhD student” viajando sozinha? Quantos verei serem barrados nos controles policiais e de passaporte? Quantas vezes meus olhos encherão de lágrimas e, discretamente, os enxugarei ao ver sonhos de outras pessoas terminarem “por no llevar papel”? Quantas vezes nessas filas de “passport control” em silêncio cantarei com Manu Chao indignada “Argelino clandestino, Nigeriano clandestino, Boliviano clandestino, Mano negra ilegal”? 

Em segundo lugar, eu também escrevo uma carta do céu por pulsarem em mim histórias que me contaram de minha primeira infância e quero compartilhar. 

Contaram que o meu Vô Celso me deixava tagarelar sem fim enquanto lia jornal na sua poltrona, e balançava a cabeça positivamente quando eu terminava minhas longas histórias e perguntava: Né, Fô? Ele tinha um jogo que me fascinava porque tinha rainhas, reis e cavalos em um tabuleiro branco e preto; e ele dizia que meus olhos eram de jabuticaba, nada me divertia (e diverte) mais que pensar que podemos ter olhos de fruta.


Mas o mais importante de nossa relação era que ele tinha um balanço em seu jardim e a maior paciência do mundo pra me balançar a tarde toda. Um dia entrei correndo em sua casa e gritei: Fô! Fô! Fô Celso, vem me balançar! Todas/os estavam chorando, e eu corria pela casa procurando pelo meu avô, insistentemente. Então, minha mãe me levou ao balanço e me contou que o Vô Celso não morava mais na Casa do Balanço, ele tinha se mudado pro céu. 

Na semana seguinte, apareceram manchas na pele dos meus joelhos e cotovelos, manchas que me acompanharam por 14 anos. Foi minha primeira perda e meu corpo quis tatuá-la em todos os meus quatro membros. Quase um ano depois, minha mãe me contou que iríamos de avião visitar a família em Sergipe. E eu respondi: Já sei! A gente visita a família de Sergipe e no caminho, de avião, meu “Fô Celso” que mora no céu!  
  
Todas/os que me contam essa história a consideram graciosa! Mas, na realidade, me parece um pouco menos graciosa, mais longa e, talvez, mais pesada. Parece me que eu arrastei no chão, na árdua estrada da vida, essa e outras pesadas perdas até meus 20 e tantos anos, que foi quando subi em um avião pela segunda vez em minha vida. 
 
 

Em minha segunda visita ao céu, já na fase adulta, encontrei meu avô, minha mãe, minha grande amiga Danaise, e outros tantos queridos que hoje têm o céu como residência. Foi tão emocionante, eu chorei, ri, sorri, contei pra todo mundo do voo e até pedi (insistindo muito) pra tirar uma foto com o piloto, que, naquele dia, era meu herói. Definitivamente, fui a adulta mais criança que já encontrei em um avião.

Eu ainda não sabia, mas depois dessa segunda viagem de avião, minha vida mudaria, eu não cuidaria mais de crianças ricas, nem mais trabalharia em loja de roupas, eu seria advogada, logo mestra, doutoranda e professora. Tornar-se-iam possíveis e frequentes minhas visitas ao céu. 

E foi assim que, especialmente nesse último semestre, eu passei muitas horas no céu, da Holanda fui à China, à Rússia, ao Egito, à Romênia, à Grécia, à Itália e à Espanha, e ainda passearei mais um pouco pela imensidão do Oceano Atlântico afim de voltar à minha terra brasileira. 

Pra finalizar, quero te dizer, Professor, que eu gostaria muito de ter te escrito uma carta de cada um desses lugares, como havia prometido, mas eu não pude. Eu gostaria de ter escrito também uma carta sobre cada uma das incríveis histórias que ouvi de cada uma das amigas e amigos que fiz no Instituto Internacional de Ciências Sociais na Universidade de Roterdão onde eu estava (há mais de 150 nacionalidades entre as/os pós-graduandas/os e pesquisadoras/es), mas eu não pude, Professor. 

Sinto que havia tanto a ser visto, ouvido, observado e experimentado que minha cabeça não pôde fazer mais que perguntar e procurar as respostas, sinto que não tive tempo para pensar sobre cada uma delas e muito menos para descrevê-las com a devida sensibilidade que cada história merece. Hoje, eu sinto que toda uma vida tentando entender essa diversidade que conheci não me bastaria. 

Tudo que, agora, eu posso escrever é sobre o caminho adorável que liga tudo isso, sobre o céu, esse espaço que podemos visitar e matar as saudades nossos amores mais antigos, podemos nos encontrar com nossas histórias do passado, reencontrar nossos sonhos ainda não realizados e, inevitavelmente, é o lugar onde um dia encontraremos nosso destino. É no céu que visito minhas saudades, que encontro minhas dúvidas, faço minhas perguntas, me preparo para buscar as respostas e reafirmo minhas poucas certezas.

É desse lugar especial que te escrevo e sobre a travessia chamada vida e a diversidade possível de se ver, sentir e viver que te conto, Professor! 

Um grande abraço e muitas saudades. 
Até breve. 

Desde o céu, Ísis. 

(P.S.: Eu tenho anotações de cada um dos países, que vão virar carta, eu prometo! Mas agora elas precisam da ajuda “de um dos Deuses mais lindos: o Tempo.”)