Future-se é o fature-se que irá canibalizar as
universidades, alerta ex-reitor da UnB
Professor José Geraldo aponta dois perigos no projeto que
implantará uma “visão utilitária que negligencia aquilo que não tem aplicação
rentável imediata”
Por: João Negrão, para o Muvuca Popular
De Brasília (Agência RBC News)
De Brasília (Agência RBC News)
O descompromisso do governo com o financiamento das
universidades, que se tornarão reféns dos interesses do mercado, são os dois
perigos que o sistema de ensino superior público no Brasil sofrerá com o
projeto Future-se anunciado esta semana pelo Ministério da Educação. Esta
avaliação é do professor José Geraldo de Sousa Júnior, ex-reitor da
Universidade de Brasília (UnB), da qual também foi diretor da Faculdade de
Direito, onde ainda leciona e coordena o grupo de estudos Direito Achado na
Rua. Ele analisou para o Muvuca Popular o projeto que já vem sendo apelidado de
“Fature-se”, pois em essência direciona as universidades públicas brasileira
para a privatização.
“Eu penso que o projeto traz dois perigos. O primeiro é o
governo se descomprometer com a sua obrigação que é financiar o sistema e
permitir que o conhecimento ele em si seja um valor enquanto base para a
felicidade humana. O segundo é que, jogando o financiamento para o sistema
privado, as injunções de sustentabilidade acabem tornando as universidades
reféns das pesquisas que interessem ao mercado como rentabilidade”, prevê o
professor, que é um dos mais renomados jurista do Brasil.
Segundo eles, o projeto “vai desenvolver um sistema
canibalizador dentro das instituições, a quebra da solidariedade e do princípio
de cooperação que existe nos grupos de pesquisa. Todo mundo que se envolve em
uma pesquisa tem o reconhecimento de que participou da criação daquele
conhecimento”. E acrescenta que o projeto “vai hierarquizar o sistema de
conhecimento na medida que a visão utilitária negligencia aquilo que não tem
aplicação rentável imediata. [O projeto] Não trabalha com o longo prazo. O
longo prazo de um sistema de bolsas, que é o que preside essa proposta, são os
próximos cinco minutos. E a universidade é milenar”.
O professor alerta que o Future-se quer substituir a
responsabilidade governamental pelo agente de mercado. “O projeto quer
transformar as instituições universitárias, que pela luta história, pelas
conquistas da própria Constituição brasileira, foram definidas no nosso sistema
político como bens sociais, em bens públicos, bens que estão fora do sistema de
mercado. E como você disse bem, no que está presente nesse projeto, se cumpre
uma agenda ultraneoliberal, que acaba por realizar dois objetivos básicos: tudo
é mercadorizável, até a vida, e tudo é privatizável. Quer dizer, tudo tem que
sair da condição de instrumento para realização do bem comum, para se tornar
insumo de acumulação de interesse privado”, pontua.
Bem público
O ex-reitor lembra que na Constituição brasileira, dois
fundamentos são configurados com esse sentido de bem social, que são exatamente
a Educação e a Saúde. “E esses dois fundamentos são os que estão sob o maior
ataque desse modelo ultraneoliberal de acumulação possessiva, egoísta,
financeirizável, que agora quer chegar num campo que estava mais protegido para
a sua ação de investimento, que são a Saúde e a Educação”, observa. “Não por
acaso, isso também se faz em plano global. Há um cabo de força entre a OMC,
Organização Mundial do Comércio, que sempre quis trazer Saúde e Educação para a
lista de serviços acessíveis ao mercado. Todos nos recordamos que na rodada de
gestão desses valores em Doha, em 2001, foi exatamente Educação e Saúde que vieram
na agenda da OMC para este objetivo: colocar à disposição do mercado um nicho
ainda não alcançado”, recorda.
“Só na Educação, em dados de 2003, representavam mais de
53 bilhões de dólares disponíveis para a ganância. Eles querem abocanhar esse
mercado. No caso do Brasil, pelo projeto de sociedade democrática e popular, se
mantinha como um bem público, um bem social não acessível ao mercado, salvo
quando o mercado, como iniciativa privada, realize seus fundamentos, porém
respeitando esses valores”, atenta ele.
O professor historiou que por conta do entendimento de
que a Educação e a Saúde são bens sociais, houve no Brasil “dois movimentos
formidáveis” de universalização. “Na Saúde o SUS, com cobertura universal, com
atendimento a todo aquele que reside no território do país. Na Educação, com a
expansão e reestruturação do sistema, com a universalização das vagas do
sistema básico e com o acesso ampliado ao ensino superior pela ampliação de
vagas públicas, pelo sistema de financiamentos das vagas ociosas do sistema
privado, com renúncia fiscal, e pelas ações afirmativas, sobretudo, o sistema
de cotas indígenas e raciais”, certifica.
Desmantelamento
O professor aponta que investimento público em Saúde e
Educação como valores estratégicos para o desenvolvimento autônomo, soberano,
do país, permitiu uma expansão sem precedentes do sistema em todos os planos,
inclusive no plano patrimonial. “Os fundamentos ultraneoliberais querem
transformar tudo isso em insumo de acumulação, da capitalização, e a palavra de
ordem é privatizar, retirar do estado tudo que represente salvaguarda
patrimonial, imobiliária, de investimentos, que no caso do Brasil inclusive
permitiu que as agências de desenvolvimento importantes mantivessem esse
equilíbrio em benefício da população, bancos públicos, bancos sociais, bancos
de investimentos, que garantiram a manutenção desses sistemas, inclusive a
Segurança”, ilustra.
Após identificar que os três fatores básicos que ligam o
social ao mercado e ao estado são Educação, Saúde e Segurança, o professor José
Geraldo adverte: “E tudo agora é privatizável e gente assiste, por outro lado,
o desmantelamento do sistema de financiamento que permitiria manter essas
condições em benefício do povo. Lembre-se que quando se descobriu o pré-sal,
seus recursos eram para Saúde, Educação e Segurança. E agora entregaram o
pré-sal. [E agora] Se diz ‘vamos salvar o sistema, modernizando o sistema e
transformando ele em um empreendimento’”.
A verdade, asseverou ele, é que vão lucrar com os insumos
desse sistema, mas vão matar a concepção de valor social que a Educação, a
Saúde e a Segurança têm. “Com o Future-se tudo será afetado. Veja que não é
porque você não tenha estratégias como a que estão contidas no projeto. A
rigor, tudo que o projeto está indicando de algum modo já se pratica nas
universidades. Por exemplo, se entrar num campus universitário nós vamos ver um
espaço com instalação de parcerias público-privadas que cooperam para
desenvolvimento e inovação científica e tecnológica, incluindo as tecnologias
sociais. Há um conjunto de contratos em execução que essas cooperações estão
estabelecidas do ponto de vista da relação entre as universidades públicas e
agentes do sistema econômico”, pondera.
“Então, não é propriamente uma novidade. No contexto de
concepção de uma universidade pública, essas parcerias e esses contratos que
fazem do benefício do bem social protegido que é a Educação um valor
estratégico para o desenvolvimento do país. As pesquisas se orientam a partir
da definição da universidade quanto ao seu fundamento e a suas hierarquias; os
contratos visam a sustentar estágios, atividades de aperfeiçoamento, produção
de bens que rendam royalties, patentes, mas que têm um significado para a
qualidade de vida e o bem-estar humano”, avalia.
Professores ricos?
Para o ex-reitor da UnB, o que o projeto Future-se quer é
transformar inverter tudo isso, se valer da estrutura das universidades no
interesse dos objetivos de mercado. “Fica definido é que as parcerias vão fazer
a definição das prioridades e dos objetivos de estudo. Quando isso acontece, o
que está em causa é retirar a responsabilidade do governo cumprir a vinculação
orçamentária em torno da aplicação de verbas públicas para manutenção e
funcionamento das universidades e deixar que esse sistema privado opere este
financiamento”, denuncia.
“Então as universidades ficarão reféns desse sistema e o
próprio secretário de Ensino Superior, quando apresentou a proposta disse que o
que ela mais caracteriza é a possibilidade de que agora os professores possam
ficar ricos. Por isso é que estão se dizendo que invés de ‘Future-se’ é
‘fature-se’, porque futuro não haverá, porque a instituição pública vai
desaparecer. E com ela [desaparecerá também] a pesquisa livre e descomprometida
do utilitarismo, que permite que a gente desenvolva arte, desenvolva processos
criativos, não aplicáveis utilitariamente, mas que são importantes para o
desenvolvimento das sociedades”, volta a advertir.
Confira abaixo o vídeo da entrevista com o professor José Geraldo:
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