O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

sexta-feira, 26 de abril de 2019




Segunda-feira, 22 de abril de 2019


As condições do Hospital Psiquiátrico foram consideradas “péssimas” na última avaliação do governo, segundo os critérios mínimos das diretrizes nacionais de saúde mental
Por Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania da Universidade Federal da Paraíba (LouCid/UFPB)

                                                              Fachada do Instituto de Psiquiatria da Paraíba (IPP)
Mais um hospital psiquiátrico é fechado no Brasil: o Instituto de Psiquiatria da Paraíba (IPP). Esta notícia foi dada numa reunião realizada no dia 16 de abril de 2019 pela Coordenação Estadual de Saúde Mental da Secretaria de Saúde da Paraíba.
O IPP passou por uma inspeção do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (PNASH) 2006/2008, obtendo a pontuação 56,76%, considerada “péssima/ruim” de acordo com os critérios mínimos estabelecidos pelo referido programa do governo federal. Nessas essas inspeções, o IPP foi identificado enquanto local com condições insalubres de higiene e responsável por maus tratos e torturas aos pacientes
Conforme informado, após o descredenciamento dos leitos do IPP do Sistema Único de Saúde (SUS), vários pacientes receberam alta, inclusive os chamados “moradores” (pessoas que ali estavam internadas há anos e que perderam os vínculos familiares, dentre outras situações), sendo que os últimos foram retirados da instituição no dia 3 de abril de 2019. Alguns deles foram realocados para o Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira (CPJM), hospital psiquiátrico sob a gestão da referida Secretaria de Saúde.
Para o Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania da Universidade Federal da Paraíba (LouCid/UFPB), o fechamento definitivo desses leitos é uma importante medida, que está em conformidade com os princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira e com as disposições da Constituição Federal, da Lei federal nº 10.216/2001 e da Lei estadual nº 7.639/2004″
“Tendo em vista que tal legislação proíbe a internação de pessoas em sofrimento mental em instituições com características asilares, o fechamento do IPP significa a garantia dos direitos humanos dessas pessoas, as quais merecem atenção e cuidado em liberdade, através dos diversos serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial no estado da Paraíba”, destacou o LouCid/UFPB.
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Tortura, insalubridade e maus tratos

O IPP passou por uma inspeção do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (PNASH) 2006/2008, obtendo a pontuação 56,76%, considerada “péssima/ruim” de acordo com os critérios mínimos estabelecidos pelo referido programa do governo federal, tendo um prazo de 90 dias para readequação às normas de assistência psiquiátrica.
Porém, a instituição deixou o prazo transcorrer sem adotar as devidas providências, até que em 15 de março de 2018, foi descredenciada do SUS pela Secretaria de Saúde de João Pessoa, atendendo à recomendação do Ministério Público Federal (MPF).
Tal procedimento foi baseado nos relatórios da vistoria conjunta realizada no ano anterior pelos Conselhos Regionais de Psicologia, Medicina, Enfermagem e de Serviço Social da Paraíba, Coordenação de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde da Paraíba, Agência Estadual de Vigilância Sanitária e Secretaria Municipal de Saúde de João Pessoa, além de uma vistoria pelo próprio MPF.
Na inspeção realizada em 2017, consta que o local era sujo e fétido, não havia higiene nos refeitórios e banheiros, o chão estava sempre molhado e sujo, havia infiltrações e goteiras no telhado. Além disso, os pacientes sofriam torturas e maus tratos, relatados em detalhes por egressos do IPP que, em meio às crises mais acentuadas, eram arrastados até um local que chamavam de “Coréia”, uma ala em que os pacientes com problemas psiquiátricos mais graves eram mantidos em condições de degradação humana.
Após essas inspeções, o IPP foi identificado enquanto local com condições insalubres de higiene e responsável por maus tratos aos pacientes, indo na contramão da Política Nacional de Saúde Mental e de toda literatura produzida sobre o cuidado em saúde mental. As condições em que viviam essas pessoas constituíam graves violações aos seus direitos, amparados pela Lei nº 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais.

Vitória da luta antimanicomial

Ainda assim, o IPP recorreu ao Judiciário estadual para reverter o descredenciamento, obtendo uma medida liminar parcial da 6ª Vara da Fazenda Pública da Justiça Estadual para manutenção dos custos de internação dos pacientes que estavam internados. A ação foi remetida à Justiça Federal, após atuação do MPF, uma vez que o ato que indicou o descredenciamento do IPP ocorreu a partir de avaliação coordenada pelo Ministério da Saúde, logo, esfera federal.
Ao mesmo tempo, destaca-se a atuação da sociedade civil organizada, através de movimentos e coletivos antimanicomiais, como grupos de usuários, familiares e trabalhadores da saúde mental e o LouCid/UFPB, que pautaram o tema junto às diversas esferas da sociedade, como os órgãos de comunicação e entidades de defesa dos direitos humanos, a exemplo da Defensoria Pública da União, do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura e da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – seccional da Paraíba, bem como junto à Câmara Municipal de João Pessoa, que promoveu uma audiência pública no dia 9 de maio de 2018 com ampla participação social, na qual foi debatido o descredenciamento do IPP.
O não financiamento público de leitos em hospitais psiquiátricos e o fechamento de uma instituição total, de caráter asilar, e que desrespeita e retira direitos humanos de pessoas em situação de sofrimento mental, é uma vitória de um projeto de saúde mental pública e humanizada, fruto da Reforma Psiquiátrica baseada na luta antimanicomial e em diálogo com os diversos segmentos e atores sociais desse campo.
Em tempos de retrocessos infindáveis na conjuntura política atual do Brasil, com efeitos diretos nas políticas de saúde, é importante ressaltar vitórias como esta, que concretiza e dá seguimento à luta por uma sociedade sem manicômios, na qual as pessoas em sofrimento mental sejam tratadas com respeito, dignidade e liberdade.

Fontes:
[1] PARAÍBA. Secretaria de Estado da Saúde. Coordenação Estadual de Saúde Mental. Memória da Reunião do Grupo Condutor realizada em 16 de abril de 2019.
[5] <https://www.youtube.com/watch?v=zQKvEBCMZlM&t=153s>. Acesso em: 18 abr. 2019.


* Matéria publicada originalmente no Portal Justificando: <http://www.justificando.com/2019/04/22/hospital-psiquiatrico-na-paraiba-e-fechado-apos-constatacoes-de-tortura-e-maus-tratos-a-pacientes/>. Acesso em: 25 de abril de 2019.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Assentamentos Rurais: Qual a melhor opção para a Agricultura Familiar? A expedição do CDRU ou o TD? 


    Os assentamentos regularizados por um TD podem ser comprados novamente pelos grandes proprietários de terras nacionais, e geralmente a preços irrisórios

Por Sabrina Durigon Marques e Tonico Lula Marques

As recentes alterações na legislação agrária promovidas pela Medida Provisória nº 759, de 22/12/2016 que se converteu na Lei nº 13.465, de 11/07/2017, considerou consolidados os projetos de assentamentos que atingiram o prazo de quinze anos de sua implantação, e os assentamentos que, em 1o de junho de 2017, contaram com quinze anos ou mais de criação. Esses assentamentos deverão ser regularizados em até três anos. O documento a ser escolhido pelos assentados nessa regularização é a questão. A Concessão de Direito Real de Uso – CDRU ou o Título de Domínio – TD? 
CDRU é uma modalidade de documento de uso, sob a forma de contrato, que confere direitos reais ao concessionário-produtor assentado como a transferência do lote por ato inter vivos, ou por sucessão legítima ou testamentária. Após o cumprimento das cláusulas resolutivas, o produtor precisa de uma anuência do Incra para negociar a terra e suas benfeitorias. Ou seja, a CDRU permite a transferência condicionada do lote. Garante, ainda, que o produtor pode transferir a sua terra para os seus herdeiros. 
TD é o instrumento que transfere o imóvel rural ao beneficiário da reforma agrária em caráter definitivo. Cumpridas as cláusulas resolutivas, o TD permite a venda incondicional da terra e benfeitorias para qualquer interessado sem a anuência do Incra.
A análise de um breve histórico da territorialização do país, de seu descobrimento aos dias de hoje, permite algumas interpretações. A interpretação escolhida aqui foi a que defende a manutenção e ampliação da agricultura familiar no modelo de desenvolvimento da agricultura brasileira.

Da colônia à ditadura

A ocupação territorial do Brasil, no período do seu descobrimento e de sua colonização, foi estruturada com o espírito do Direito Agrário português de Capitanias Hereditárias e Regime de Sesmarias com o objetivo fundado na colônia de exploração. No Código Filipino, a preservação do direito de propriedade era condicionada ao uso da terra pelos sesmeiros.
Um primeiro setor, de exploração agrícola exportadora, no modo patronal, com mão-de-obra indígena e escrava voltada para a monocultura foi o principal objetivo da Coroa Portuguesa.
Um segundo setor, com base na agricultura familiar, se constituiu e se manteve em função do primeiro na produção de alimentos para subsistência. Esse setor secundário se apresentou como forma de viabilizar a reprodução da força de trabalho inserida nos grandes domínios, como atividade marginal de trabalhadores empregados na grande exploração, ou na atividade autônoma de agricultores familiares que trabalhavam por conta própria em terras marginais ou arrendadas. O caráter bimodal, original, de nossa agricultura, diferente do ocorrido nos países desenvolvidos, que priorizaram a base de seu desenvolvimento social e econômico na agricultura familiar, se traduz em nossos conflitos agrários contemporâneos.
Após a Independência do Brasil em 1822 e a iminente abolição da escravatura no ultimo quartel do século XIX, o Império foi pressionado a promulgar a Lei de Terras nº 601, de 18 de setembro de1850, que foi a primeira iniciativa de governo no sentido de organizar a propriedade privada no país.
Se antes a terra era livre e os trabalhadores escravos cativos, a partir de sua edição a terra passou a ser cativa e os trabalhadores rurais, indígenas e escravos, livres. Porém, o acesso à terra só seria possível pelo instituto da compra, condição jurídica e econômica que os escravos e os pobres do campo não possuíam. Restou a esses trabalhadores, o assalariamento ou condição de colono no trabalho agregado nas grandes propriedades. Vale destacar, entretanto, que o direito à propriedade deixou de ser condicionado à sua exploração.

Reforma agrária e função social da propriedade

O processo de ocupação territorial do país é caracterizado pelo conflito fundiário entre o posseiro, o latifundiário e/ou o grileiro. Nos anos 60, a reforma agrária surge no Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504/64) com o objetivo de estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio com a disseminação da agricultura familiar.
Para tanto, o acesso à propriedade rural seria promovido mediante a distribuição ou a redistribuição de terras, pela execução de várias medidas, entre elas a desapropriação por interesse social.
Basicamente, a desapropriação por interesse social é a medida que tem por fim condicionar o uso da terra à sua função social. A função social da terra, por sua vez, é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, os requisitos de aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Como sabemos, o projeto de reforma agrária não teve sucesso no Brasil. Nenhum governo ou movimento conseguiu implementa-lo pois, para tanto, era necessário derrotar os grandes proprietários rurais, donos do latifúndio, herdeiros das sesmarias, detentores do poder político nacional.

Modernização conservadora do campo brasileiro

Nos anos 70, a modernização conservadora do campo brasileiro, com a adoção do pacote tecnológico da Revolução Verde, ampliação do crédito rural subsidiado e outros incentivos à produção agrícola garantiu a segurança alimentar aos trabalhadores urbanos na consolidação do parque industrial brasileiro.
O processo de industrialização prescindiu da reforma agrária, provocando o êxodo de milhares agricultores familiares do campo brasileiro. As grandes e médias propriedades, localizadas em terras mais férteis, tiveram acesso a crédito, subsídios, pesquisa, tecnologia e prestação de Assistência Técnica e Extensão Rural – ATER, a fim de produzir para o mercado externo ou para a agroindústria.
Paralelamente, no mesmo período, a subordinação da produção agropecuária ao agronegócio, entendido como o conjunto de indústrias de adubos, fertilizantes, máquinas agrícolas e o processamento e industrialização de produtos do campo (como açúcar e álcool, suco de laranja, carnes bovina e de frango, pasta de celulose, óleos, entre outros) não permitiu a fundação de um setor agrícola independente e fortalecido com um arcabouço normativo e protegido legalmente com autonomia na formação dos preços agrícolas. Resultado: a formação dos preços agrícolas passou a ser determinado pelo agronegócio.
Aos agricultores familiares localizados em terras marginais, com o uso de práticas tradicionais e exploração com a mão-de-obra familiar, destinou-se à produção para a subsistência e pequeno excedente comercializado nos mercados urbanos.

MST e Constituição de 1988

Em 1984, os trabalhadores rurais que defendem a democracia da terra e da sociedade se convergem e decidem fundar um movimento nacional dos trabalhadores rurais sem-terra, o MST, com os objetivos de lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar por mudanças sociais no país. A função social da propriedade voltou a ser reforçada no direito constitucional brasileiro com a Constituição Federal de 1988 que estabeleceu entre os direitos e garantias fundamentais, como condicionante ao direito de propriedade privada, o cumprimento de sua função social.
Todavia a carta constitucional instituiu o conceito de propriedade produtiva e a tornou insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária.
O critério baseado em índices de produtividade determinados com base no Censo Agropecuário de 1975 transformou as propriedades improdutivas em propriedades produtivas, pois não considerou, nas análises, a evolução tecnológica ocorrida na agricultura brasileira nas últimas décadas. Também a lei maior não recepcionou o dispositivo do Estatuto da Terra que previa a desapropriação de latifúndios por extensão.
Nesses dois últimos aspectos, a Constituição Federal de 1988 foi um retrocesso em relação ao Estatuto da Terra de 1964.
Os movimentos sociais de luta pela terra, liderados pelo MST, defendem que o recurso natural terra seja considerado um bem público e não seja transacionado no mercado como uma mercadoria.
Neste processo de lutas, foram assentadas 1,34 milhões de famílias no Brasil pelos I e II Planos Nacional de Reforma Agrária, no período de 1985 a 2018. No mesmo período, foram criados 9.437 assentamentos reconhecidos em 87.953.588,00 hectares de área reformada. Hoje, aproximadamente 973 mil famílias vivem em assentamentos de áreas reformadas.

CDRU ou o TD?

O engendramento histórico da agricultura brasileira, forjada no seu caráter de política agrária bimodal e na política agrícola fortalecida pelos processos da modernização conservadora e no processo de caificação, proporcionou uma assimetria entre as forças políticas que atuam na construção de políticas públicas que defendem o agronegócio e a agricultura familiar.
Na atual conjuntura política de um estado capitalista neoliberal, o interesse do atual governo na expedição dos títulos de domínio – TD para os agricultores familiares provenientes das áreas reformadas apresenta-se como uma nova frente de expansão do agronegócio brasileiro.
Isso porque os assentamentos regularizados por um TD podem ser comprados novamente pelos grandes proprietários de terras nacionais, e geralmente a preços irrisórios dado que a parte vendedora não possui condições materiais para livre negociação do preço da terra. 
Essa possível territorialização do agronegócio, agora não em novas fronteiras agrícolas, mas sim em um território reformado, com toda a infraestrutura produtiva e social implantada, garantirá mais um ciclo hegemônico do agronegócio na busca do recurso natural fundiário social, produtivo e finito.
Por esses motivos, a CDRU se revela a mais adequada para a mudança estrutural das condições de domínio da terra em nosso país.
Afinal, a opção dos assentados pela CDRU possibilita a manutenção da malha fundiária reformada implantada com toda a sua infraestrutura e se apresenta como uma resistência e uma garantia contra a desterritorialização desses agricultores familiares das áreas conquistadas pelos movimentos sociais nos últimos 27 anos (1989/2016) de governos democráticos.

Sabrina Durigon Marques é professora universitária, mestra em Direito Urbanístico pela PUC/SP. Integrante do grupo de pesquisa do Direito Achado na Rua – DAnR. Conselheira Regional no Centro Oeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU. Autora do livro Direito à Moradia, da coleção Para entender Direito.  
Tonico Lula Marques é engenheiro agrônomo.

FONTE: Artigo originalmente publicado em "Justificando", aos 17 de abril de 2019. Disponível em: <http://www.justificando.com/2019/04/17/assentamentos-rurais-qual-a-melhor-opcao-para-a-agricultura-familiar-a-expedicao-do-cdru-ou-o-td/>.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Nenhum Direito a Menos. Em Defesa da Constituição e da Democracia

Nenhum Direito a Menos. Em Defesa da Constituição e da Democracia

Renata Carolina Corrêa Vieira
José Geraldo de Sousa Junior
Pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua.
Na data de 23 de março do corrente ano, tornou-se de conhecimento público o Ofício-Circular N2 1/2019/CC/PR, de origem da Casa Civil destinado ao Sr. Ministro do Meio Ambiente. O teor do ofício causou espanto aos militantes, ativistas e organizações da sociedade civil que lutam pela causa socioambiental no Brasil. O documento sugere a extinção, adequação ou fusão de Comissões, Comitês, Conselhos, Grupos de Trabalho e assemelhados listados em anexo, com o objetivo de “aumentar a eficiência” das atividades desempenhadas pelo Governo Federal.
A justificativa seria de que “que tal medida se coaduna com o objetivo do Governo relacionado à diminuição da burocracia na Administração Pública, objetiva reduzir níveis e instâncias de decisões para viabilizar a modernização da gestão pública, de maneira a fomentar a eficiência, intensificar as atividades de políticas públicas e fortalecer os princípios administrativos da transparência e da economia processual e procedimental”.
Na lista anexa ao documento, destacamos um Conselho específico: o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), criado pela Lei 13.123, de 20 de maio de 2015, que incorporou a Convenção de Diversidade Biológica (CDB), tratado da Organização das Nações Unidas e um dos mais importantes instrumentos internacionais relacionados ao meio ambiente, assinado e ratificado pelo Brasil em 1998.
A recente lei que incorporou a CDB no Brasil foi fruto de um debate intenso no Congresso Nacional, e embora tenha sido construída dentro dos marcos da denominada Colonialidade do Poder, tese do escritor peruano Aníbal Quijano, (vide a tese de doutoramento de Pedro Brandão, Faculdade de Direito da UnB, 2018: Colonialidade do Poder e Direito: uma análise da construção do novo marco legal de acesso à biodiversidade (Lei nº 13.123/2015), a Lei assegurou algumas garantias a povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares.
Uma das garantias da Lei é a criação de um Conselho, com participação da sociedade civil, (“setor empresarial”, “setor acadêmico” e “populações indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais”). Além de coordenar a elaboração e a implementação de normas e políticas para a gestão do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional, o CGEN é responsável, também, pela repartição dos benefícios.
Os povos indígenas, as comunidades tradicionais e os agricultores/as familiares desenvolveram modos de vida particulares que envolvem um grande conhecimento sobre os ciclos naturais, os ciclos biológicos e dos recursos naturais, tecnologias patrimoniais, simbologias, mitos e até uma linguagem específica, que traduzem um outro tipo de relação entre o homem e a natureza (DIEGUES, Antônio Carlos. 0 mito moderno da natureza intocada. São Paulo: HUCITEC, 1996). Estes saberes são designados como conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
Exemplos de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade são os conhecimentos sobre plantas, raízes, troncos, que envolvem desde suas propriedades à formas de manipulação que resultam em uso para fins medicinais, cosméticos, etc. Tais conhecimentos ancestrais são repassados de geração em geração de acordo com práticas, usos e costumes de cada povo.
Segundo a CDB, o acesso ao conhecimento tradicional de cada povo deve ser realizado respeitando-se dois princípios internacionais: o consentimento prévio e fundamentado e a repartição de benefícios. Não são poucos os casos de biopirataria e de acesso indevido a estes conhecimentos. Indústrias do ramo farmacêutico e de cosmético, não raro, utilizam-se de tais conhecimentos para criação de produtos, expropriando a comunidade de seu saber, tampouco dividindo os benefícios do lucro obtidos a partir de seus conhecimentos.
Nesse sentido é que a Lei da Biodiversidade criou o CGEN, que visa ampliar a participação da sociedade civil, e especificamente, dos detentores dos conhecimentos tradicionais para que possam atuar efetivamente na proteção de seus direitos. É nesse ponto que recai a investida do Governo Federal em retirar os direitos conquistados pelos povos e comunidades tradicionais, representando claramente uma ruptura democrática e violação às garantias constitucionais.
Segundo Luciana Tatagiba, os conselhos gestores de políticas públicas têm assumido um importante papel como espaço participativo desde a Constituição de 1988, representando uma importante vitória na luta pela democratização dos processos de decisão, já que são “espaços públicos de composição plural e paritária entre Estado e sociedade civil, de natureza deliberativa, cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais” (TATAGIBA, Luciana. Os Conselhos Gestores e a Democratização das Políticas Públicas no Brasil. In: DAGNINO, Evelina (Org.) Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 47-103).
Sob manto da “desburocratização e eficiência” estatal, a investida do Governo Federal se soma às já constantes ameaças internacionais e nacionais de setores do empresariado, que visam mercantilizar o conhecimento tradicional de povos e comunidades tradicionais, agora afetando diretamente a participação democrática de que esses povos possam atuar na preservação de seus direitos, assegurados constitucionalmente e por meio de tratados internacionais de Direitos Humanos.
Ou ainda, o que assistimos agora em nosso próprio País, nesta e em quase todas as ações de intuito reformista, com a Constituição argüida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de seus enunciados, sob a ilusão de uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, o tremendo interesse de apropriação do sistema constitucional-jurídico, em atentado à democracia, num modo de tradução, sem nenhuma sutileza, do que se tem denominado Estado de Exceção, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas, gerando por sua vez um estado de coisas inconstitucional.
Aqui entra em causa um outro modo, esse mais sutil, de identificar essa investida contra a Constituição e contra a Democracia, numa disponibilidade desnudada para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da dignidade humana, da cidadania e dos direitos.
Por isso que Rudolf von Jhering, ao afirmar a Luta pelo Direito, insiste não ser “suficiente, portanto, ocupar-se do mecanismo exterior do direito, porque pode estar de tal modo organizado e dirigido que impere a mais perfeita ordem e que o princípio que consideramos como o mais elevado deva ser completamente desprezado”. Na sua metáfora, de nada adianta reconhecer-se o direito de passagem se se interdita marcar o chão com as pegadas do caminhante.
Se por um lado temos a retirada de direitos por parte do estado colonizador, por outro cresce a unidade da organização da sociedade civil, de pesquisadores e pesquisadoras, de ativistas em frentes de luta e resistência pela proteção dos direitos socioambientais, cujas reflexões tem indicado o fortalecimento de redes e espaços alternativos para além do Estado. Sigamos na luta.
Ninguém Solta a Mão de Ningúem.
Nenhum Direito a Menos.  Em defesa da Constituição e da Democracia.