O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

segunda-feira, 23 de abril de 2018

UM DIA COM Dilma Rousseff



Fabio de Sa e Silva (*)

Encontrei-a, junto com colegas, na saída do aeroporto. Veio de braços dados com um brasileiro, negro, nascido na Bahia, que trabalha em San Diego, e que se ofereceu para "escoltá-la" até a saída. Saudamos os dois. Falamos da viagem e dos planos para o dia.
Chegou a hora de sairmos. O brasileiro, tímido e visivelmente emocionado, pediu uma foto. "É em memória da minha falecida mãe," disse. "Ela adorava a senhora".
"Claro, querido," ela concordou, abraçando-o.
Fui no carro com ela e sua assessora, enquanto os seguranças e outros colegas iam atrás. Em 30 minutos de conversa, ela me explicou a estrutura da indústria naval mundial, a diferença entre os campos de petróleo de Oklahoma e Texas e do Brasil, e as causas de abalos sísmicos na Costa e no centro dos EUA. Depois perguntou o que eu estudava e me indicou um livro a respeito. Mais tarde me mostraria as notas que fez do livro. "Ela fichou o livro," pensei comigo.
Chegamos ao hotel e ela disse que precisava subir ao quarto para fazer uma nebulização. "Vocês vão me desculpar, mas se não fizer, vou perder minha voz". Imaginei como estaria se, aos 70 anos, estivesse há mais de 10 dias viajando entre dois continentes.
Uma hora depois nos reencontramos para o almoço. Entre os vários assuntos, em geral amenos, tivemos uma animada conversa sobre as diferenças dos sotaques no Brasil. Ela foi explicando as variações de sotaques desde Minas em direção ao Nordeste a partir de “Grandes Sertões: Veredas”. Uma fala que misturava profundo conhecimento e amor pelo Brasil.
Encontrei-a só bem mais tarde na preparação para a sua palestra. Trazia comigo meus filhos, ambos felizes de conhecê-la. Conversaram, posaram pra fotos juntos; minhas crianças entregaram presentes para os seus netos.
A palestra começou forte e foi crescendo.
Voltei a encontrá-la para um jantar com acadêmicos. Falamos de nossos trabalhos e discutimos as perspectivas para o país.
Recebi, dos anfitriões do evento, a difícil incumbência de chamar um brinde. Recorri a uma citação de Saramago: "Dentro de cada um de nós existe uma coisa que não tem nome: isso é o que somos". E agradeci à presidenta e a todos os presentes por aquele dia, que ajudava a nos lembrar e reforçar o compromisso com "aquilo que somos".
"Bonito isso aí, viu?," ela comentou. Todos deram risada.
No dia seguinte fui encontrá-la no almoço. Trouxe uma foto na qual queria a sua assinatura. As crianças estavam comigo e volta e meia viravam o centro das atenções dela. Para a Manuela, ela deu um recado direto: "Você pode ser presidenta, viu?". Os assuntos variavam, mas já falamos de política com bem mais desenvoltura.
A certa altura, ela contou o caso de um político importante que estava programando de recebê-la e apoiá-la às vésperas do "impeachment". Ela teria telefonado a ele e dito: "Você não precisa fazer isso. Se você fizer, vai perder gente na sua base. O seu mandato está começando e você precisa de apoio pra fazer as coisas". "A gente tem sempre que olhar para o macro, né?", ela esclareceu.
Interrompi com o que eu mesmo antecipei, seria uma "pergunta difícil":
– A senhora demonstrou várias vezes aqui nessa nossa conversa uma grande capacidade de avaliação dos cenários. No entanto, sempre lhe acusam de ser politicamente inábil...
– "Ah, sou inábil, é?...," ela me cortou. "Querido, a gente tem duas opções pra analisar o que aconteceu no meu impeachment. Ou se reconhece que, a partir das eleições de 2014, o centro do Congresso foi pra direita e ficou sob o comando do Eduardo Cunha, com quem eu jamais aceitaria negociar, ou se diz, como alguns dizem, que a culpa é minha, que eu não tinha habilidade política".
Eu ia tentar retomar a pergunta, que no fundo era sobre a disjunção entre ética da convicção e ética da responsabilidade e a ironia de que Dilma pudesse ser condenada por agir conforme a primeira, no momento em que tanto se fala de "nova política". Mas justo aí fomos interrompidos por chamadas telefônicas de seguranças que, falando do aeroporto, anunciavam o cancelamento do voo dela.
Cada um de nós começou a buscar meios de resolver a questão. Uns faziam contato com agências de viagem; outros falavam com a companhia; outros olhavam voos disponíveis de outras companhias.
"Eu vou resolver isso," ela falou. "Pega o meu computador". E começou a procurar voos e traçar cenários. Como a hora passava rápido, sem que uma solução aparecesse, ela decretou: "Vamos para o aeroporto e resolvemos de lá".
Enquanto ela guardava o computador e cada um recolhia seus pertences, eu não quis perder a chance:
"Só assina a minha foto, por favor, presidenta".
"Claro. Vou fazer no padrão, ok? O padrão é assim, ó..." (e escreveu, com aquele traço meticuloso, "Um abraço, Dilma Rousseff").
Além de ter sido Ministra por oito anos, Dilma disputou e venceu duas eleições e governou o país por 5 anos, até que, há exatos dois, foi derrubada.
De amigos e familiares, cansei de ouvir insultos a ela.
O que encontrei foi uma figura bem mais complexa e interessante do que dizem os estereótipos.
E, em todo caso, uma figura da qual não me parece que o Brasil estava em condições de abrir mão, se, de fato, quisesse se tornar um país grande

(*) Professor Assistente de Estudos Internacionais e Professor Wick Cary de Estudos Brasileiros, Universidade de Oklahoma

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